Miguel Krigsner não mete medo. Não faz tremer as pernas a quem o cumprimenta, mesmo sabendo que ali à frente está um dos homens mais ricos do Brasil, com uma fortuna avaliada em perto de mil milhões de euros. Miguel é a pessoa que montou uma farmácia de bairro em Curitiba, estado do Paraná, nos anos 70, e a transformou numa das maiores empresas de cosmética do mundo, o Boticário. Miguel não mete medo, porque não quer meter medo, aliás, se há coisa de que ele tem pena é de já não conseguir saber o nome dos 11 mil trabalhadores diretos do Grupo Boticário. Para ele, a empresa ainda continua a ser uma grande família. Família: talvez a instituição que mais respeita. Os avós maternos, alemães, suicidaram-se em Berlim, após a derrota da Alemanha na I Guerra Mundial. Os avós paternos sentiram o holocausto num campo de concentração. Os pais, um polaco e uma alemã, conseguiram fugir à guerra e meteram-se num avião para o País onde era mais fácil obterem um visto, a Bolívia. E foi lá, em La Paz, que Miguel nasceu, a 9 de janeiro de 1950. Mudou-se para o Brasil aos 11 anos, instalou-se em Curitiba, a sua cidade de sempre, ainda hoje sede do Grupo Boticário, local onde está instalada a maior fábrica de produção da marca.
Foi numa sala de espetáculos de São Paulo que a MAGG conheceu Miguel Krigsner, 69 anos, na altura acompanhado da mulher, Cecília, 59. De fato, mas sem gravata, tinha ido assistir ao concerto de Ivete Sangalo, Jota Quest e Silva, um espetáculo que o Boticário ofereceu a vários colaboradores e a 500 clientes que resolveram partilhar com a marca histórias de amor marcantes. Uns dias mais tarde, reencontrámos Miguel em Curitiba, na sede do Boticário, onde nos deu uma entrevista em que fala sobre a forma como o holocausto mudou a vida da sua família, dos seus tempos de criança, de como transformou uma farmácia de bairro na segunda maior empresa de cosmética do hemisfério sul ou de como o trabalho de Bolsonaro está a ser avaliado injustamente. Miguel Krigsner deixa ainda alguns conselhos para jovens empresários que estão a correr atrás do seu sonho. Leia a entrevista completa, no dia em que faz 33 anos que o Boticário abriu a primeira loja em Portugal, no Amoreiras Shopping Center, em Lisboa.
Vivemos numa época em que há cada vez mais uma cultura de empreendedorismo, pessoas que saem de grandes empresas e começam os seus próprios negócios. Como é que foi ser um empreendedor nos anos 70, para mais num país como o Brasil?
Naquela época as opções eram menores. No Brasil, as pessoas saíam da faculdade e queriam trabalhar em grandes firmas, para serem executivos, ou alguma coisa assim. Começavam como estagiários e procuravam uma ascensão dentro da empresa. De há uns anos para cá, as coisas mudaram. Naquela época talvez fosse mais difícil ser empreendedor.
O que é que o motivou a criar o seu próprio negócio? Foi sentir que havia uma oportunidade ou era mesmo uma coisa que queria?
O meu pai queria que eu fosse médico. Na época foi uma luta. Os meus pais eram sobreviventes da II Guerra Mundial e para eles só existiam duas profissões: médico ou engenheiro. O meu pai sonhava que o filho seria médico. Mas eu não queria ser médico. Fiz os exames vestibulares [de acesso à universidade] e não passei. Se calhar não me esforçava tanto porque não era aquilo que queria.
Não entrou na universidade de Medicina, portanto.
Não. Mas como Farmácia era ligada à Medicina, achei que talvez as oportunidades até pudessem ser maiores do que as de um médico. Até esse momento, trabalhava com o meu pai, que tinha uma loja de roupa, de confeções. Mas o que eu queria mesmo era ser mais independente, e o curso de Farmácia talvez fosse esse caminho, e até mais rápido, porque o demorava menos anos a tirar o curso.
Conseguiu entrar?
Entrei em Farmácia. Mas nos primeiros tempos achei que não era aquilo que eu queria. É duro ser adolescente, sempre sem se saber se se vai para a esquerda ou para a direita. Naqueles tempos, fazia sempre parte da turma do fundo, que são aquelas pessoas que vão para o fundo da sala e ficam lá quase a dormir. Mas quando entrei na faculdade pensei: "É agora ou nunca”. Então, sentei-me ao lado de cinco meninas, que eram CDF [crânio de ferro], e comecei a dar-me muito bem com elas e a estudar. Acabei por gostar de estudar.
Ainda hoje se dá com alguma dessas cinco meninas?
Com as cinco.
Acabou o curso e já sabia o que queria fazer?
Tirei Farmácia Bioquímica, mas na verdade não sabia bem o que queria fazer. Só sabia que não queria ir para análises clínicas. Fiz alguns estágios em Porto Alegre, em farmácias de manipulação, farmácias de receituário e gostei muito. Na altura estavam a abrir a área de Dermatologia e Pediatria, duas especialidades em que é preciso montar fórmulas para cada paciente, o que nos obriga a fazer misturas. Gostei. Voltei para Curitiba, e em 1977 abri a minha farmácia.
E como é que se deu o clique da viragem para os perfumes?
No início eu queria fazer medicamentos, fazer cremes. Tinha-me especializado na parte de cosmética, mais terapêutica, que era por receita médica. Na época, Curitiba tinha uns 15 dermatologistas e tive de viver desses profissionais. Só que por dia entravam oito, dez receitas. Não ia dar, não é? Percebi que essa área não ia ser suficiente para construir uma vida.
Como é que começou a ganhar dinheiro?
Criei alguns cremes, loções, que deixava no balcão da farmácia para aqueles pacientes que vinham buscar as suas receitas. A farmácia era meio deslocada do centro, numa daquelas ruas onde não passa muita gente, por isso a minha única forma de atrair gente era fazer uma farmácia diferenciada. A farmácia era toda azul, sem prateleiras. Até os potes de cremes eu guardava lá atrás, para não se verem. O pessoal começou a entrar e a procurar outras coisas. Como eu tinha esse balcão, as mulheres ficavam às vezes meia hora, 45 minutos dentro da farmácia, à espera que eu terminasse as fórmulas para elas, e não valia a pena estarem a voltar para o centro, então esperavam mesmo ali. Mesmo quem passava por fora olhava lá para dentro e pensava: “O que é isso? Uma farmácia? O que é que faz?”. Enquanto esperavam, eu mostrava-lhes os meus cremes, os meus produtos, e explicava o que fazia cada um.
Fazia isso tudo sozinho?
Tinha uma sócia, mas ela cuidava mais do laboratório e eu ficava no atendimento. Nós vendíamos potes de cremes de 30, 50 e 100 gramas. O pessoal experimentava e muitas vezes queria logo levar o de 100 gramas e eu dizia que não, para levar o de 30, porque não queria que desperdiçassem dinheiro. “Se gostar, depois volta e compra o de 100”, dizia-lhes. Isto passou de boca em boca e a farmácia virou um folclore em Curitiba.
Sentiu necessidade de expandir o negócio?
Achei que se havia um caminho para sair dali seria através de uma loja no aeroporto de Curitiba.
Porquê no aeroporto?
Curitiba é uma das cidades em que o aeroporto mais vezes fecha, por causa do nevoeiro. Havia pessoas que ficavam retidas quatro ou cinco horas no aeroporto até a névoa subir, o que fazia com que houvesse sempre muita gente a circular.
A loja era uma farmácia?
Sim, 90% do que vendíamos eram potes de creme. Mas na época já tinha comprado alguns vidros [frascos], em forma de ânfora, e foi assim que começou a nascer a perfumaria.
Vendia portanto os cremes e os primeiros perfumes a pessoas que iam embarcar. Foi uma forma de levar os seus produtos a outros destinos.
Sim. Foi a partir dessa loja do aeroporto que começaram a aparecer os primeiros pedidos de franchise. Eram sobretudo de grandes executivos que passavam no aeroporto, levavam produtos para as mulheres e elas gostavam muito. Depois, quando voltavam a Curitiba, diziam-me: “Sabe, acho que este negócio é bom para a minha mulher”. Muitas vezes eram mulheres que não trabalhavam, os filhos já estavam crescidos e os maridos queriam arranjar-lhes uma ocupação. E eu comecei a abrir a franchisados. Eu garantia o abastecimento, em exclusivo, dava-lhes o treino, criava um projeto arquitetónico. Para mim era ótimo, porque tinha de vender os meus vidrinhos [frascos].
Isso foi em que ano?
Foi em 1981/82. Aos poucos, foram aparecendo os primeiros franchisados, em São Paulo, em Brasília, depois Rio de Janeiro. Para ter uma ideia, em 1985, quatro, cinco anos depois de começar essa história, tínhamos 500 lojas.
A sua vida mudou por completo.
Já não conseguia fabricar naquela farmácia pequena. Aluguei os três andares do prédio. Mas tinha de fazer as fórmulas, tinha de estudar, de contactar os interessados, inaugurar lojas em todo o Brasil, com distâncias enormes, e ainda tinha uma família a começar. A minha filha nasceu em 1982, a a outra nasceu em 1985. Tinha de ser fabricante, administrador, marido, pai, tudo o que era necessário. Foi uma época muito intensa, mas que permitiu que nos consolidássemos.
Já falou duas vezes desses “vidrinhos”, que são na verdade os famosos frascos de vidro em forma de ânfora, o símbolo do Boticário. Disse que os comprou. Que história é essa?
Na altura, o Sílvio Santos, hoje dono de uma das maiores cadeias de televisão do Brasil, queria fazer um negócio para concorrer com a Avon. Ele achou que com a força da televisão que ele iria ter conseguiria derrotar a Avon. Então, criou uma empresa chamada Chanson. Criaram a marca, o design, trataram da parte de fabricação, estava tudo montado. Só que pouco antes de lançar a marca, ele recebeu a concessão de uma licença de televisão. Então, ele teve de abandonar tudo para se dedicar a montar o canal de televisão. E o único lugar que ele tinha para montar a televisão era o grande barracão onde todo o material da Chanson estava guardado, em São Paulo.
Mas tinha o barracão ocupado com os tais frascos.
Sim. Mas um dia, um representante da área de vidro disse-me: “Oh, Miguel, se você for lá [ao barracão do Sílvio] dar uma olhada há uns vidros para vender”. E eu fui. Era um barracão enorme. Estava lá um gerente que me disse: “Olhe, isso aqui é o frasco ânfora, isso é um pote de creme e há uns negócios para champô”. Havia uns 65 mil vidros de uma coisa, 20 mil de outra, 13 mil de outra. Eu estava no começo, não tinha dinheiro para comprar aquilo tudo, e então disse-lhe: “Eu levo 500 destes, 300 destes…” Aí, o cara olhou-me com cara feia e disse: “É o seguinte: ou você leva tudo, ou não leva nada, porque eu tenho duas semanas para desocupar isto”. Então eu sugeri comprar, mas em 12 mensalidades. Ele foi falar com o Sílvio Santos e quando voltou disse-me: “Ele falou que em 12 mensalidades não dá para fazer, mas em 10 ele topa”. Coloquei tudo em 12 camiões e trouxe para Curitiba.
E o que é que fez a dezenas de milhares de frasquinhos?
Tive de alugar uns espaços para deixar as caixas. Daí para a frente o problema da minha vida era como é que eu ia vender os vidrinhos. Era um monte de vidros e eu tinha um ano para pagar. Foi muito difícil pagar as duas ou três primeiras mensalidades.
Mas já tinha na ideia o que ia fazer com os vidros?
Perfumes. Mas já conto isso. Na altura, pensei: “Bom, qual é a pior coisa que pode acontecer aqui? Se não vou conseguir vender os vidros, vou pegar dois camiões, escrever uma carta para o Sílvio e dizer: “Caro Sílvio, não consegui vender todos os vidrinhos, infelizmente estou com dificuldade em pagar, estou a enviá-los de volta” (risos)
Conseguiu livrar-se dos vidrinhos quando começou a fazer perfumes.
Sim. Só que eram tantos frascos, que tive de desenvolver várias fragrâncias. Só mudava a cor da tampa, do vidro, o nome, a caixinha. Mas a partir daí as coisas começaram a acontecer. As comissárias dos aviões, começavam a comprar sacolas de perfumes. Elas paravam em Curitiba, desciam do avião com sacolinhas e descobri que elas voltavam muitas vezes para as suas cidades e começavam a vender os perfumes que eram de Curitiba, que eram deliciosos. Dobravam naturalmente o preço. E a partir daí o pessoal começou a procurar-nos para abrir lojas. Isso aconteceu muito rapidamente. Em 1990, inauguramos a loja 1000.
Alguma vez chegou a falar com o Sílvio Santos sobre esse episódio?
Não. Nunca. Eu acho que depois, quando ele viu o sucesso, arrependeu-se. Muito tempo depois, ele lançou uma linha de cosméticos, a Jequiti. Mesmo no livro que ele tem sobre os 70 anos da vida dele ele nunca cita esse episódio.
Porque é que acha que ele faz isso?
Eu acho que é arrependimento, mesmo. Para ele é uma derrota.
Nunca falhou nenhum dos 10 pagamentos?
Não, nunca. Aprendi isso com o meu pai. Ele dizia-me: “Pode vender as calças, a camisa, mas nunca deixe de pagar um compromisso", e isso ficou até hoje. Isso também ajudou na construção do relacionamento com os acionistas e com grandes fornecedores nossos. Eu lembro-me de que em 88/89 tivemos uma crise violenta no Brasil e as nossas vendas caíram 70%, assim, da noite para o dia. Não vendíamos, não havia dinheiro e nessa altura reuni-me com 10 ou 12 fornecedores estratégicos nossos e disse-lhes: “Devo-vos dinheiro, verdade, mas se me cortarem o fornecimento esta empresa morre e eu preciso que não o façam”. Eles disseram-me: “Pode deixar, vamos continuar com as entregas e vamos dividir. Depois logo vemos como você vai conseguir pagar”. É assim que se vão construindo as boas relações.
Se tivesse de dar um conselho a um jovem que está hoje a começar o seu próprio negócio, uma startup, que conselho é que lhe dava?
Um empreendedor tem de ter alguma coisa no sangue, tem de ter arrojo. Hoje, podemos pesquisar tudo o que queremos: comportamento do consumidor, o que ele gosta ou não, análise de mercado, tudo. Mas há sempre uma série de informações que não temos e há sempre um grande momento de salto no escuro. Um empreendedor tem de pular no escuro, saltar do precipício sem saber como vai cair, ou se vai voar. De qualquer forma, temos sempre de pensar: "E se der tudo errado? Qual é a pior coisa que pode acontecer? Como é que eu fico?”. E depois é um jogo. Numa startup, hoje, há sempre um momento em que o pessoal tem de se lançar. É muito mais fácil ser colaborador dentro de uma empresa, ter uma carreira profissional, uma vida com mais tranquilidade, dependendo muito mais do teu trabalho do que todo um mercado a que você tem de estar atento e a tudo o que está acontecendo.
Quando começou o seu negócio, sentiu a responsabilidade e o peso de ter de começar a pagar salários a muitas pessoas, pessoas que dependiam de si para viver?
Sim, claro. Mas ajudou-me muito ter uma relação muito presente com os meus trabalhadores. Hoje é diferente. Hoje há coisas que me incomodam, como andar num corredor e não saber o nome de todos os colaboradores. Há uma geração nova que entra na empresa e que me olha como o velhinho que construiu o Boticário, que fez a empresa, só me falta ter uma estátua na entrada. Mas trabalho sempre com amor, que é o mais importante. Hoje temos 11 mil pessoas que trabalham diretamente na empresa. Se somarmos as franquias, são mais ou menos 34 a 35 mil pessoas que dependem de qualquer decisão que saia deste escritório. Fora os milhares que fazem vendas porta a porta. E isso dá uma grande responsabilidade, saber que sou o elemento de transformação na vida de tantas pessoas. Mas também me dá uma grande satisfação quando algumas dessas pessoas me dizem que graças àquele emprego conseguiram que os seus filhos estudassem, que comprassem uma casa, um carro. E as pessoas são muito agradecidas por isso. Ganhar dinheiro é importante, para mim, mas é muito pouco em relação que podemos construir à conta disso.
Qual é o melhor elogio que podem fazer ao Boticário e qual é a crítica que mais lhe custa ouvir?
O maior elogio, ou aquilo que me faz sentir melhor, é saber que sou um agente de transformação da vida de milhares de pessoas, mas também na vida de quem consome os nossos produtos. Nós trabalhamos para aumentar a auto-estima das pessoas. Uma mulher que acorda chateada, deprimida, coloca um batom, é uma coisa simples, mas sente-se logo melhor, ao longo de todo o dia. Com o perfume acontece o mesmo, há um encantamento. Os perfumes deixam memórias, boas e más. Pode lembrar o namorado que foi um sacana com você, e a partir daí já nunca mais quer cheirar aquele perfume. Quanto a reclamações… não gosto, não gosto de reclamações. Reclamações de produto, coisas técnicas, isso resolve-se. Agora, o mau atendimento ao cliente, o assédio moral a pessoas que estão hierarquicamente abaixo, pessoas que não respeitam a individualidade do outro isso deixa-me muito chateado. E são coisas que acontecem.
Já entrou em alguma loja do Boticário sem dizer quem era, sem que percebessem quem era?
Não (risos). Sou uma cara muito conhecida.
Como gostava que fosse o Grupo Boticário daqui a 100 anos?
Gostava que continuasse na liderança de mercado. Hoje em dia, a velocidade a que as coisas acontecem faz com que a empresa tenha de se reinventar muitas vezes para continuar viva. Mas quanto à política de relações humanas, gostava que nos mantivéssemos como estamos hoje. Por mais que tenhamos uma evolução científica, as relações humanas são o que vai segurar tudo.
Algum produto já nasceu de uma necessidade sua? Um perfume que quisesse criar porque queria ter algo com um tom mais amadeirado, algo desse género?
Vários. A Acqua Fresca, por exemplo. Mas a perfumaria mudou muito. Antigamente, era bastante simples, sobretudo no Brasil. A importação estava fechada. Quando abriram a importação, chegaram produtos que tinham muito pouco a ver com os gostos da mulher brasileira. Mas hoje a perfumaria é mais complexa. Nos últimos três anos, estive a trabalhar num projeto de um novo perfume, o The Blend. Sentávamo-nos numa mesa, todos cheiravam e aquilo ainda não estava bom. E voltávamos a mexer no perfume. E isso acontece muito. Temos de ir construindo o perfume para chegarmos a uma fragrância.
E o Miguel ainda se senta à mesa para cheirar os perfumes?
Sim, mas não com todos. Malbec, por exemplo, cheiro todos. Mas sou sempre o último a falar e o meu voto vale por um. Senão não tem graça.
Sai muitas vezes vencido?
Sim. O meu gosto não é universal. Todos gostamos de coisas diferente. Há fragrâncias que eu adoro e outras nem tanto, mas se calharem vendem horrores. Tudo bem.
Tem algum produto preferido?
É difícil. Há produtos históricos, como o Acqua Fresca, o Malbec. O Malbec foi um acidente. No final de ano de 2002, início de dezembro, estava no Rio de Janeiro, tropecei, caí e parti o ombro. Aquilo dói muito. Depois, fui para o Chile para passar o final de ano, com o ombro partido. Ia todo amarrado, com um calor desgraçado. Na altura, fui fazer uma visita a uma vinha, e eu só queria encontrar sítios para ficar encostado. Fui visitar umas caves e fiquei muito impressionado com o ar do vinho, os cheiros, as barricas de carvalho, e aquilo deu-me um clique. Agarrei numa caneta e numa máquina fotográfica e comecei a registar coisas. Anotei o sítio onde os barris eram fabricados, porque achei que aquilo me podia ser útil um dia. Quando voltei para o Brasil, reuni a minha equipa e disse que podíamos misturar os conceitos do vinho com os da perfumaria. Em dois anos o projeto estava pronto. O conceito ficou muito bom. O Malbec nasceu em 2004 e foi logo muito marcante.
De todos os papéis que desempenha no Grupo Boticário, o que é que gosta mais de fazer?
Eu não gosto de números. Olho, entendo, e tal, mas não gosto. Deixo isso para o Artur, que é meu cunhado, irmão da minha esposa. Ele trabalha comigo desde os 14 anos.
Desde os 14 anos?
A minha história com o Artur é engraçada. Quando conheci a minha esposa, ainda antes de namorarmos, eu ia a casa dela e o Artur, que tinha 14 anos, não me deixava em paz. Quando achava que ia poder ficar na sala sozinho com ela, o Artur passava por lá umas 20 vezes. E eu pensei: se esse cara cuidar dos negócios como cuida da irmã ele vai ser um excelente parceiro. O facto de a empresa ser de capital fechado, da família, ajuda muito, porque não temos de estar a dar satisfações a acionistas. Temos uma liberdade grande para fazer planos a médio e longo prazo, e não dependemos de ninguém. Quando erramos, não precisamos de estar a pedir desculpas.
Mas misturar negócios e famílias às vezes corre mal.
Não tem corrido. O Artur, por exemplo, agora é o CEO. Mas eu não quero que ele seja CEO a vida toda. E aqui entra o lado familiar. Ele tem filhos pequenos. Ele demorou a casar (risos). Todas as namoradas dele eram loiras e altas. Casou-se com uma baixinha e morena. Ela é cirurgiã e trabalha tanto como ele. Só que agora têm filhos, e eles têm de aproveitar.
Já tem netos?
Tenho três. Uma com dois anos e um menino com um ano. Adoro brincar com eles, deitar-me no chão com eles, fazer bagunça, gosto muito de teatro, de marionetas, e isso faz-me renascer. É um momento para curtir.
Imagina os seus netos à frente do Boticário, daqui a muitos anos?
Seria bom ter os meus netos à frente do negócio, mas eles têm de fazer o que eles quiserem fazer. Quando construímos algo, gostamos que isso tenha uma sequência, uma continuidade. Mas temos de respeitar as vontades das outras pessoas. Eu fui atrás daquilo em que acreditava. Não quis ser médico, quis ser farmacêutico, tinha os meus sonhos, e os meus netos vão ter os sonhos deles. No fim, a decisão será sempre deles.
Tem alguma saudade de quando estava sozinho e a empresa era uma coisa mais pequena?
Quando as empresas são muito pequenas, conseguimos envolver-nos muito mais em todas as áreas, e isso é muito bom. Hoje em dia, o meu envolvimento é mais na área do produto. Vou a todas as reuniões, e posso passar uma manhã inteira a ouvir falar de maquilhagem, em que se fala de tudo, desde o produto à embalagem, e eu interfiro muito. Não gosto de ultrapassar nenhum gestor, procuro respeitar os espaços de cada um. Não há aquela coisa de “o Miguel mandou mudar” ou “o Miguel não gostou”.
Seguramente já teve várias propostas para vender o grupo. Alguma vez esteve tentado a aceitar?
Não. Isto foi construído com tanto amor… A atração para vender é zero. Eu vendo, mas o que é que eu vou fazer com o dinheiro? Hoje tenho uma empresa boa e saudável, com os seus problemas claro, mas é uma boa empresa. Vou vender, e depois? Entro no mercado de capitais com esse dinheiro? Vou investir noutras empresas? Se calhar vou deixar de ter um problema e passar a ter muitos pequenos problemas.
Como é para um empresário de sucesso viver e crescer durante mais de 30 anos num País como o Brasil, com uma grande instabilidade política e económica, em que já viveu em ditadura, em democracia, já passou por Presidentes como Fernando Henrique Cardoso, Lula, Bolsonaro? Não lhe são conhecidas grandes posturas partidárias. É propositado?
Nunca me envolvi em nada. A empresa é apolítica. Posso ter as minhas convicções, mas não as trago para dentro da empresa, acho isso muito errado. Jamais.
Mas não sente necessidade de se manifestar publicamente sobre assuntos políticos?
Sinto, mas não o faço. São coisas que não devem ser misturadas.
Mesmo na conjuntura atual, em que o Brasil tem um presidente como Jair Bolsonaro e todas as implicações nacionais e internacionais que essa eleição tem trazido ao país?
Eu acho que o Bolsonaro é um boi de piranha. Isto é uma expressão brasileira, mas eu explico. Sabe aqueles rios que têm piranhas e que os fazendeiros têm de atravessar com o gado? Normalmente o que eles fazem é atravessar só com um boi, para as piranhas o atacarem, e enquanto isso eles passam o rio com o resto do gado. Isso é um boi de piranha. O Bolsonaro está a fazer muitas coisas boas e está sendo usado como boi de piranha pelas besteiras que ele fala. E isso tem sido usado para desviar a atenção dos avanços que o Brasil tem tido, e o Brasil tem evoluído. O governo Bolsonaro tem pessoas muito boas, como Paulo Guedes [ministro da Economia]. Mas é preciso deixá-los trabalhar. Nos últimos 14 anos este País foi por água abaixo. Reconstruí-lo é muito complicado, sobretudo quando há tanto vento a tentar derrubar. A oposição faz muitas vezes um trabalho irresponsável em relação ao país.
O que é que gostava de ter feito na vida que ainda não fez?
Em termos empresariais, acho que venho conquistando tudo. Na minha vida pessoal, gostava de me ter dedicado mais às minhas filhas. Elas acham-me um ótimo pai, não fazem reclamações, mas custa-me. Lembro-me de uma vez, quando uma das minhas filhas era pequena, ela estudava dança e havia aquelas festas de final de ano, em que ela ia fazer a apresentação da dança. Eu estavam em Belém e perdi um voo para Curitiba, e não pude ir à apresentação. Foi a única a que faltei, fui a todas as outras. Mas quando falava com ela, ela dizia-me sempre: “Sim, mas naquela você faltou”. Arrependo-me disso. Mas são boas meninas, pessoas responsáveis, meninas incríveis.
Criou em Curitiba o Museu do Holocausto, para que nunca se esqueça o que se viveu naquele período. Gostava que as suas filhas continuassem esse projeto?
Sim. É importante. Eu sou filho de sobreviventes do Holocausto, mas elas já são netas. A construção do museu foi um compromisso para com os mais pais, sobretudo para com a família do meu pai, que era da Polónia. 21 ou 22 pessoas da família dele, entre irmãos, primos, tios, foram mortos de repente. Na época, ninguém sabia o que acontecia àquelas pessoas, elas eram apenas abduzidas do planeta. O meu pai sofria muito com isso. Passou por depressões violentas.
Já visitou algum campo de concentração?
Já. Fui a Auschwitz há quatro anos.
Demorou muito tempo a ir lá. Porquê? Tinha receio? Não queria?
Durante muito tempo tive uma grande resistência, até à própria Alemanha.
E como foi essa visita?
Foi horrível. Estava com um grupo de 14 pessoas, todas filhos de sobreviventes. O guia era um amigo meu que tem um museu em Israel. Ele conhecia todos os detalhes do campo, toda a história. Em Auschwitz há milhares de visitantes, muitas escolas, miúdos alemães de 14 anos. Aquilo é horrível. Há vitrinas com quatro metros só com sapatos, só de próteses de braços e pernas, só de óculos. Aquilo dói muito. É a prova de como o ser humano pode ser terrível.