Há umas semanas estava a fazer zapping na televisão quando dei por mim a ver um documentário sobre as difíceis primeiras horas de vida das tartarugas-marinhas. É um horror: se tiverem a sorte de sobreviver aos predadores que as comem ainda dentro dos ovos, os pobres animaizinhos têm de ser rápidos a chegar a água se não quiserem ser devorados pelo caminho. Depois de ver gaivotas atrás de gaivotas a raptarem tartarugas quando elas estavam prestes a entrar no mar, já estava sentada na cama, agarrada aos joelhos e com os olhos cheios de lágrimas.
"Só que não basta chegar ao mar", diz de repente o narrador. "Na água, as tartarugas têm de lidar com mais um predador: os tubarões."
Arrendar casa em Lisboa está tão complicado como aquelas primeiras horas de vida das tartarugas. Mas já lá vamos. Antes de tudo, vou começar por contar um bocadinho a minha história: olá, o meu nome é Marta Gonçalves Miranda, tenho 28 anos e quero sair de casa. Não me parece uma ideia assim tão mirabolante, atendendo a que, aparentemente, estou em condições financeiras para o fazer.
Ah, palavra engraçada essa — aparentemente. Pelos vistos é mesmo tudo uma questão de aparência. Quando decidi sair de casa em janeiro deste ano, achei que não seria assim tão difícil encontrar um simpático T0 ou T1 por um máximo de 500€. Eu até sou uma rapariga modesta, não preciso de grandes mordomias e não me chateio assim tanto por não conseguir juntar todos os meus amigos em casa — é para isso que os cafés e restaurantes existem, não é verdade? Além disso, 500€ parecia-me um valor bastante elevado quando, infelizmente, é praticamente o ordenado mínimo.
Pois é, aparentemente é uma palavra mesmo muito engraçada. Eu não podia estar mais enganada: em Lisboa não existem TO e T1 a 500€. Não, ninguém me disse, ninguém me contou, fui eu que vi como os meus próprios olhos. Não existem. Nem espeluncas nem meias espeluncas, nem bairros luxuosos nem na periferia da cidade, não há apartamentos deste tamanho a este preço.
1.000€ para morar num T0 na cave de alguém? Está bem. Aceitam cães?
Demorei cerca de um mês a desistir da ideia de viver sozinha. Foi bastante tempo, eu sei, mas considero-me uma pessoa motivada e positiva. Tal como as pobres tartarugas que estavam prestes a meter as patinhas na água, porém, fui devorada por gaivotas. Umas atrás das outras. Não há motivação e otimismo que aguente.
Apesar de ter desistido da ideia, ainda hoje tenho alertas do Idealista para casas desta tipologia a este preço, e sigo páginas de Facebook como "Casas/Quartos para arrendar em Lisboa até 500€". O primeiro nunca tocou. O segundo já me providenciou alguns momentos hilariantes. Foi o caso de alguém em Telheiras, a zona onde vivo atualmente, que decidiu pôr a arrendar a cave da sua vivenda. Isto não teria nada de mal se não estivéssemos a falar de um anúncio para um T0 a mil euros.
Um T0 por mil euros. Mil euros. Um T0. Para viver na cave de alguém. A parte mais triste foi que alguém comentou nesta publicação o seguinte: "Tenho dois cães. Eles podem usar o jardim?". As pessoas estão desesperadas, a legislação não impõe regras e no final tudo se resume à lei da oferta e procura. Vale tudo. Até cobrar mil euros por um T0.
Não foi a oferta mais alucinante que vi. Pouco tempo depois, alguém decidiu publicitar um T0 por 600€ ou 700€. Já não me lembro bem do preço, mas lembro-me perfeitamente que o mini-frigorífico (não havia espaço para mais) ficava colado à cama. Literalmente colado à cama: podia estar refastelada a ver Netflix, esticar o braço e abrir o frigorífico. Prático? Talvez. A favor da obesidade? Certamente. Vale 600€ ou 700€? Nem vou comentar.
Quando decidi que nem a comer massa com atum o mês inteiro conseguia viver sozinha, uni forças com uma amiga para arrendarmos casa juntas, tal como duas tartarugas que tentam chegar de patas dadas ao mar. A união faz a força, certo? Bem, ainda estamos para ver — passaram-se três meses e tudo o que temos são histórias para contar.
"Não arrendamos casas a amigas, só a casais. As amigas chateiam-se"
Foi durante uma reunião editorial de segunda-feira que o meu telefone tocou. Levantei-me de imediato: há menos de uma hora tinha tentado contactar um imóvel sem sucesso, portanto era bem provável que fosse o anunciante. Não podia dar-me ao luxo de perder a chamada — a seguir a mim estavam certamente outros 300 disponíveis para atender o telemóvel. É este o maravilhoso estado atual do arrendamento em Lisboa. Todos os minutos contam, todas as chamadas importam.
— Olá, bom dia. Sim, liguei porque queria marcar uma visita ao T2.
— Sim, muito bem. Diga-me uma coisa, quais são as suas condições? A casa é para quem?
Voz sempre ríspida, agressiva e a despachar. Não são todos, atenção, já falei com umas quantas pessoas amorosas nesta saga de tartaruguinha a tentar chegar ao mar. Infelizmente, porém, a maioria dos agentes imobiliários e proprietários esqueceram-se de que estão a falar com pessoas. A educação fica para depois.
— A casa é para mim e para uma amiga minha. Somos as duas jornalistas, temos contrato...
— Isso é um problema.
— Desculpe?
— Não arrendamos casas a amigas, só casais. As amigas chateiam-se.
— Não estou a perceber. Os casais não se chateiam?
— É diferente.
E assim terminou a chamada. Gostaram desta história? Não se preocupem, tenho mais. Esta aconteceu à minha amiga.
— Olá, estou a ligar em resposta ao anúncio de um T2. Queríamos marcar uma visita.
— Sim. Pode ser amanhã às 11h30?
— Tanto eu como a minha amiga trabalhamos. Não pode ser ao final do dia?
— Impossível.
— Mas não temos como sair do trabalho a meio do dia.
— Pois menina, mas também deve saber qual é a situação atual do arrendamento em Lisboa.
— Sei, mas também sei que para as pessoas arrendarem casa têm de trabalhar.
Mais uma chamada que termina abruptamente. E a visita que nunca chegou a acontecer? Esta também vale a pena. Faltava meia hora para as 11 horas. Já nos arredores da casa que íamos ver, eu e a minha amiga parámos para tomar o pequeno-almoço. De repente, o telefone toca.
— Lamento mas vou ter de cancelar a visita. A pessoa que veio antes de vocês ofereceu-me um ano de renda adiantada. Como deve perceber, a proposta é irrecusável.
Vai ser bom, não foi? Oi? Não, nunca chegou a acontecer.
Vá, só mais uma história.
— Boa tarde. Sim, liguei para responder a um anúncio para um T2.
— Muito bem. Fica já a saber as condições: são contratos de cinco anos, sendo que a cada ano a renda sobe 50€.
Esta chamada divide-se em duas partes. Na primeira acordámos em fazer a visita à casa. Depois de refletir um pouco sobre o assunto, porém, chegámos à conclusão de que não valia a pena perder tempo — não podíamos ter essa obrigatoriedade de todos os anos ver a renda aumentada numa quantia tão exorbitante. Foi exatamente isso que expliquei ao senhor na segunda chamada.
— Sim, mas isso é relativo. Não precisam de ser 50€, podem ser 40€.
Desisti de explicar que descer 10€ não mudava nada a situação. Agradeci só e desejei boa sorte.
Quem quer investir numa casa que nunca será sua? Esta e outras ofertas absurdas
A oferta prometia: apartamento T2 na Avenida Elias Garcia por 670€. Bom demais para ser verdade? Claro que é. Bastou abrir o anúncio para perceber.
"Venha visitar este futuro apartamento em localização tranquila, na Av. Elias Garcia, a 350 metros do metro do Campo Pequeno. O andar necessita de acabamentos pois encontra-se basicamente em bruto, estimando-se o tempo de obra em cerca de um mês, máximo. Tem condições para vir a ser um T1 ou T2". Esquisito? Piora.
"O investimento para definir e terminar as obras partirá do arrendatário, sendo que os proprietários estão disponíveis para abater nas rendas durante a duração do contrato (cinco anos), o valor despendido até um máximo de 8.000€."
Então a lógica é a seguinte: no primeiro ano o inquilino paga 670€, no segundo 833€, no terceiro 915€, no quarto 950€ e no quinto 965€. No final tem uma casa como nova que, parabéns, não é sua. E ainda tem de esperar um mês para entrar na casa, uma vez que será mais ou menos esse o tempo de duração das obras. Mas isto é tudo ótimo porque, "considerando um valor base da renda mensal de 1.000€", há o "referido abatimento" nas rendas nos próximos cinco anos.
Infelizmente, as ofertas absurdas fazem parte do dia a dia. Às vezes conseguimos rir-nos. Outras vezes só temos vontade de chorar. Há quartos como este para arrendar por 350€. Vá, está a dois minutos do metro da Alameda, e isso é incrível. O mobiliário também não está a cair de podre, o que não é mau.
Até porque há pior. Quando comecei a procurar casa, achei que conseguiria encontrar um T0 por 450€, nem que fosse em Odivelas. Era bom, não era? Com esse valor, o máximo que consigo encontrar é um quarto com cama de solteiro.
Há mais. Muito mais. Como este T0 em Benfica, que custa 665€. Perdão, 765€ — se ler o anúncio com atenção, 665€ é apenas para arrendamentos de curta duração. Se quiser morar lá por mais uns tempos a renda sobe mais 100€. A casa é tão boa que basta esticar o braço da cama para desligar a máquina de roupa. Já para cozinhar tem de atravessar a casa para chegar do frigorífico ao fogão. Felizmente o imóvel só tem 23 metros quadrados, logo não há como andar muito.
E há pior? Claro que há. O que dizer de um T0 junto ao Marquês de Pombal que tem 25 metros quadrados e custa 650€? Este tem as mesmas dimensões, fica em Alfama e custa 850€. E se acham que é só Lisboa que está cara, também há T0 a 750€ em Paço de Arcos (tem só mais dez metros quadrados). Em S. João do Estoril, há T0 com 60 metros quadrados que custam mil euros. Não é gralha. São mesmo mil euros.
"Recebi 300 emails com pedidos de visita a esta casa. Só respondi a 10%"
Neste momento aguardo resposta para saber se consegui ficar com uma casa nos Olivais. Fazer a visita já foi uma sorte — a agente imobiliária que nos acompanhou ao imóvel explicou que recebeu 300 emails com pedidos de visita. "Só respondi a 10%", explicou-nos. "Era impossível chegar a todos."
Claro que era. Era impossível chegar a todos, da mesma forma como cada casa é uma roleta da sorte. Quando acabámos a visita, foi-nos dito que enviássemos um email com a documentação importante e que "nos tentássemos vender". Como os proprietários da casa vivem fora do País, tínhamos de tentar distinguir-nos da melhor forma.
Foi com isso em mente que decidimos escrever uma carta de motivação e gravar um vídeo a apresentar-nos. De repente, senti-me como se estivesse a concorrer para o melhor emprego do mundo. Não estava, estava apenas a "lutar" para ficar com uma casa, tal tartaruguinha desesperada que tenta chegar ao mar. Ainda aguardo resposta.
A única certeza que tenho neste momento é que esta cidade já quase não é minha. No Bairro Alto, volta e meia vejo agentes imobiliários a passear na rua com franceses, ingleses, chineses e alemães. Parados na frente de um prédio ainda em obra, mostram-lhe imagens do projeto daquela que pode vir a ser um dia mais uma das suas casas. Portugueses nem vê-los.
— Não é uma luta honesta. Enquanto o português poupa, poupa e poupa para conseguir ter o suficiente para dar entrada numa casa, os estrangeiros chegam e metem mais em cima da mesa. E o português não pode fazer mais nada senão recuar.
A história foi-me contada por uma agente imobiliária. E continua.
— Lembro-me de uma visita que fiz com um português e um estrangeiro. Assim que entrou na casa o estrangeiro disse: "Compro". Respondi-lhe que não podia ser assim, até por respeito pela pessoa que estava ali a fazer a visita com ele. "Não vale a pena. Tudo o que ele oferecer, eu ofereço mais".
Não tenho nada contra os estrangeiros. Não tenho nada contra ninguém. Só tenho pena de não conseguir chegar ao mar — que, neste caso, é como quem diz arrendar uma casa em Lisboa.
(Texto originalmente publicado em abril de 2018 pela jornalista Marta Gonçalves Miranda)