A primeira vez que a Joana (nome fictício) tocou num derivado de benzodiazepina tinha 21 anos. Teria sido a mãe a dar-lhe o Bromazepam, a substância química de que se faz o Lexotan. Na altura, estava a passar uma fase difícil porque tinha acabado de sair de uma relação muito longa, que a acompanhava desde a adolescência.
“Aquilo soube-me bastante bem”, diz à MAGG. Começou a roubar comprimidos aos pais, que na altura consumiam este tipo de fármaco. Ia aos bolsos dos casacos, ao fundo da carteira, à dispensa dos comprimidos e, rapidamente, a toma passou a ser diária. Percebeu que não eram todos iguais, mas com a ajuda da Internet montou o puzzle: quando terminava em “bam” eram benzodiazepinas, um tipo de ansiolítico utilizado para tratar a ansiedade e perturbações de sono crónicas, que mal tomado, pode gerar dependência. Há o Diazepam, que corresponde ao Valium, ou o Alprazolam, que é o mesmo que Xanax.
“Eu já tinha um padrão de abuso de cannabis, que me deixava paranoica. O ansiolítico fazia com que deixasse de me sentir ansiosa e, no fundo, potenciava a sensação boa das duas substâncias”, relata. “Senti-me logo dependente. Foi imediato. Aquilo provocava tão boas sensações que eu queria ser dependente.”
Durante 11 anos Joana tomou benzodiazepinas quase todos os dias: “Nem sei como é que me fui aguentando.” Com um quadro de depressão e de ansiedade, “mentalmente instável” e com “tendências adictas”, estes fármacos devolviam-lhe alguma calma, ainda que falsa: “Punham-me a funcionar bem. Não tomava só para me divertir ou dormir. Precisava daquilo para conseguir interagir com as pessoas no trabalho e na vida, no geral”, relata. “Quando não tomava sentia-me mal e tinha de ir beber ou assim. Ficava triste, melancólica, nervosa e confusa.”
“Depois de nove ou dez anos a tomá-los, percebi que tinha de acabar. Aquilo já mal fazia efeito e, para fazer, tinha de tomar doses enormes, que me deixavam meia doente no dia seguinte”, conta.
Na altura não havia tanta consciência do potencial aditivo destes fármacos, nem dos seus sintomas de abstinência física, como tonturas, palpitações, náuseas, confusão ou visão distorcida. Os sintomas da ressaca são duros e o corpo ressente-se. É um estado que “vai e vem” e que impedia Joana de ir para a rua. “Se fosse tinha de beber álcool”, diz.
Hoje está limpa e controla a sua dependência. Mas o processo foi longo. Durou dois anos e foi encarado com “calma e gradualismo” porque o momento da vida em que se encontrava assim o permitiu.
“Fui a um médico. Receitou-me o Valium, porque é o que fica mais tempo no organismo e a eliminação tem de ser gradual, e um antipsicótico para dormir e ficar mais calma porque a ressaca também provoca insónias”, conta. “Se pararmos logo, os sintomas de abstinência são gigantes, especialmente para quem toma doses altas.”
Farmácias que não seguem as regras
Os ansiolíticos só deveriam ser vendidos com prescrição médica. No ano em que experimentou, Joana foi a um psiquiatra, que lhe receitou um destes medicamentos. Apesar de as prescrições terem validade (de um mês), há muitas farmácias que facilitam. Joana admite hoje que nem sabe como é que conseguiu fazê-lo durante tantos anos, mas a realidade é que era possível, desse por onde desse. Chegou mesmo a pedir à avó para comprar por ela.
Segundo o Programa Nacional para a Saúde Mental (PNSM), o aumento contínuo da prescrição de ansiolíticos representa um risco para a saúde pública"
De acordo com dados avançados à MAGG pelo INFARMED, o uso de benzodiazepinas comparticipadas pelo Serviço Nacional de Saúde e dispensadas em farmácia comunitárias diminuiu de 2015 para 2017, indo de 8.210.262 para 8.050.565.
No entanto, de acordo com o relatório elaborado pela mesma entidade em maio de 2017, referente a 2016, “Portugal é um dos países com maior consumo de ansiolíticos, hipnóticos e sedativos”, sendo que “este grupo inclui maioritariamente benzodiazepinas.” O mesmo documento informa que "é o país da OCDE [Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico] com maior consumo reportado de ansiolíticos, hipnóticos e sedativos", utilizando proporcionalmente mais ansiolíticos que hipnóticos e sedativos".
Indica também que "a sua utilização tem vindo a ser condicionada devido ao risco de dependência e habituação num número expressivo de utilizadores, o que dificulta a interrupção do tratamento” e que, por este motivo, “segundo o Programa Nacional para a Saúde Mental (PNSM), o aumento contínuo da prescrição de ansiolíticos representa um risco para a saúde pública.”
Cheguei a ter uma formação noutra farmácia em que diziam que tínhamos de vender tudo, com ou sem receita"
“Os farmacêuticos não podem vender e vendem. Facilitam, muitas vezes porque já conhecem o doente. Mas não há nenhuma boa razão para o fazerem”, diz Viriato Horta, médico de Medicina Geral e Familiar na Clínica Europa, em Carcavelos.
Teresa (nome fictício) é farmacêutica em Lisboa e confirma que é muito comum as farmácias venderem estes fármacos sem receita. Confessa que chegou mesmo a fazê-lo, sobretudo no caso de pessoas mais idosas que normalmente levam prescrição. “Cheguei a ter uma formação noutra farmácia em que diziam que tínhamos de vender tudo, com ou sem receita”, revela. “Depende da farmácia, do chefe que temos e da mentalidade. Mas, sim, a venda de benzodiazepinas sem receita médica acontece muito."
Mais do que por uma questão de dinheiro, a farmacêutica acredita que isto acontece, por um lado, para fidelizar os clientes, “como se fosse um supermercado”, e, por outro, porque há pessoas “mesmo muito mal criadas” que fazem com que os profissionais vendam “porque não têm paciência para os aturar.
De acordo com a mesma, também é comum os médicos indicarem que o consumo do fármaco é para o tratamento de uma doença crónica, o que, aos olhos dos profissionais de farmácia, parece tornar legitima e justificável a venda do produto, mesmo que a receita tenha perdido a validade. Mesmo assim, acredita que este facilitismo está a diminuir, uma vez que é preciso cuidado, “porque o INFARMED está mais atento.”
Os seus benefícios ultrapassam os seus riscos?
É difícil pronunciar. É difícil de escrever. Mas é fácil cair na tentação e exceder o tempo recomendado da toma. As benzodiazepinas, conhecidas também por tranquilizantes e ansiolíticos, são medicamentos que interferem com o sistema nervoso central, “usados sobretudo na redução da ansiedade anormal, diminuindo a sensação de desconforto, mal-estar, irritabilidade”, explica Jorge Miranda, psiquiatra do hospital Lusíadas. “Diferem da ação dos antidepressivos, que atuam sobre as perturbações de humor.” Existem de vários, de diferentes tipos, consoante o tempo do efeito — há de ultra curta, curta, intermédia e longa duração.
De acordo com o mesmo especialista, “os seus benefícios, por terem uma larga margem de segurança e desde que usadas q.b., superam muito os seus efeitos adversos.” Viriato Horta concorda: “Se forem adequadamente prescritas e tomadas nos tempos indicados — no menor tempo possível — suplantam os riscos”, diz Viriato Horta.
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O problema começa sempre com o uso prolongado e é por isso “que o INFARMED não permite que se façam receitas múltiplas de ansiolíticos, mas permite de antidepressivos e antipsicóticos.” Uma toma abusiva cria o efeito de tolerância, o que faz com que, para se obter o mesmo efeito, a dose tenha de ser aumentada”, diz Jorge Miranda.
Apesar dos benefícios no tratamento da ansiedade, a auto-medicação e toma prolongada — que era o que Joana fazia — são um risco pela probabilidade de gerarem dependência. A longo prazo, a utilização abusiva destes fármacos pode deixar marcas a nível cognitivo, sobretudo na memória e confusão mental. Segundo o médico, “estudos recentes referem maior incidência nos adultos séniores”, sendo por isso, um medicamento não recomendado para pessoas mais idosas, bem como para grávidas nos primeiros meses ou mulheres a amamentar. Misturar com álcool “é grave”, porque “aumenta o efeito sedativo, o risco de coma e de insuficiência respiratória.”
“Em geral, o seu uso não deve exceder as quatro a oito semanas, pelo risco de dependência, que está diretamente proporcional ao tempo de uso”, diz Jorge Miranda. De acordo com as recomendações do INFARMED, a utilização destes medicamentos deve restringir-se à ansiedade e insónias patológicas, "evitando-se a sua utilização nas formas ligeiras e moderadas”, com uma utilização “limitada no tempo.”
Viriato Horta avisa que, como qualquer outra droga, “dão habituação” e “vão perdendo efeito”. O mesmo médico indica que, segundo o estudo do INFARMED "Psicofármacos: Evolução do consumo em Portugal Continental", referente aos anos compreendidos entre 2000 e 2012, "tem-se verificado uma subida regular da prescrição dos antidepressivos e uma descida das benzodiazepinas, o que significa que estão a usar menos benzodiazepinas e mais antidepressivos como ansiolíticos."
“A sua paragem súbita pode precipitar uma síndrome de abstinência, ou ressaca.” Jorge Miranda confirma as sensações sentidas por Joana: insónia, inquietação, agitação ou confusão, tremores, sudação, cãibras e tensão muscular.