Jacques Costa, 23 anos, é um dos 20 concorrentes do “Big Brother 2024”, que estreou este domingo, 24 de março, conduzido por Cláudio Ramos. Identifica-se como uma pessoa não-binária, quer ser tratada por “ela”, afirma estar a viver um ano de “autodescobrimento” e acredita que a sua presença no reality show da TVI pode ajudar a mudar mentalidades.

À MAGG, Catarina Marques Rodrigues, fundadora e CEO do projeto Gender Calling, cronista no “Público” e comentadora sobre desigualdade de género, começa por explicar que “o género está organizado, digamos assim, na sociedade, em dois grandes grupos: as pessoas que se identificam com o género masculino, os homens, e as pessoas que se identificam com o género feminino, as mulheres”. “Tradicionalmente, na história, a maioria das pessoas identifica-se ou como homem ou como mulher”, diz.

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Ser uma pessoa não-binária é diferente de ser transexual. “Uma pessoa trans, por exemplo, é uma pessoa que à nascença ou numa ecografia os médicos olharam para o seu órgão sexual, viram um pénis e disseram que é um menino. Depois, ao longo da vida, a pessoa trans percebe que não, que a sua biologia não corresponde àquilo que a pessoa sente que é, que é ser mulher”, explica.

“Depois, há um outro grupo de pessoas, que são as pessoas não-binárias, que não cabem e não se identificam com esta caixinha nem do género feminino nem do género masculino. Quando se diz que não se identifica com o género, é com tudo o que diz respeito a ser homem ou ser mulher: o aspeto físico, a forma como se comportam, o que vestem, os papéis de género que têm, como é que se comportam em sociedade, no local de trabalho, na escola. É um sentimento em relação ao género que é mais fluido, portanto, não é estanque, como no caso de uma pessoa que se identifica com o género feminino ou masculino”, esclarece Catarina Marques Rodrigues à MAGG, acrescentando que uma pessoa não-binária “não é nem estritamente masculino nem estritamente feminino” e que está “fora desse binário do género”, dessa “normatividade, e que vai navegando entre os vários géneros”.

Quando questionada por Cláudio Ramos, Jacques afirmou que quer ser tratada por “ela”, o pronome feminino. Catarina Marques Rodrigues explica que, “internacionalmente, na língua inglesa, o pronome mais comum para as pessoas não-binárias é o 'they'”.

“A língua portuguesa é uma língua muito marcada do ponto de vista do género. Tudo ou quase tudo é feminino ou masculino, inclusive os objetos. Nós dizemos uma porta, uma caneta, um lápis. Portanto, a língua portuguesa é uma língua que é difícil de adaptar para alguém que não se identifica com o género binário, com o ser homem ou o ser mulher”, refere.

“Há várias opções disponíveis. Há quem escreva com 'x', portanto ‘ela, ele e elx’, há quem use o '@', mas o mais comum é usar o ‘elu’. Mas qual é que é a questão? Na linguagem oral, por exemplo, para uma pessoa utilizar o pronome ‘elu’ e conjugar os verbos com o ‘u’, tem de estar perante pessoas que já têm, à partida, essa sensibilidade. O que acontece é que, se começarmos a falar em ‘elu’, a maior parte das pessoas não vai saber do que se está a tratar. A pessoa não-binária é a pessoa que tenta, no meio destas opções, escolher aquela com a qual se identifica mais”, esclarece.

Além disso, Catarina Marques Rodrigues alerta que, na linguagem escrita, o ‘x’ e o ‘@’ “não são opções muito viáveis”, por exemplo para as “pessoas que são disléxicas” e para os “invisuais”, nomeadamente em aplicações que assumem esses caracteres como um erro, acabando “por não ser muito inclusivo para uma série de pessoas que têm outro tipo de especificidades”.

Jacques quer ser tratada por “ela” e Catarina realça que “o género é algo tão pessoal, que só cada pessoa sabe o que sente que é”. “A Jacques pode dizer: ‘eu sou uma pessoa não-binária’ e, ainda assim, querer usar partes da língua portuguesa que dizem respeito ao género feminino. O que não quer dizer que ela seja uma mulher no seu todo. Quer dizer que, na forma de tratamento, essa é a qual com que se sente mais confortável. Depois, na sua expressão corporal, no seu aspeto físico, nas suas características físicas e biológicas pode querer manter-se com aquelas que estão mais próximas do género masculino”, diz.

A entrada num reality show é bom ou mau?

Catarina Marques Rodrigues aborda ainda o facto de uma pessoa não-binária ter entrado num reality show com muita visibilidade. “Nos primeiros anos, sempre que aparece num programa com tanto alcance, causa sempre alguma estranheza e incompreensão, há também muita ausência de conhecimento da diversidade das realidades. Portanto, há sempre o risco de, em vez de ser algo que vai fazer com que as pessoas fiquem mais curiosas e interessadas, pode num primeiro momento estigmatizar”, alerta, recordando também as primeiras participações de concorrentes transexuais em reality shows portugueses, nomeadamente a de Filipa Gonçalves n’ “A Quinta das Celebridades”, em 2005.

“Os apresentadores e a equipa do ‘Big Brother’ vão ter uma responsabilidade muito grande em tentar normalizar algo que é, de facto, normal e natural. A Jacques, no seu vídeo de apresentação, até diz: ‘eu, finalmente, já estou à vontade com a minha identidade e sinto-me feliz’, portanto trata-se de uma questão de felicidade. Agora, quando se fala para as grandes massas, eu diria que se fizéssemos quase uma audiência em cada casa ontem de quem assistiu ao programa, provavelmente causou muitas conversas, muitos comentários e piadas discriminatórias, e isso é normal acontecer também, porque de facto, não faz parte do nosso dia a dia”, reforça.

Catarina Marques Rodrigues considera ainda que “é importante trazer estes exemplos para mostrar às pessoas que estamos a evoluir”, que “continuam a aparecer pessoas com uma diversidade enorme” e que “continuamos a ser desafiados nas nossas convenções”.

“Isso é bom. Ninguém quer ficar numa caixinha. É bom também, sobretudo, para quem faz parte dessa realidade, sentir-se à vontade ou pelo menos com a coragem suficiente para estar num programa e ficar-se sujeito a esse julgamento, que é real. É um ótimo sinal. Sei que muitos e muitas jovens que estão em casa se sentem visíveis, felizes e gratos, quase, por verem esse tipo de exemplos em canal aberto e num programa com tanta audiência”, conclui.