Quando o telefone toca nas instalações da Deathclean, não importa a hora. Haverá sempre alguém do outro lado da linha para dar resposta a um contacto que, regra geral, requer uma solução imediata. Fundada em 2008, a empresa pioneira é, além disso, a única certificada e acreditada em Portugal para poder desempenhar os serviços de limpeza e desinfeção em casos de contaminação biológica decorrentes de mortes violentas, decomposições ou acumuladores compulsivos.
Foi uma destas situações que, sabe-se agora, obrigou a uma das intervenções mais recentes da Deathclean, em Sesimbra, quando se conheceu o caso de duas mulheres adultas e uma criança, de 4 anos, que viviam no meio do lixo. Contactada pelas autoridades, a empresa deslocou-se ao local e encontrou dejetos humanos e de animais, lixo espalhado ao longo dos três pisos da habitação e muita desarrumação. E ainda que as imagens divulgadas sejam fortes, é este o tipo de ambiente com que estes profissionais estão habituados a lidar há 13 anos, quando Pedro Badoni fundou a empresa com outro colega que entretanto já não faz parte da equipa.
A ideia, conta Badoni à MAGG, surge em 2008 depois de ver o filme "Cleaner". Protagonizado por Samuel L. Jackson, a história traça um retrato fiel da forma de funcionar de uma empresa americana nesta área. Terá sido aí, continua, que se apercebeu de que "haveria a oportunidade de criar uma empresa idêntica", mas num País onde não havia ninguém a comercializar estes serviços.
Cerca de 13 anos depois, sabemos que, em Portugal, continua a não haver quem, como a Deathclean, tenha especialidade na área para poder lidar de perto com a morte, o sangue e o cheiro a putrefação. Apesar disso, o fundador explica que a Deathclean não trabalha todos os locais em que há risco biológico. A explicação é simples: há empresas de limpeza convencionais que o fazem por um valor mais reduzido, mas sem a atenção e os materiais necessários para lidar com locais contaminados.
Nos locais onde ocorreram mortes violentas ou foram descobertos corpos num estado avançando de decomposição, é a Deathclean quem limpa aquilo que os outros não podem (e nem devem) limpar.
Fundada em 2008, a Deathclean continua a ser a única empresa certificada em Portugal para fazer este tipo de trabalhos. Porque é um trabalho difícil?
É difícil, sim. Somos a única empresa especializada e legalizada para o fazer, mas não limpamos todos os locais que sejam classificados como de risco biológico porque, claro, há empresas de limpezas convencionais que o fazem. A diferença é que nós somos únicos com formação e especialização para este tipo de serviços. Não sabemos como é que as outras empresas fazem as limpezas, mas sabemos que nunca se especializaram para tal e que, por isso, fazem estas limpezas em incumprimento legal.
Em que sentido?
A Deathclean é a única empresa que tem um contrato com o operador que, após as limpezas, dá o destino devido aos resíduos contaminados com os quais lidamos. Logo aí, sabemos que as outras empresas não põem os resíduos nos sítios corretos. Mesmo na Europa, continuamos a ser a única acreditada.
"Hoje a equipa pode estar num caso de arrumação compulsiva, amanhã pode estar a limpar dejetos de pombo e no dia seguinte pode estar a lidar com uma morte violenta"
Isso significa o quê?
Da parte legal, esta indústria requer formação. Poucos anos depois de ter fundado a empresa e de ter tido contacto com os primeiros trabalhos que nos foram chegando, senti a necessidade de aprender mais e de me especializar. Foi por isso que fui para os Estados Unidos, onde todos os anos ainda tenho formação e onde obtivemos, enquanto empresa, o que temos até hoje.
Ou seja, uma certificação através de uma associação americana que obriga a que, todos os anos, sejamos sujeitos a vários testes para provar que estamos aptos a desempenhar os trabalhos que nos chegam e a manusear todos os materiais necessários para a limpeza e desinfeção. Na Europa, somos a única empresa acreditada e com formação adequada para este tipo de atividade.
Os profissionais da Deathclean acabam por se habituar às circunstâncias que muitas vezes encontram ou há locais que, em termos psicológicos, fazem mossa?
Acaba por se tornar hábito. Claro que somos seres humanos, temos sentimentos, somos pais, temos famílias... Mas apesar de ser um trabalho que, acreditamos, ajuda as famílias a ultrapassar momentos muito difíceis, a verdade é que quando um técnico entra para um ambiente destes, tem de entrar completamente desligado da situação.
"Há quem queira arregaçar as mangas e limpar, sem ter a noção de que o facto de um local não ficar bem limpo pode, mais tarde, originar um trauma maior"
Nunca um trabalho quebrou um técnico da Deathclean?
A verdade é que nunca, em 13 anos desde a fundação, a saída de algum técnico da empresa teve que ver com algum tipo de afetação psicológica decorrente de um trabalho. E já passaram por aqui muitos profissionais. Até porque alguns dos que colaboraram connosco já faziam parte das forças policiais ou do corpo dos bombeiros e, por isso, estavam habituados a lidar com todo o tipo de cenários.
A diferença é que, no caso de situações de homicídio ou suicídio, quando a Deathclean entra no terreno já não há corpo?
Precisamente. Mas muitas vezes entramos num local onde houve, por exemplo, uma morte violenta e estamos em contacto direto com um familiar que está a aceitar a nossa proposta de limpeza a chorar, ou que está a fazer o luto na casa ao lado em que ocorreu a tragédia, que é muito comum em zonas rurais.
Isso não afeta quem está no terreno?
Em parte, diria que não afeta tanto quanto as pessoas poderiam achar. Não há um total desapego emocional porque, no fundo, todos sentimos o que se está a passar ali, até porque foi uma vida que se perdeu. Mas a nossa missão é a de ajudar a que a pessoa que nos contactou para aquele trabalho ultrapasse o momento. E é nisso que nos apoiamos.
Há uma parte muito gratificante que só quem está na nossa pele é que sabe o que é e que acontece no final, quando o cliente olha para o trabalho que fizemos e fica surpreso pela forma como conseguimos deixar o local exatamente como estava antes da tragédia.
Em casos de mortes violentas ou de decomposição, há muita essa parte humana e o nosso papel é quase o de um psicólogo. Claro que esse contacto direto não nos pode afetar emocionalmente, o que não quer dizer que não haja situações que nos tocam mais porque as pessoas que nos contactam acabam, elas próprias, por desabafar connosco sobre um bocadinho da sua vida, especialmente quando se trata de casos de mortes violentas ou de suicídios de pessoas jovens.
Mas o bom desta área é que hoje a equipa pode estar num caso de arrumação compulsiva, amanhã pode estar a limpar dejetos de pombo e no dia seguinte pode estar a lidar com uma morte violenta.
A alternância de trabalhos ajuda, suponho.
Bastante, até para que não haja sempre o mesmo clima e o mesmo tipo de cenário. Essa é um ponto positivo: é um trabalho que vai de norte a sul do País e que é pouco rotineiro.
Há uma ideia generalizada de que, nos casos de mortes violentas, são as autoridades que contactam empresas externas para que seja feita a limpeza. Mas, afinal, é o responsável da casa?
Sim, é esse o nome técnico: o responsável pela habitação. Há situações em que é o Estado português a fazer o contacto, claro, no caso de a limpeza acontecer em habitações camarárias, por exemplo. Acontece também certas câmaras, e isso é de louvar, contactarem a Deathclean para limpezas em habitações particulares em que houve uma decomposição e não se consegue chegar à fala com a família da vítima. Mas na maioria dos casos, os contactos vêm dos responsáveis da casa.
Vamos supor que o inquilino de uma casa é encontrado morto em casa e já num estado avançando de decomposição. Se a família for contactada e não quiser saber do caso, é o senhorio o responsável por tratar da situação.
O que a polícia pode fazer, e já faz, é aconselhar a pessoa para o facto de que aquele trabalho não poder ser feito por uma empresa convencional por questões psicológicas, físicas e legais. E embora haja quem recorra a nós, era muito bom que a nossa equipa pudesse ficar com todos os casos, mas infelizmente não acontece.
"Um suicídio com arma de fogo pode ser comparado, por exemplo, com um simples rebentar de uma lata de tinta vermelha um quarto. Há partículas microscópicas por todo o lado"
Porque há quem não conheça os vossos serviços?
E também porque há quem queira arregaçar as mangas e limpar, sem ter a noção de que o facto de um local não ficar bem limpo pode, mais tarde, originar um trauma maior quando se verificar um qualquer vestígio. O nosso trabalho também passa muito pela sensibilização do importante que é haver uma empresa que pode fazer a diferença neste tipo de intervenções.
Poderá também ter que ver com o facto de haver empresas convencionais a aceitar intervenções por um custo mais reduzido do que aquele que está previsto na Deathclean?
Não vou revelar alguns dos valores dos nossos serviços apenas para que as pessoas não pensem que são fixos. Mas claro que esse é um dos motivos. O nosso valor é completamente diferente daquele que é praticado por uma empresa convencional, porque assim tem de ser. Toda a estrutura que a nossa empresa oferece justifica isso. Temos atendimento telefónico durante 24 horas, o que não acontece noutras empresas de limpeza, e se for precisa uma intervenção durante a madrugada em locais como fábricas ou centros comerciais, por exemplo, estamos disponíveis.
No caso de habitações particulares, a lei não nos permite fazer barulho. Mas damos uma solução rápida a quem nos procura. Além disso, temos toda a formação para garantir que não fica uma única gota de sangue por limpar — e é uma formação única, paga e exclusiva que todos os anos renovamos. Ainda há os produtos, os materiais e as máquinas que são todas importadas. Sabemos que o trabalho que estas empresas convencionais fazem ficará sempre incompleto porque não têm nem os produtos nem os materiais necessários.
Quanto mais complexo o trabalho, mais dispendiosa será a intervenção?
Sim, é esse o nosso único parâmetro de orçamento porque não trabalhamos por metro quadrado nem por área, até porque seria impossível aplicar essa métrica num caso de um arrumador compulsivo que em cem metros quadrados pode ter uma tonelada de lixo ou mais. Temos de fazer uma avaliação prévia ao local e é nesse passo que fazemos um cálculo de tudo o que aquela intervenção vai implicar: técnicos envolvidos, produtos e máquinas.
Os pagamentos são a pronto ou podem ser faseados?
O que nós apresentamos ao cliente é um pagamento a pronto. O cliente paga uma percentagem inicial e, após a conclusão do trabalho, paga o resto. Mas sempre que o cliente não tem a capacidade económica de custear o serviço, apresentamos um plano de pagamento sem recurso a empresas de financiamento externo e, por isso, sem juros associados.
Quais são os trabalhos mais comuns que a Deathclean tem de realizar?
Nestes últimos anos temos registado uma média um pouco variável. A taxa de maior trabalhos corresponde à de decomposições, ou seja, casos de mortes acidentais ou naturais em que o corpo ficou várias dias em casa até ser descoberto. Estas situações acontecem muito em alturas de período quente. Também lidamos com situações de acumulação compulsiva e, nos últimos anos, também têm surgido alguns serviços de limpeza de dejetos de pombos e de ratos, que são muito perigosos para a saúde pública.
Os serviços em situações de homicídio têm-se mantido estáveis para nós, com cerca de dois ou três por ano, porque, felizmente, Portugal continua a ser um País muito seguro. No que toca a suicídios, muitos dos casos com que lidávamos tinham sido consumados com arma de fogo, mas ultimamente têm surgido em menor número.
"Como nestes casos as pessoas não podem entrar dentro da casa, que está contaminada, fomos nós que fomos escolher a roupa que aquela mulher iria vestir no funeral e até a roupa que já estava guardado para o bebé quando ele nascesse"
Há trabalhos mais delicados ou difíceis de realizar?
Os mais difíceis são os trabalhos que envolvam decomposição biológica ou mortes violentas, porque são os que obrigam à utilização de muitas técnicas, produtos e máquinas. Nos casos de decomposição, por exemplo, há o risco de infiltração de fluídos corporais em várias zonas da casa e isso obriga a um conhecimento muito elevado das zonas afetadas, de como as limpar e que produtos aplicar para conseguir, num prazo de dois a três dias, fazer aquilo que a natureza iria fazer em dois ou três anos. Há muita técnica envolvida.
Nos casos de mortes violentas, há um cuidado e uma atenção importantíssima ao detalhe, porque um suicídio com arma de fogo pode ser comparado, por exemplo, com o rebentar de uma lata de tinta vermelha num quarto. Há partículas microscópicas por todo o lado, assim como fragmentos. Basta a porta do quarto para o corredor estar aberta, para isso obrigar a nossa equipa a analisar todo o corredor. E às vezes são partículas tão microscópicas que só ao fim de dois ou três dias é que os técnicos encontram mais uma gota de sangue por limpar.
E há trabalhos impossíveis?
Até hoje, nunca houve. E já tivemos casos complexos, como a limpeza, em 2016 e em 2018, de duas avionetas que caíram. Antes de alguém poder fazer a investigação dos motivos que levaram à queda, tem de se remover a parte biológica para garantir a segurança dos inspetores. O que encontrámos foi um amontoado de ferro e cabos e que, pelo meio, continham também pedaços humanos das pessoas que tinham sido removidas, mas cujos fragmentos ficaram.
Mas haverá situações que marcam.
Somos humanos. Recordo-me de um trabalho, em 2016, no qual estive presente, em que um homem assassinou várias pessoas. Uma das vítimas foi uma senhora grávida. Estive nessa intervenção e, além da Polícia Judiciária, só nós vimos o que estava lá dentro...
O marido daquela mulher, que estava à espera do segundo filho, ficou absolutamente afetado pela situação. Naquele instante, o meu trabalho foi também o de protagonizar alguns momentos de partilha com ele. Como, nestes casos, as pessoas não podem entrar dentro da casa, que está contaminada, fomos nós que fomos escolher a roupa que aquela mulher iria vestir no funeral e até a roupa que já estava guardado para o bebé quando ele nascesse.
São momentos que nos marcam porque, apesar de ser um cliente, é também um ser humano que ali está a falar connosco e que acabou por passar por uma enorme tragédia. Há um elo de ligação que se cria no meio da desgraça e isso toca-nos a todos, claro.