"Não é à toa que acontece tanto escândalo em Brasília, em que entra e sai Governo e a corrupção continua. Para mudar essas coisas vai demorar muito tempo. O sistema é foda". São estas a últimas palavras de Capitão Nascimento, personagem principal e capitão da polícia militar no filme "Tropa de Elite 2: O Inimigo Agora É Outro". Mas podia muito bem servir como monólogo de introdução a "O Mecanismo", a nova série da Netflix que tem como inspiração a operação Lava-Jato, a investigação que desvendou o maior escândalo de corrupção no Brasil e que ainda hoje aguarda desfecho.
Mas se em "Tropa de Elite 2" o foco está na corrupção policial, e no uso excessivo da violência para combater o tráfico de droga dentro e fora das favelas, na série "O Mecanismo" a mensagem é outra: a ideia de que a corrupção em Brasília, capital e sede federal do governo, está no centro de todos os problemas que o país enfrenta.
Esta é a tese apresentada no primeiro episódio quando Marco Ruffo, protagonista da série, interpretado por Selton Mello, compara a corrupção brasileira ao cancro, e à necessidade de a erradicar antes que se espalhe. "No Brasil, as pessoas pensam que ser policial é subir favela e trocar tiro com traficante. Isso é ser policial burro", continua, assumindo o mesmo tom crítico de Nascimento.
"O Mecanismo", que estreou a 23 de março, baseia-se na obra "Lava Jato: O Juiz Sergio Moro e os Bastidores da Operação que Abalou o Brasil" e conta com José Padilha, criador de "Narcos" e de "Tropa de Elite", como realizador.
A história acompanha o período entre 2003 e 2015 e tem início com a detenção de Robert Ibrahim e João Pedro Rangel, personagens fictícias baseadas em figuras reais da elite brasileira (Alberto Youseff e Paulo Roberto Costa, ex-diretor da Petrobras). As delações de ambos viriam a dar origem ao processo Lava-Jato, que desvendou os esquemas de desvio e branqueamento de capitais, em que estavam envolvidas algumas das empreiteiras mais conhecidas do Brasil bem como altos cargos do governo.
À revista "Veja", o realizador assume o seu mais recente projeto como uma extensão natural do trabalho que tem vindo a desenvolver sobre o Brasil ao longo da sua carreira. "Terminei o segundo 'Tropa de Elite' insinuando que havia uma conexão entre a violência nas ruas e a corrupção na polícia, e a Lava-Jato confirmou isso", continua, não tendo dúvidas que a violência e a desigualdade social não estão assim tão distantes dos crimes fiscais.
Os primeiros oito episódios terminam após a eleição de Janete Ruscov, nome fictício para a figura de Dilma Rousseff, e com uma segunda temporada ainda por confirmar, Padilha tem a oportunidade de estender a narrativa até aos dias de hoje. O governo de Michael Temer, o impeachment de Dilma, os depoimentos de Lula da Silva, antigo presidente do Brasil, e os resultados das eleições de 2018 poderão servir como inspiração para os novos episódios.
A polémica e o apelo ao boicote da Netflix
Como qualquer produção de José Padilha, também "O Mecanismo" está a receber críticas poucos favoráveis devido à forma como o realizador retrata a brutalidade histórica dos contextos que decide abordar.
Foi assim em "Tropa de Elite", em que a figura do capitão Nascimento tinha como objetivo criticar e não idolatrar — como muitos fãs do filme interpretaram —, a violência exercida pela polícia militar. Já em "Narcos", muitos foram os críticos que se mostraram insatisfeitos com a visão romanceada do realizador para a caracterização de Pablo Escobar, o famoso traficante de droga que durante anos causou danos imagináveis um pouco por toda a Colômbia.
A nova série não é exceção e está já a ser acusada de distorcer os factos e oferecer uma visão tendenciosa e contra a Esquerda política do país. No Twitter, as hashtags #CancelaNetflix e #OMecanismoCausando estão no topo das discussões entre milhares de utilizadores. O descontentamento levou muitos a apelar ao boicote da Netflix através do cancelamento em massa das subscrições.
Pablo Villaça, crítico de cinema, defende que a série apresenta "manipulações narrativas desde o primeiro episódio para demonizar a Esquerda", e tornou pública a decisão de cancelar a subscrição da plataforma de streaming, incentivando os seus seguidores a fazer o mesmo. Dilma Rousseff também já reagiu, acusando o realizador de "desonestidade intelectual" na medida em que "mente, distorce e falsifica a história nacional", continua.
Em declarações à revista digital "Brasil 24/7", o realizador deixa claro que a série é "uma obra-comentário, e que na abertura de cada capítulo está escrito que os factos estão dramatizados" para efeitos narrativos. À mesma publicação, José Padilha deixa ainda um ataque à ex-presidente do Brasil: "Se Dilma soubesse ler, não estaríamos com esse problema."