Foi há pouco mais de uma semana que Lena Dunham, criadora e atriz da série “Girls”, divulgou num artigo da Vogue que se tinha submetido a uma histerectomia total (intervenção cirúrgica em que se remove o útero) depois de anos de sofrimento com endometriose.
Apesar de no mesmo artigo a atriz salientar que sabe que esta é uma situação que não lhe garante uma vida isenta de dor, a verdade é que a mensagem geral que acabou por invadir as redes sociais e os sites de notícias assenta na premissa de que Lena Dunham tinha feito uma histerectomia total para curar esta doença.
Mais, o artigo da revista norte-americana coloca no final do testemunho de Dunham uma sugestão de leitura: “Clique aqui para saber mais sobre como fazer uma histerectomia devido à endometriose”. E apesar de esta cirurgia poder estar ligada à doença, é a última solução a que a comunidade médica deveria recorrer.
“A histerectomia não é um recurso de primeira linha para tratar a endometriose e é uma alternativa radical que deve ser muito ponderada com a doente”, afirmou à MAGG Hélder Ferreira, médico ginecologista e coordenador da Unidade de Cirurgia Ginecológica Minimamente Invasiva do Centro Materno-Infantil do Norte (inserido no Centro Hospitalar Universitário do Porto).
O especialista diz que esta cirurgia radical, que impede as mulheres de engravidarem, “apesar de remover a fonte das células de endometriose, não garante que as mesmas continuem a existir noutros órgãos do corpo da mulher, dado que podem ter ganho autonomia com o desenvolver da doença”.
O que é a endometriose?
Trata-se de uma doença crónica e inflamatória, complicada de descortinar a 100 por cento. “É bastante complexa na medida em que ainda existem dúvidas quanto à causa, diagnóstico e tratamento da doença”, salientou Hélder Ferreira.
Esta doença acontece quando as células que constituem o endométrio (forro que reveste a parte interna do útero e que, conforme cada ciclo de ovulação, se desfaz e é expelido pela menstruação) se encontram fora da sua localização normal. “Estas células, também apelidadas de glândulas endometriais, podem ir parar a qualquer órgão da mulher, sendo mais comum que se localizem na pélvis, junto aos órgãos reprodutores, nos intestinos, bexiga e ureteres”, acrescenta o especialista.
Os sintomas são vários, explica Hélder Ferreira, que enumera os principais: “Dor pélvica intensa durante a menstruação, muitas vezes incapacitante e um factor que interfere com a qualidade de vida da mulher; dor durante as relações sexuais, alterações do trânsito intestinal; ardor e dificuldades na micção, sendo que podemos fazer uma comparação destes últimos com os sintomas vulgarmente associados às infeções urinárias”.
E é justamente na interpretação destes sinais que começa a dificuldade em identificar a doença, verificando-se por parte da comunidade médica uma “desvalorização dos sintomas iniciais e, consequentemente, acaba por se protelar o diagnóstico”, salienta o médico ginecologista.
“Ouvi que eram coisas da minha cabeça e modernices”
Susana Fonseca, de 33 anos, presidente e fundadora da MulherEndo — Associação Portuguesa de Apoio a Mulheres com Endometriose sofre com esta doença desde os 11 anos, altura em que ficou menstruada pela primeira vez, e foi sucessivamente ignorada por vários médicos.
“Desde o meu primeiro período que sofria muito com dores e precisava sempre de tomar medicação durante estes dias. Aos 14 anos, comecei a fazer ecografias insistentemente, em busca de uma razão para sofrer tanto. Fui a vários médicos ginecologistas, onde ouvia que as ecos estavam normais, que era normal ter dores durante o período, que esta situação melhoraria quando iniciasse a vida sexual ou quando fosse mãe. A opinião geral de todos os médicos que procurava é que era uma situação normal”, conta Susana.
Com cerca de 20 anos, a agora presidente da MulherEndo começou a sofrer de dores incapacitantes e continuou com menstruações pouco regulares, com bastante fluxo, sofria de vários problemas intestinais e infeções urinárias constantes.
“Pesquisei informação, juntei os pontos todos e deparei-me com a palavra endometriose. Fui a uma consulta com uma ginecologista, expliquei-lhe os sintomas e a ligação que fiz com a doença. Ouvi que eram coisas da minha cabeça e modernices, que devia era ter cuidado com o que comia durante o período e saí do consultório com antibióticos para as infeções urinárias. Desmotivei-me completamente, achei que estava hipocondríaca e passei os dois anos seguintes a sofrer interiormente, a piorar a cada dia que passava e quase todos os meses tinha de me dirigir às urgências para levar medicação na veia, a única que ainda funcionava e me fazia sentir minimamente bem. Num mês inteiro, só era uma pessoa normal durante uma semana.”
“Existem muitos médicos que não estão familiarizados com a endometriose, embora o cenário esteja a melhorar e existam hoje melhores meios de diagnóstico”, afirma Hélder Ferreira, que explicou à MAGG o processo correto de chegar a um diagnóstico e partir para o tratamento.
“É preciso entender se existe uma ligação entre sintomas e menstruação. Ou seja, se a paciente se queixa de dor pélvica intensa, queixas urinárias e intestinais, bem como ansiedade, depressão e fadiga associada, sempre durante a altura da menstruação, podemos fazer um diagnóstico de presunção da doença. Feita esta ligação, o passo seguinte é fazer um estudo completo e tentar perceber a localização e dimensão da endometriose. Os profissionais precisam em primeiro lugar de ouvir as suas pacientes com atenção, valorizar os sintomas e, de seguida, partir para um exame ginecológico e exames complementares como ressonâncias magnéticas e ecografias.”
A luta para ter um bebé nos braços
Esta doença, que afeta 10 a 15 por cento das mulheres em idade reprodutiva, é uma das mais comuns causas de infertilidade — aliás, a prevalência aumenta para cerca de 25 a 45 por cento quando incluímos a população feminina infértil.
“Um terço das mulheres portadoras de endometriose são inférteis ou demonstram dificuldades em engravidar naturalmente”, explica o especialista Hélder Ferreira. “Dado que é uma doença inflamatória da pélvis, a endometriose pode dificultar a junção do espermatozóide com o óvulo. Os quistos de endometriose ou nódulos podem obstruir as trompas, diminuir a reserva dos ovários e também distorcer a anatomia pélvica da mulher. Para além disso, as alterações a nível do endométrio podem dificultar a implantação adequada do embrião, que até pode ser fecundado, mas não consegue instalar-se corretamente nas paredes do útero.”
Ana Pereira, de 38 anos, passou por vários tratamentos de fertilidade na tentativa de engravidar e nunca desistiu do sonho de ser mãe, mesmo depois de um diagnóstico de endometriose num grau já bastante avançado.
“Descobri que tinha endometriose em outubro de 2005, no decorrer de uma ida às urgências. Sempre tive dores intensas durante a menstruação, contrações no colo do útero, tinha até dificuldades em andar nos dias do período. A minha médica de família mandou-me fazer várias ecografias mas nunca encontraram nada de estranho."
Passou cerca de seis anos neste registo até que numa noite, que coincidiu com o final da menstruação, acordou cheia de dores e teve de chamar o INEM. "Descobriram um quisto hemorrágico no ovário, fiquei internada cinco dias a fazer ecografias diariamente e ao terceiro dia de internamento um médico disse-me que tinha uma endometriose já muito avançada e nada mais — não me explicaram o que era a doença nem o nível de infeção, receitaram-me a pílula de toma contínua (também chamada de pílula de amamentação) e disseram-me que, caso quisesse engravidar, deveria fazê-lo o mais depressa possível”, contou Ana à MAGG.
Após este cenário, Ana foi encaminhada para os serviços de genética do Hospital de Coimbra onde realizou tratamentos de infertilidade na tentativa de engravidar durante oito anos, sem sucesso, ao mesmo tempo que continuava a sofrer com muitas dores. Depois de mais exames, descobriu que a doença se tinha continuado a alastrar pelo seu corpo, com nódulos endométricos (também conhecidos por aderências) nos ovários, trompas, vagina, bexiga e intestino.
Os profissionais precisam em primeiro lugar de ouvir as suas pacientes com atenção, valorizar os sintomas."
“Fui encaminhada para uma primeira cirurgia para tirar o quisto inicial que, após os anos, tinha aumentado consideravelmente e já tinha cerca de cinco centímetros. Tiraram todas as aderências que conseguiram mas, quando chegaram ao intestino, abriram e fecharam sem fazer nada. O estado de evolução da endometriose era tal que não mexeram ‘por risco de morte da paciente’, como cheguei a ler na minha nota de alta”.
Não há cura, mas há tratamento
A endometriose não tem cura, mas pode ser tratada — e a laparoscopia (cirurgia praticada com endoscopia da cavidade peritoneal), segundo os especialistas mais dedicados à endometriose, representou um avanço muito considerável no tratamento da doença.
Se removermos a causa, podemos tratar a doença."
“Esta técnica permite identificar com facilidade os focos da doença e será sempre a via preferencial de tratamento, já que permite a visualização em alta definição das estruturas anatómicas”, adianta Hélder Ferreira, especialista do Centro Materno-Infantil do Norte.
“A laparoscopia permite-nos remover os nódulos em diferentes localizações dos orgãos, desde que estejam em zonas que não ameacem o funcionamento correto dos mesmos, e ao retirarmos esses implantes que muitas vezes estão a comprimir intestinos, a invadir a bexiga e a prejudicar a função renal, conseguimos tratar a endometriose. Sem querer ser contraditório, o que causa os sintomas e a dor são os nódulos em diferentes orgãos da mulher, é essa a causa da dor na maioria das vezes — e se removermos a causa, podemos tratar a doença”.
Foi graças à utilização desta técnica que Ana Pereira conseguiu melhorar significativamente e ser mãe.
“Após as cirurgias em Coimbra e todos os tratamentos de fertilidade falhados continuei a pesquisar mais sobre a doença e descobri a MulherEndo. Recorri à associação, que me prestou imenso apoio e encaminharam-me rapidamente para consulta com o Dr. Hélder Ferreira, que avançou logo para a cirurgia. Conseguiu reconstruir a minha anatomia pélvica, sendo que uma das minhas trompas já estava completamente obstruída e foi bem sucedido a recuperá-la, limpou todas as aderências da doença e ainda descolou o intestino do útero.”
Ana foi operada em novembro de 2013 na Maternidade Júlio Dinis (atual Centro Materno-Infantil do Norte), no Porto, e engravidou naturalmente pela primeira vez em abril do ano seguinte. Acabou por sofrer um aborto espontâneo, sem ser possível encontrar uma ligação direta entre o sucedido e a doença, mas engravidou novamente em novembro de 2014 e foi mãe de uma menina, a Francisca, hoje com dois anos e meio.
“Após cirurgia, e removidos os focos da doença, através de medicação como a pílula de toma contínua para evitar menstruações (que podem ser uma causa do reaparecimento da doença, em teoria) e vigilância constante com realização de ecografias, as probabilidades de recorrência da doença é baixa”, adianta o especialista.
Hélder Ferreira salienta que “há casos em que a laparoscopia não permite a remoção completa de todas as aderências da doença, dado que muitas vezes esta já está muito avançada, fruto de diagnósticos tardios." No entanto, está convencido "que o futuro nos vai trazer mais respostas adequadas”.
E há realmente casos de sucesso, como o de Ana Pereira: “Após a cirurgia, passei do oito para o oitenta. Fiquei sem dores quase na totalidade e melhorei muito do desconforto que sentia na perna, que era algo que me incomodava muito”.
A histerectomia total nunca deve ser tida como uma cura
Voltamos ao ponto de partida e à notícia de Lena Dunham, que foi submetida a uma histerectomia total após anos a lutar com a dor causada pela endometriose.
“A única vantagem em termos conceptuais de remover o útero é remover a fonte das células endometriais. No entanto, existem casos em que os implantes ganham autonomia mesmo fora do útero e os sintomas persistem”, explica Hélder Ferreira.
Porém, após ser muito ponderada, a decisão de se submeterem a uma histerectomia é a escolha de algumas mulheres, como Susana Fonseca.
“Depois de passar algum tempo a sofrer sozinha, voltei a fazer uma pesquisa aprofundada e percebi que sofria mesmo de endometriose. Encontrei um especialista dedicado com bastante conhecimento da doença e, com 24 anos, tive a resposta que procurava há tanto tempo. Juntamente com o meu relato e historial de exames, o médico observou-me e concluiu de imediato que eu tinha endometriose. Aliás, apenas através da palpação conseguiu encontrar um tumor no septo retal. Fiz uma ecografia e uma ressonância magnética e estes exames confirmaram o diagnóstico e uma situação já muito grave, com nódulos em vários orgãos do meu corpo como intestinos e trompas, entre muitos outros, e também aderências no útero, que se designa de adenomiose (presença anormal de endométrio na camada muscular do útero).”
Fiz uma ecografia e o meu mundo desabou: o inferno tinha voltado."
Após o diagnóstico finalmente confirmado, Susana foi encaminhada para uma laparoscopia bem sucedida, onde conseguiram retirar grande parte das aderências e desobstruir as trompas — no entanto, devido ao avanço da doença e também para preservar o bom funcionamento dos orgãos, ficou com aderências à volta do intestino em que os médicos não mexeram.
Depois da cirurgia Susana melhorou bastante e tomava a pílula contínua para evitar menstruações. Porém, nas paragens obrigatórias da pílula (que não pode ser tomada constantemente durante um largo período de tempo), as dores regressavam com muita intensidade. “A parede do útero em si dói, era um ponto de inflamação de constante dor que, quando não estava disfarçada com a pílula, se tornava novamente insuportável”, conta Susana.
Mas a cirurgia permitiu-lhe engravidar naturalmente e Susana foi mãe em agosto de 2014. Após o nascimento da filha, voltou à toma da pílula contínua e mudou radicalmente de estilo de vida: começou a fazer exercício físico, deixou de consumir carnes vermelhas e produtos lácteos e sentia-se bem.
“Dois anos depois do parto, fui a uma consulta de rotina numa perspectiva de avançar para uma segunda gravidez. Fiz uma ecografia e o meu mundo desabou: o inferno tinha voltado”, desabafa.
A endometriose estava novamente muito avançada. Com os sintomas disfarçados pela pílula contínua e um estilo de vida saudável, Susana não sentira nada.
“Depois de vários exames, percebi que com uma nova laparoscopia ia perder uma trompa e existia um ovário com muitas poucas possibilidades de salvar. E eu não queria fazer tratamentos de fertilidade. As possibilidades de engravidar naturalmente eram redutoras, eu teria de passar por uma nova cirurgia sem garantias que todas as aderências fossem retiradas e que acabasse por aí. Tinha uma filha pequena para criar e quis recuperar qualidade de vida. Foi uma decisão médica e pessoal, muito ponderada por mim e também em casal e acredito que, tendo em conta o cenário, a histerectomia foi o melhor a fazer.”
Tinha 31 anos quando lhe foi removido o útero, aderências e um tumor no recto. Atualmente sente-se bem, não recorre a medicação para a dor mas lida com uma menopausa cirúrgica precoce e tem cuidados com suplementação vitamínica, mas sabe que esta operação radical não garante que se tenha livrado da endometriose para sempre.
“Tenho consciência que hoje estou assim, mas amanhã posso não estar. Não vivo com esse medo, mas sei que é o caso. E não quero de todo passar a ideia de que ‘se resultou com ela, vai resultar comigo’. Foi apenas a minha escolha”, conclui.