Pensar no pior cenário. É esta a principal premissa que leva muitos pais a equacionar a criopreservação das células estaminais do seu futuro filho.
Numa gravidez, que na sua génese representa vida, é natural que não se queira pensar em doenças ou em tudo o que pode correr mal, mas a recolha do sangue e do tecido do cordão umbilical do bebé no momento do parto, e a sua consequente preservação, é, para muitos pais, uma espécie de seguro que esperam nunca ter de utilizar.
“Começámos a pensar seriamente na criopreservação das células estaminais depois de discutirmos o tema no curso de preparação para o parto que estávamos a frequentar”, conta à MAGG a advogada Sandra Amorim, de 40 anos, que estava grávida de Ana Beatriz em 2008.
Interessada pelo tema, e a passar pela sua primeira gravidez, Sandra optou por assistir a uma sessão de esclarecimento.
“Percebemos que, na época, as aplicações ainda eram muito limitadas mas encarámos avançar como uma aposta na ciência, a pensar no futuro e nas aplicações que poderiam vir a surgir com o avançar da medicina. Claro que também o fizemos por uma questão de segurança, embora estivesse longe da nossa ideia alguma vez termos de recorrer a este ‘seguro’ — nem queríamos equacionar essa hipótese”, diz Sandra Amorim.
Aposta no futuro ou investimento desnecessário?
A questão que assola muitos pais envolve muitas dúvidas: avançar ou não com a criopreservação das células estaminais, quais são as indicações e pode mesmo curar um filho de uma doença grave, mortal?
“A opção de preservar o sangue do cordão umbilical, ou do tecido, tem muito a ver com perspectivar o futuro"
“A melhor decisão é uma decisão informada e fundamentada”, afirma João Sousa, diretor de qualidade do laboratório Bebé Vida, que explica que esta é uma atitude, acima de tudo, de prevenção.
“A opção de preservar o sangue do cordão umbilical, ou o tecido, tem muito a ver com perspectivar o futuro. Se olharmos para o passado para tentar perceber que tipo de doenças é que as aplicações das células estaminais já curaram, não vamos encontrar uma situação muito animadora. Temos de olhar para o futuro e perceber o que é que, com a constante evolução da medicina e da ciência, pode acontecer e aí sim, temos tido resultados positivos”, esclarece João Sousa.
De acordo com este diretor, as células estaminais recolhidas do sangue do cordão umbilical estão, neste momento, em fases de estudo, ensaios clínicos e terapias experimentais para a sua utilização no contexto da medicina regenerativa, como paralisia cerebral, autismo e perda de audição adquirida, entre outras patologias.
Luís Graça, presidente da Sociedade Portuguesa de Obstetrícia e Medicina Materno-Fetal, tem uma opinião diferente e não vê validade na recolha das células estaminais. "Não serve literalmente para nada. Esta situação trata-se de um aproveitar de algo cientificamento correto, que é o potencial das células estaminais e as suas propriedades, para um aproveitamento comercial e para fazer os pais investirem dinheiro", explica o médico à MAGG.
Segundo dados cedidos pela Crioestaminal, para além das doenças do sangue (como leucemias e alguns tipos de anemias) e do sistema imunitário, a utilização do sangue do cordão umbilical encontra-se em estudo, em ensaios clínicos (utilização experimental em humanos), em doenças como paralisia cerebral, autismo, perda auditiva, diabetes tipo 1 e lesões da espinal medula, entre outras.
No entanto, Luís Graça afirma que não recomenda a criopreservação das células estaminais às grávidas que acompanha, considera este um investimento desnecessário. E, mesmo quando se fala de futuro, tem as suas reservas.
Esta é uma situação que já se estuda há 15 anos e não existiu nenhum avanço comprovado até à data."
"No presente, não se demonstrou validade seja do que for quando nos referimos à recolha das células estaminais para utilização no próprio. E mesmo numa prespectiva de futuro, temos de perceber que esta é uma situação que já se estuda há 15 anos e não existiu nenhum avanço comprovado até à data."
Apesar de o sangue recolhido do cordão umbilical no momento do parto poder variar um pouco, a quantidade normalmente obtida é de 30 ml. "Temos de ter em mente que as células do sangue não podem ser replicadas em laboratório, logo, aquelas que são colhidas aquando do parto, são as que se vão utilizar", afirma Luís Graça.
O obstetra avança que com essa quantidade de sangue, "quando muito, vamos conseguir tratar alguém até 30 quilos de peso. Assim, não faz sentido nenhum guardar as células durante cerca de 25 anos, é uma patetice, principalmente quando percebemos que muito dificilmente essas mesmas células poderão ser uma ajuda para o próprio no tratamento de qualquer doença. Mesmo que possam ser descobertas aplicações no futuro, estamos a tratar um índividuo com as suas próprias células, ou seja, estas já têm um património genético comprometido".
"Um caso não faz estatística"
“O parto da Ana Beatriz foi muito complicado. Foi um parto induzido e a bebé sofreu uma asfixia, dado que tinha o cordão umbilical à volta do pescoço e este não foi detetado a tempo”, conta Sandra Amorim.
Num parto natural, com recurso a fórceps e ventosas, a bebé nasceu de “morte aparente”, sofreu 20 minutos de asfixia e quatro minutos de paragem cardíaca, sendo evidentes, de imediato, as consequências negativas que essa situação iria causar.
“No momento, não percebemos a extensão e a gravidade das sequelas, mas eu sabia que elas existiam. Era a minha primeira filha, eu nem sabia o que era cuidar de um bebé, quanto mais numa situação destas. E acho que isto é transversal a todos os pais com filhos com paralisia cerebral — é um mundo completamente novo, somos lançados ao desconhecido, sem saber o que fazer, a quem recorrer, que terapias existem”, lamenta Sandra Amorim.
Recorreu à internet para pesquisar o que pudesse auxiliar a melhorar a qualidade de vida de Ana Beatriz. A paralisia cerebral é uma doença sem cura, mas existem terapias que podem ajudar no ganho de algumas capacidades motoras e cognitivas. E foi nessas pesquisas que descobriu o nome da professora Joanne Kurtzberg, uma especialista da Universidade de Duke, nos Estados Unidos da América (EUA), que conduzia vários estudos com recurso a células estaminais para tratamento de doenças como a paralisia cerebral.
“Descobri que existia um estudo a decorrer nessa Universidade e decidi enviar um pedido de informação para saber se a minha filha era elegível. Responderam-me rapidamente, pediram-me todo o historial dela, análises, relatórios do neurologista, etc. Depois do envio desta informação, acabei por receber uma resposta positiva e a partir daí foi só contactar o laboratório onde tinha guardado as células, neste caso a Bebé Vida, e eles trataram do envio da amostra diretamente para a universidade, e suportaram todos os custos adjacentes ao tratamento”, explica Sandra.
A Beatriz chorava constantemente, não suportava o toque. Também a nível da alimentação, era muito complicado. A seguir ao tratamento na Universidade de Duke, parecia outra criança."
O tratamento de Ana Beatriz foi feito em ambulatório, não careceu de internamento, e baseou-se numa transfusão de sangue, sem qualquer tipo de dor para a criança de um ano. Sandra notou várias melhorias no desenvolvimento da filha.
“O que consegui observar foi uma alteração muito significativa ao nível da irritabilidade, por exemplo. A Beatriz chorava constantemente, não suportava o toque. Também era muito complicado alimentar-se. A seguir ao tratamento na Universidade de Duke, parecia outra criança. Ficou muito mais calma, começou a comer melhor, tinha também muito mais intenção em mexer em objetos e mostrou-se mais disponível a outras abordagens, como fisioterapia, por exemplo.”
Apesar das melhorias notadas no caso particular de Ana Beatriz, Luís Graça afirma que "um caso não faz estatística. Na minha opinão, estes casos são lançados para a comunicação social para dar valor à recolha das células estaminais, quando não há nada que nos indique a sua utilidade."
As células do João curaram a leucemia da Inês
O sangue do cordão umbilical é atualmente considerado uma fonte de células estaminais alternativa à medula óssea, de acordo com informação revelada à MAGG pela Crioestaminal, que se posiciona como o único laboratório a nível europeu com uma acreditação internacional concedida pela Associação Americana de Bancos de Sangue.
Pode ser usado para o tratamento de mais de 80 doenças, que incluem doenças do sangue (como leucemias e alguns tipos de anemias) e do sistema imunitário, e ainda doenças metabólicas, tendo já sido realizados 40.000 transplantes com sangue do cordão umbilical em todo o mundo.
No entanto, a palavra leucemia carece de mais explicações e gera muitas dúvidas. “É importante ter bem presente que quando falamos da utilização das células estaminais para o tratamento de leucemia nos referimos à utilização no contexto familiar, isto é, para serem futuramente utilizadas no tratamento de um irmão com os mesmos progenitores, por exemplo”, refere João Sousa.
O representante da Bebé Vida explica que a utilização das células estaminais do próprio para cura de uma leucemia (utilização autóloga) são uma exceção e Manuel Abecassis, hematologista e diretor do Serviço de Transplantação do Instituto de Oncologia de Lisboa (IPO), concorda.
A utilização das células estaminais de um dador saudável e compatível, como um irmão, reforça o efeito de um transplante."
“Na opinião da maioria dos especialistas, a utilização autóloga numa circunstância de leucemia não é recomendada, pois há uma elevada probabilidade de a doença voltar”, refere à MAGG Manuel Abecassis, que adianta que esta situação tem a ver com dois fatores distintos.
“Por vezes, em crianças com leucemia, já na altura do nascimento existem alterações celulares associadas ao aparecimento da doença, estando então essas alterações presentes nas células recolhidas. Por outro lado, a utilização das células estaminais de um dador saudável e compatível, como um irmão, reforça o efeito de um transplante. Já a utilização pelo próprio das suas células tem um interesse muito reduzido”, afirma o especialista.
A utilização das células estaminais de um irmão já foram um caso de sucesso no tratamento de uma leucemia. Foi esse o caso dos irmãos Inês e João Domingos, acompanhados pelo professor Manuel Abecassis.
Ainda em bebé, Inês foi diagnosticada com uma leucemia mieloide crónica e internada no IPO de Lisboa. Devido aos resultados insuficientes dos tratamentos com quimioterapia e à ausência de dadores compatíveis, foi recomendado aos pais, pelo especialista, que tentassem ter outro filho para fazer um transplante de células estaminais do cordão umbilical. Três meses após o nascimento do João, e da recolha das suas células estaminais, Inês, então com três anos, deu entrada no hospital onde foi realizado o transplante. Aos 22 anos, a leucemia ficou para trás e Inês tem apenas de visitar o IPO uma vez por ano, para exames de rotina.
Chantagem emocional
Nem sempre a informação prestada pelos laboratórios aos pais que procuram dados para poderem tomar uma decisão são as mais corretas. Por vezes não são claras, outras vezes raiam o limite da "chantagem emocional", como contou à MAGG uma mãe.
Disseram-me que me iria sentir mal como mãe se alguma vez fosse preciso e não fizesse o kit"
Sara (nome fictício), professora, de 36 anos, estava grávida do primeiro filho quando começou a pensar seriamente na criopreservação de células estaminais. Num primeiro contacto telefónico com um laboratório, neste caso a Crioestaminal, rapidamente desistiu da ideia depois da pressão emocional de que foi alvo.
"Disseram-me que me iria sentir mal como mãe se alguma vez fosse preciso e não fizesse o kit. Fiz algumas questões técnicas ao nível da conservação, certificação e acreditação do laboratório e, depois de um silêncio, disseram-me que isso não era relevante", relata Sara à MAGG.
"Ainda para mais sendo um serviço pago [os preços da criopreservação do sangue e/ou tecido do cordão umbilical variam de laboratório para laboratório, mas estabelecem-se entre cerca de 1.200€ e 2.800€] , deve ser fornecida toda a informação ao cliente. Resultados de estudos, tudo o que for preciso para uma decisão informada. Apenas me responderam que essa informação não era necessária. Foi muito má a experiência que tive neste contacto. Quero acreditar que nem todos os comerciais destes laboratórios atuam desta forma mas comigo foi assim", lamentou Sara.
Ana Canha, diretora de marketing da Crioestaminal, confrontada pela MAGG com este testemunho, declarou: "Nunca diríamos uma coisa dessas. Não será, de todo, a nossa abordagem."
A representante da Crioestaminal acrescentou que as gestoras de clientes, que atendem as chamadas com pedidos de informação, estão preparadas para responder cientificamente a questões técnicas, uma vez que "têm formação superior em Ciências da Vida".
"O nosso objetivo é ajudar os pais a tomarem uma decisão informada, logo, não revejo o conteúdo desse testemunho no discurso da Crioestaminal", refere Ana Canha.
Fizemos a experiência. Sem nos identificarmos como jornalistas, ligámos para quatro laboratórios (Bebé Vida, Crioestaminal, Bebécord e Future Health Biobank) para obter mais informações sobre as indicações terapêuticas das células estaminais do sangue e do tecido do cordão umbilical, com especial ênfase na cura da leucemia com a utilização autóloga (pelo próprio) das células.
A técnica de atendimento ao cliente da Bebé Vida afirmou que as células do próprio “não poderiam significar uma cura, dado que a informação da doença já estaria no sangue e nas células recolhidas no momento do parto”. Mas que poderia significar uma ajuda para um dador compatível, como um irmão.
A Crioestaminal, através da gestora de cliente, à pergunta se podiam as células estaminais do próprio curar uma doença como leucemia, inicialmente respondeu que “sim, as leucemias podem ser tratadas”. Porém, após insistência da nossa parte em obter uma resposta mais completa, acabou por afirmar que “se for uma doença com a qual a criança já nasça, o facto de ter guardado as células estaminais, pode não ser útil, dado que as células já têm a informação dessa doença”.
No caso da Bébecord, a resposta da técnica foi: “Possível é, não existe é uma garantia que se possa dar a cem por cento, dado que depende caso a caso. Mas sim, as células estaminais já foram utilizadas no tratamento da leucemia.”
No entanto, acabámos por receber informação posterior no nosso endereço de email, com a seguinte declaração: “No seguimento do contacto telefónico estabelecido, e em conformidade, venho informar que, relativamente à utilização das células estaminais em contexto autólogo (no próprio) em casos de leucemia em que o bebé nasça já com a patologia, será necessário realizarem-se análises específicas de forma a afastar-se a possibilidade de presença de células malignas nas células estaminais a utilizar no tratamento. Assim, estes resultados clínicos serão fundamentais para se poder assegurar o tratamento, não sendo, logo à partida, excluída essa possibilidade.”
Por último, a Future Health Biobank, à mesma questão afirmou que “a resposta é sim. A ciência está a evoluir bastante e dentro de pouco tempo, em termos científicos, vão ser possíveis muitas coisas que não imaginamos para já. Mas neste momento, as células estaminais tratam essencialmente cancros de sangue, nomeadamente leucemias.”
Já devidamente identificados como jornalistas, voltámos a contactar a Future Health Biobank, a única que nos afirmou claramente que as leucemias poderiam ser tratadas com recurso às células estaminais num contexto autólogo.
Perguntámos a Vítor Almeida, country manager, se a informação passada pela empresa nas suas comunicações era clara quanto a esta questão, reforçando que as células estaminais, no contexto de uma leucemia, seriam apenas para utilização por um irmão, num contexto familiar. “As nossas explicações são muito claras e sim, explicamos que são apenas para tratar no seio familiar, dado que doenças que são genéticas estão presentes nas células estaminais do próprio”, garantiu o responsável. Mas não foi isso que nos foi dito quando não nos apresentámos como jornalistas.