“Esta viagem surge com a nossa rotina diária. Um dia, em agosto de 2018, a Catarina chega a casa muito cansada do trabalho e, apesar de eu ter a minha própria empresa, também havia dias muito cansativos. Esta rotina fez-nos pensar em algumas coisas”, conta Filipe Almeida, 30 anos, à MAGG. A mulher, Catarina Almeida, continua: “Eu adorava o trabalho que tinha, mas muitas vezes chegava chateada e discutia com o Filipe ou com o Guilherme. O Filipe dizia-me muitas vezes ‘Vamos dar uma volta ao mundo’ e eu dizia sempre que não, porque não teríamos como sobreviver, não fazia sentido. Mas nesse dia, quando cheguei a casa, disse ao Filipe para irmos mesmo dar a volta ao mundo”, diz a mulher de 30 anos. “No próprio dia fomos comprar um mapa gigante e começámos logo a planear.”

Filipe e Catarina Almeida venderam a a empresa de turismo, a casa e algum do recheio. Catarina despediu-se

Até aqui tudo normal — um casal que adora viajar, como tantos outros, decide arriscar e ir correr o mundo. Só que Filipe é um doente renal e tem de realizar tratamentos de hemodiálise três dias por semana, com sessões de quatro horas. Poderia isso ser impeditivo de cumprir este sonho? Nem por isso. O casal Filipe e Catarina preparam-se para ingressar numa das maiores aventuras das suas vidas com o filho Guilherme, de quase 2 anos: viajar pelo mundo durante um ano. Partem esta sexta-feira, 29 de março.

A hemodiálise é uma terapia de substituição renal. É um tratamento que consiste na remoção do líquido e de substâncias tóxicas do sangue, como se se tratasse de um rim artificial.

Filipe tinha 12 anos quando foi diagnosticado com Nefropatia por IgA, uma doença renal autoimune que pode resultar em insuficiência renal. Filipe admite que na altura não teve bem consciência da doença que tinha e também nunca lhe havido sido explicada a possibilidade de um dia ter de fazer hemodiálise. Levou uma vida de adolescente e jovem adulto “normal”.

Mas a doença evoluiu e em abril de 2017 Filipe teve de iniciar a hemodiálise. Tinha 28 anos. “Aí é que tive consciência da doença que tinha.” Dois meses antes, em fevereiro, tinha acabado de abrir uma empresa de turismo. Começou por fazer 6,5 horas de sessão de tratamento. Para poder trabalhar, fazia a hemodiálise durante a noite, da meia-noite às seis da manhã. “Foi um choque muito grande porque a partir daquele instante iria estar dependente de uma máquina três vezes por semana.”

— A nefropatia por IgA (IgA que significa imunoglobulina A, que é um tipo de anticorpo) é uma doença renal causada por um mau funcionamento destes anticorpos, que passam a depositar-se nos rins, e que acabam por causar lesões nestes órgãos;
— Não possui cura, mas existem tratamentos que podem prevenir a insuficiência renal;
— A progressão da doença é muito lenta, mas cerca de 30 a 40% dos pacientes progridem para doença renal;
— Não existe uma causa conhecida;
— Pode ocorrer em qualquer idade, mas o pico de incidência ocorre em pessoas entre 20 e 40 anos.

“Nos primeiros dez dias depois do diagnóstico, senti que a doença poderia ser um impedimento para várias coisas”, confessa. Foram várias as dúvidas que surgiram, nomeadamente como seria a partir de agora para o casal fazer uma das coisas que fazia frequentemente: viajar. Na mesma altura, Catarina estava grávida. “O Guilherme veio dar uma força muito grande para vencer qualquer doença”, afirma Filipe enquanto sorri. “Adaptámo-nos à doença, aprendemos sobre ela, resolvemos todas as questões dentro das nossas cabeças e avançámos com a vida.”

Filipe considera que tudo é baseado no modo como se encara a doença. Isto foi algo que aprendeu na hemodiálise, com alguém que realiza os mesmos tratamentos e que não tem uma perna, é cego e é diabético. “É a pessoa mais bem humorada que já conheci. A sociedade poderia catalogá-lo como ‘coitadinho’, mas este senhor trabalha com eletricidade, repara máquinas, vai com a esposa ao cinema, por exemplo. A mensagem que quero passar é que não nos vejamos como coitadinhos, mas antes percebamos em que é que somos bons, mesmo sabendo das nossas limitações.”

Filipe, Catarina e Guilherme partem esta sexta-feira, 28 de março, para as Bahamas

A condição clínica de Filipe não foi impedimento para nada e na próxima sexta-feira seguem viagem para o primeiro destino desta aventura: Bahamas. Depois segue-se Cuba e México. Esperam viajar por 30 países, percorrer todos os continentes, sendo que para já só os primeiros cinco meses é que estão "totalmente fechados". Durante seis meses — desde agosto até dezembro de 2018 — estiveram a preparar a viagem. Assegurar toda a parte da hemodiálise foi “o maior desafio”.

“Um dos problemas que notámos na preparação desta viagem é que para quem gosta de viajar não há muita informação na internet. Claro que se pesquisarmos por um hotel nas Bahamas vão aparecer-me dez, mas se eu escrever clínica não vou ter nenhuma informação, localização, reviews das pessoas, etc.”, refere Filipe.

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Foi então que tiveram a ideia de criar uma espécie de base de dados para que pessoas que gostem de viajar e que tenham o mesmo problema de saúde possam ter esse tipo de informações. Para este efeito, vão disponibilizar todo o tipo de dados no blogue da família, que terá um separador específico dedicado à hemodiálise.

Para Catarina, e apesar da ansiedade e de ainda haver “muito a fazer”, esta aventura é “mais uma viagem”. Filipe considera que “serão umas férias mais alargadas”. Ao fim de um mês vão ter de regressar a Portugal para festejar o aniversário do Guilherme com a família e também para Filipe fazer algumas análises. “Portanto, a sensação é mesmo ‘Bem, vou um mês fora, volto uma semana para mudar a mala e depois continuar a viagem’”, afirma com uma gargalhada. Depois, durante três meses, vão percorrer a Europa de carro.

Depois da viagem, Filipe e Catarina querem escrever um livro e organizar workshops

Esta viagem só foi possível porque venderam tudo: o negócio de Filipe, a casa e algum do recheio desta. Catarina, que era uma das responsáveis do serviço de apoio ao cliente numa multinacional de móveis e decoração, também se despediu. Contudo, o valor que arrecadaram não dará para realizar a viagem durante um ano, como ambicionam. “Temos um valor para nos suportar nos primeiros meses, até conseguirmos outras parcerias”, diz Catarina.

Segundo dados do Governo, em Portugal, estima-se que quase 20 mil pessoas tenham doença renal crónica e que, por ano, cerca de duas mil pessoas necessitem de tratamento de substituição renal – hemodiálise ou transplante renal.

Todos os tratamentos de hemodiálise ao longo da viagem vão ser totalmente financiados pela marca de cuidados renais Diaverum. Esta é uma grande ajuda, uma vez que os valores da hemodiálise são elevados, embora variem de país para país. Em Portugal, o preço médio é de 250€ por sessão, mas os cidadãos não pagam — nem cá, nem no resto da Europa. "Nas Bahamas, por exemplo, o custo é de 550€ por sessão, portanto, são cerca de 1.600€ por uma semana”, explica Filipe.

Não há planos assegurados para quando voltarem — isto é, se voltarem. “Queremos ver o que vai acontecer. Acreditamos que vão acontecer muitas coisas boas, que vamos ter várias oportunidades ao longo da viagem e também não sabemos se voltamos para Portugal, se nos apaixonamos por algum país, se as oportunidades surgem cá ou noutros lugares”, afirma Catarina.

A volta ao mundo de Filipe, Catarina e Guilherme pode ser acompanha no Instagram e no blogue da família

No entanto, Filipe e Catarina têm a certeza que, depois da viagem, gostariam de escrever um livro e organizar workshops para explicarem como viajar com crianças, como planificar a questão da hemodiálise ou como tirar fotografias em viagens. “Claro que isto não vai durar o tempo todo, mas nos primeiros meses é isto que queremos fazer. Depois logo se vê."

“A doença trouxe-nos uma nova forma de ver as coisas, de relativizar outro tipo de problemas, de valorizar mais a família, o conhecer, o contacto com as pessoas e as experiências”, conclui Catarina. A volta ao mundo de Filipe, Catarina e Guilherme pode ser acompanhada no Instagram e no blogue da família.