Marta Temido bem pode irritar-se, como aconteceu esta terça-feira no parlamento, e dizer que as medidas propostas pela Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) nada têm que ver com a questão da interrupção voluntária da gravidez (despenalizada desde 2007, após referendo) mas a irritação da ministra da Saúde é conversa para boi dormir.

A ACSS, instituto público responsável pela gestão dos recursos financeiros e humanos, das instalações e equipamentos do Serviço Nacional de Saúde, propõe que os médicos das Unidades de Saúde Familiar e respetivas equipas sejam penalizados caso as pacientes a seu cargo (e aqui reforço que a notícia, avançada pelo "Público", refere apenas pacientes mulheres) recorram à interrupção voluntária da gravidez ou tenham doenças sexualmente transmissíveis.

A medida, mascarada de gestão eficaz e de pretenso incentivo a um melhor planeamento familiar é, na realidade, e perdoem-me o vernáculo, penalizar as mulheres por darem o pito.

Eu sei que o uso do termo pode chocar os leitores mais sensíveis mas é assim que eu, mulher, me sinto ao ler estas propostas. E acho que é assim que alguns profissionais de saúde se deverão sentir também. Que, para receberem mais uns trocos, têm de ter um registo de pacientes mulheres ou com os pipis imaculados ou máquinas de parir bebés. Galdérias que apanham bicharada porque andam por aí a dá-lo a torto e a direito ou badalhocas que engravidam e depois não querem viver a alegria de serem mães? Tudo isso dá nota negativa na avaliação e menos uns euros no banco.

Em parte alguma da proposta há referência aos homens, quer seja como parte interveniente da execução de uma gravidez (até ver, nós, mulheres ainda não produzimos esperma), quer seja como principais transmissores de doenças sexualmente transmissíveis, destaque para o HPV, vírus responsável pelo cancro do colo do útero, e que tem uma incidência praticamente insignificante nos portadores do sexo masculino.

(Aproveito para referir, assim num parêntesis breve, que apesar de a vacina contra o HPV estar no plano nacional de vacinação para adolescentes, não tem qualquer comparticipação do Estado para adultos. Custa 400€ e pode, segundo opinião de vários médicos, servir de proteção eficaz).

Muito resumidamente, para a Administração Central do Sistema de Saúde os homens não entram para as contas no que toca a planeamento familiar e saúde sexual. O ónus da responsabilidade é da mulher que, bem orientada por um médico, pode ajudá-lo a ganhar mais uns trocos ao fim do mês. É perverso? É, e provavelmente saiu da cabeça de um conjunto de homens. É espantoso? Não.

Nas Unidades de Saúde Familiar, as mulheres em "idade fértil" (expressão aberrante) têm direito (e bem) a métodos contracetivos grátis, citologias, e acompanhamento. Porque é que os médicos das USF não podem, com o atrativo de um extra salarial, sugerir aos seus pacientes vasectomias por forma a evitar gravidezes indesejadas? Porque é que os adolescentes homens não têm consultas, assim que chegam à puberdade, para aprenderem o básico dos básicos (como colocar um preservativo), porque é que não lhes é explicado as regras básicas do sexo seguro? Porque é que essa responsabilidade tem de estar toda do lado da mulher?

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A realidade norte-americana é radicalmente diferente da portuguesa. Não há sistema nacional de saúde como em grande parte dos países europeus. Em determinados estados, há verdadeiras perseguições e ameaças tanto às mulheres que recorrem à interrupção voluntária da gravidez como aos profissionais de saúde que a executam.

Com a possibilidade da reversão do caso Roe v Wade, que despenalizou o aborto nos EUA, prevê-se um retrocesso civilizacional enorme nos direitos das mulheres, que poderá inspirar outros movimentos conservadores deste lado do Atlântico.

Em entrevista ao podcast The Daily, do "New York Times", Jessica, uma médica que trabalha numa clínica do Texas (estado onde o aborto foi ilegalizado em setembro de 2021, aquando a aprovação do The Texas Heartbeat Act) explica que os argumentos da fação antiaborto são uma falácia. Os vários movimentos pró-vida (motivados quer por razões políticas, quer religiosas) defendem que a interrupção voluntária da gravidez não é necessária se houver uma assistência social mais robusta, com mais cuidados pré e pós-natais, medidas que fariam com que as mulheres levassem as suas gravidezes a termo.

"Não há um mundo onde não há abortos. Gostava que percebessem isso. Mesmo que dessemos os melhores contracetivos do mundo, que funcionassem sem quaisquer falhas, mesmo que tivéssemos todos os recursos e cuidados de saúde universais, mesmo que tivéssemos isso tudo, continuaria a haver pessoas que não querem levar gravidezes a termo (...)", explica Jessica.

"O que quero que percebam é que ter um parto, levar uma gravidez a termo, é 10 a 12 vezes mais perigoso do que fazer um aborto. Quando me dizem que é isso que tenho de fazer, que é esse o meu trabalho, que tenho de levar uma gravidez até ao fim porque tenho um ser vivo dentro de mim, estão a condenar-me a um processo que é 10 a 12 vezes mais perigoso do que aquele que eu quero. Estão provavelmente a sentenciar-me à morte. A gravidez não é uma brincadeira. Não é fácil. Para umas pessoas é, para outras não, para algumas é perigoso e nada disso mudará se Roe v Wade for revertido ou se toda a gente tiver todos os recursos possíveis a seu dispor", argumenta a médica.

Por cá, estamos longe disto acontecer. Tal como Marta Temido disse, e bem, “estamos em 2022, não é uma discussão para o nosso país nem para este Governo”. Mas, no que toca à forma utilitária, misógina e discriminatória como a saúde sexual e reprodutiva feminina ainda é abordada, a realidade não é assim tão diferente.