Com mais de meio milhão de exemplares vendidos no Brasil, Raphael Montes é um dos nomes mais conhecidos do thriller contemporâneo em língua portuguesa — e também já conta com um lugar garantido nas estantes das livrarias em Portugal. Ao País, já chegaram títulos como "Dias Perfeitos", "Jantar Secreto", "Uma Família Feliz" e, mais recentemente "Suicidas", que conquistaram todos os leitores com as suas narrativas intensas, finais inesperados e personagens que raramente se esquecem.

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A sua escrita alia o suspense clássico ao psicológico mais sombrio, e já foi, até, comparado a Stephen King no mundo dos livros e a Quentin Tarantino no da televisão.

Isto porque Raphael Montes não se ficou pelo papel: no ecrã, é o cocriador de "Bom Dia Verónica", uma série policial que está disponível na Netflix, e mais recentemente foi responsável pelo argumento de "Beleza Fatal", a primeira telenovela original da HBO MAX Brasil que conquistou Portugal pelo seu melodrama moderno com toques de vingança e crítica social.

Desta forma, esta sua capacidade de transitar com naturalidade entre o guião e o audiovisual é parte do que o torna um contador de histórias digno de ser lido, dominando não só a parte de construir suspense com também a de surpreender. À MAGG, Raphael Montes contou um pouco sobre o seu percurso, as influências que moldaram a sua criatividade, os bastidores da ficção e o desafio de equilibrar entretenimento com histórias que não têm medo de explorar o lado mais sombrio da natureza humana. Se ainda não o conhece, este é o momento certo para descobrir um dos autores mais inquietantes da língua portuguesa.

“Suicidas” foi o seu primeiro livro publicado no Brasil aos 22 anos, mas escreveu-o entre os 16 e os 19. É muito cedo e impressionante, sobretudo pela intensidade dos temas: suicídio, perversidade. Como é que alguém tão jovem mergulha em assuntos tão sombrios?
Essa é a pergunta de ouro, não faço a menor ideia. Eu comecei a gostar de ler por volta dos meus 12, 13 anos. Comecei a gostar de ler literatura policial, Agatha Christie, Arthur Conan Doyle, Cornel Woolrich, Patricia Reisman, que é uma autora que eu adoro. E dali comecei a escrever histórias de violência. O “Suicidas” vem muito de uma vontade de fazer um livro à la Agatha Christie, do estilo “Só Sobraram Dez”, uma coisa assim, em que as pessoas fossem morrendo uma a uma. Mas a pergunta, em vez de ser quem matou, que é a pergunta que você sempre quer saber, seria: por que se matou? Então, era um grupo de jovens que morrem numa roleta russa. Sem motivo aparente.

E a pergunta “porque eles fizeram isso” me parecia uma ótima pergunta, eu só tinha um problema: eu não fazia ideia da resposta. E aí, o que eu fiz foi pesquisar sobre suicídio entre jovens, e também fui pesquisar questões que levavam jovens a suicídio, como gravidez indesejada, sexualidade não aceita pelos pais, depressão. E escrevi o livro, mas sem tanta consciência, sem consciência do alcance e da profundidade de temas que o livro tem. Não foi uma coisa pensada. E, curiosamente, o livro, quando foi publicado, foi finalista de um prémio no Brasil. E o editor decidiu publicar justamente por isso. 

O livro é muitas vezes lido como um retrato da elite carioca — vazia, perdida. Para si, quem é que costumam ser os verdadeiros alvos das histórias? Está a criticar certos aspectos da sociedade ou a espelhar uma geração com estes temas?
Eu acho que um pouco de cada coisa. A minha primeira vontade, quando eu escrevo as minhas histórias, é contar boas histórias, é prender o leitor. Eu gosto muito, quando eu escuto que muitos leitores meus são pessoas que não estavam acostumadas a ler e passaram a gostar de ler. Então, na primeira camada, o que eu tento é entreter. Mas, numa segunda camada, eu acho que a literatura, ao contrário da televisão, ela cria uma relação tão íntima entre o leitor e o escritor que seria quase um desperdício só entreter. 

Eu não gosto do livro que entretém e você coloca na cabeceira e esquece que leu. Não tiras nada de lá. E aí, então, eu acho que numa segunda camada, o que eu tento é não tanto criticar, mas retratar de maneira irónica. É provocar, talvez instigar. E sim, me interessa muito falar da diferença de classes. Acho que no Brasil é um elemento muito forte. No que a gente conhece mais de literatura brasileira e de cinema mesmo, em geral, são histórias narradas de pessoas de origem mais humilde. E eu acho que, de algum modo, tratar da alta sociedade e mostrar, às vezes, a cafonice da alta sociedade, a mesquinhez da alta sociedade, é também falar sobre esse Brasil elitista.

Tem sempre o à vontade de falar sobre assuntos grotescos, pesados, perturbadores - em “Jantar Secreto”, é o canibalismo, que é não só literal como simbólico. O que o atrai para este lado obscuro da natureza humana?
As ideias que eu tenho, em geral, vão nesse lugar provocativo e talvez um pouco obscuro, mas acho que tudo é tratado com certa ironia e sem se levar tão a sério. Ou seja, eu trabalho a sério, mas a história em si é toda uma brincadeira, uma provocação a você que está lendo. E a história do canibalismo, do “Jantar Secreto”, vem muito da questão, como eu falei, da desigualdade social. Eu conheci algumas pessoas da High Society do Rio de Janeiro que faziam parte de eventos exclusivos que tinham sempre umas portas para eventos ainda mais exclusivos. Então, essa ideia de você ser o exclusivo do exclusivo traz uma sensação de superioridade. 

E aí veio essa ideia de que a gente come o bicho porque também ele é diferente, porque nós também nos achamos superiores. Porque achamos que somos diferentes e melhores do que a vaca, a galinha, o porco. Por isso que a gente mata o porco e ninguém sofre. E aí eu comecei a pensar “talvez tenha um certo grupo de pessoas para quem comer algo super exclusivo e delicioso seja o melhor e represente tudo o que essa pessoa quer, que é o poder, a exclusividade”. Então, vem um pouco daí a ideia.

Em “Uma Família Feliz”, muda o foco - entra na mente de uma mulher, no centro da maternidade, da culpa, do julgamento social. O que é que aprendeu ao explorar uma experiência tão intimamente feminina?
Justamente por isso que eu quis fazer, por ser muito diferente do que eu já costumava fazer. Eu a cada livro tento fazer uma coisa muito diferente. No fundo, eu acho que todos os livros têm um grande tema, que é o mundo das aparências. Que é o que você mostra para o mundo e o que você realmente é. Então, acho que isso é comum a todos os meus livros. E, assim como em alguns livros, eu trato de temas mais obscuros e pesados, como o canibalismo, em outros, eu pego em assuntos mais tensos, de suspense, mas com temas um pouco mais leves. 

A vontade de fazer “Uma Família Feliz” vem de tratar de uma ideia que é essa de que a violência está no outro, não em mim. Então, o livro se passa num condomínio desses fechados, protegidos por muros e seguranças e câmaras. E o mundo lá fora é perigoso e lá dentro tudo é perfeito, e eu queria fazer uma violência que vai ganhando caminho por aquele mundo perfeito e como esse mundo perfeito reage a isso. Além disso, no Brasil há toda uma discussão do que pode ser escrito por quem, e há, a meu ver, uma falsa e errada ideia de que o escritor deve escrever sobre aquilo que ele é. Eu não acho isso. Eu acho que um escritor de ficção tem que poder escrever sobre o que ele quiser.

E aí eu falei, “então eu vou, de propósito, fazer um livro, em primeira pessoa, de uma mulher grávida”. E é muito interessante ver as reações, porque há na internet algumas críticas e resenhas de pessoas falando que começaram a ler de má vontade, porque viram que era um homem escrevendo da perspectiva de uma mulher, mas que depois sentiram que eu estava a falar da gravidez delas. E eu acho que essa é a beleza da ficção. A beleza da ficção é que não importa quem é o autor. Importa que o personagem te pegue pela emoção e você embarca naquela história. 

Já em “Dias Perfeitos”, fala de um amor que não é amor - é sequestro, obsessão. A narrativa faz-nos sentir cúmplices do criminoso de uma maneira desconfortável. Sente que, ao escrever estas obras, está a jogar o mesmo jogo de controlo e domínio?
Acho que sim. Acho que escrever thriller tem algo de fazer um show de mágica. Tem algo de atrair a atenção do leitor com uma mão, que nem num show de mágica atrai a atenção do espectador. E com a outra mão, você faz o truque. Você surpreende, vira a história. Acho que a literatura policial tem uma espécie de jogo de provocação com o leitor. Meus livros todos têm finais surpreendentes. Então é aquilo de “será que você vai adivinhar antes que eu tenha que te contar como acaba?”. Tem uma espécie de jogo de dominação. Ainda que, a meu ver, como eu falei, para mim tudo isso é a primeira camada que interessa.

Eu entendo que isso é o que eventualmente pode atrair de início, mas eu espero que tenha um pouco mais para depois disso. Tanto que uma outra provocação que o “Uma Família Feliz” é que ele começa pelo capítulo final. E isso porque eu ouvia muita gente a dizer que queria saber quais eram os meus finais, que me liam pelos finais. Então eu fiz isso para provocar também, porque o que interessa não é qual é o final, o que interessa é como se chega ao final. Ou seja, a jornada até o final é tão importante quanto o final. 

Com estes quatro livros publicados em Portugal nota-se uma escrita muito visual, mas também muito controlada, cada violência tem a sua função. Como é que consegue manter essa estética literária sem banalizar a violência?
Eu acho que a dosagem da violência numa história é inevitavelmente subjetiva. Então não há dúvidas de que há pessoas que vão ler e falar “ele exagera e passa dos limites”. E há outros que vão dizer “não achei nada demais, nem é tão forte assim”. Porque a dosagem de violência, assim como a dosagem de romance e de melodrama e de qualquer outro elemento, é muito subjetiva. Então, há que se dizer que o critério para a dosagem de violência é meu. Quando eu escrevo, sou eu que decido o que eu acho que é demais. 

Eu acho que a cada livro eu também vejo de algum modo uma espécie de maturidade maior em relação ao próprio tema da violência. E bem, para mim o que é interessante é que eu vou mudando como ser humano e isso vai se refletindo no meu tratamento da violência nos livros. Eu tento não banalizar a violência, mas também tento não me importar com os barulhos do politicamente correto e das tentativas veladas de censura que eu acho que existem. Então quando, por exemplo, falam para mim “esse assunto não pode, esse assunto é proibido, isso é perigoso, você pode ser cancelado se falar desse tema” tudo isso me dá vontade maior de falar sobre tudo isso.

Porque eu não acredito que haja temas proibidos, não acredito que tenha limite e acho que o escritor, para ter graça, tem que viver à beira do cancelamento. Você tem que viver provocando as pessoas de tal modo que alguns vão te cancelar e tudo bem, é parte da graça. As outras vão adorar e esse é o jogo, eu acho.

Um dos seus livros que foi adaptado para o ecrã foi “Bom dia, Verónica”, que não está disponível em Portugal (o livro, a série encontra-se disponível na Netflix). Como é que é ver uma obra que deu tanto trabalho e prazer escrever ter ainda mais destaque no mundo da cultura brasileira?
“Bom Dia Verónica” foi uma jornada muito divertida e muito especial para mim, porque parte da graça de fazer literatura, de fazer arte, na verdade, está nos encontros que a gente tem. E o livro me ofereceu um encontro muito legal com a Ilana Casoy, que é uma escritora, criminóloga, autora de não ficção, e desse encontro surgiu trabalharmos juntos e a gente se divertiu muito. Foi um processo divertido escrever um livro junto com alguém. Para mim foi muito mais fácil do que escrever um livro sozinho. Ainda que também teve lá suas dificuldades, porque também você tem que discutir.

Mas eu gosto disso, na verdade, então o “Bom Dia Verónica” foi muito feliz. E do livro a gente teve a alegria de vender para a Netflix, e aí vocês podem assistir aqui em Portugal as três temporadas. E foi o “Bom Dia Verónica” que me transformou em um autor de séries de televisão. Então foi o primeiro lugar que eu tive a oportunidade de mostrar o meu jeito de contar histórias na televisão. Acompanhei todo o processo de elenco, de filmagem, tudo. Então também nesse sentido foi muito feliz e foi uma das maiores séries brasileiras na Netflix. 

“Beleza Fatal” não é o seu primeiro argumento, mas cá em Portugal foi aquele que mais se destacou. Como é que foi o processo de adaptação do escrever em estilo literário para a narrativa da televisão? É que a série também mergulha em temas bastante complexos, e não foi adaptada de nada.
Não, é só da minha cabeça. Eu tenho muitas ideias que eu acho que funcionam perfeitamente só na televisão e não na literatura, e o “Beleza Fatal” era uma dessas ideias. Porque é muito sobre a estética, sobre a imagem, sobre o exagero da imagem. Então, cabia melhor na televisão, e eu sempre fui um apaixonado por novelas. Eu acho que todos os meus livros, além de terem muito romance policial, clássico, eles têm um quê de melodrama, da latinidade brasileira, que herdamos muito, aliás, dos portugueses. 

Do jeito de brigar, do jeito de resolver situações, nos encontros de família. Então, essa fonte forte do melodrama é algo que eu sempre tive, por causa das novelas que eu assisti. Quando eu tive a chance de fazer uma novela como “Beleza Fatal”, quis fazer a novela que eu gostaria de ver. E foi muito feliz em vários aspectos. Primeiro, porque eu tive liberdade total. Então, eu confesso que eu fazia quase um exercício de fazer coisas que eu nunca tinha visto. E eu falei “agora vão me impedir”. E ninguém me impedia.

Se vocês perceberem, a novela, ao longo dos 40 capítulos, vai ficando cada vez mais louca e exagerada. Porque eu fui vendo que eu podia e ninguém iria me segurar. E eu aproveitei isso. E um outro aspecto que foi muito interessante, é que era uma novela para HBO Max, então para o streaming, limitada, de 40 capítulos, todos já escritos. O que me permitiu fazer uma história muito ágil, sem barriga, sem nenhuma enrolação. O que, por sua vez, atraiu um público muito jovem, que no Brasil nunca viu novela. Então, “Beleza Fatal” foi a primeira novela de muita gente. 

A série foi mesmo bem recebida por cá. Sei que já disse que gosta do fim — mas há ainda margem para uma segunda temporada? O que é que ainda podia ser feito naquele universo?
Poderia ser feito de tudo ali, mas eu realmente acho que a história se fecha. Era uma história de vingança, em que a mocinha decide se vingar da vilã, e ao final consegue fazê-lo, mas usando as mesmas armas. E aí se transformando e se perdendo. Para mim, essa é a moral da história. Todo mundo se dá mal, o que não é um final tão comum para uma novela, mas era o final que eu queria. 

Tive essa liberdade. Se é possível continuar? Sim, é. Se eu vou continuar? Honestamente, não sei. Tivemos já conversas de eventualmente fazer um spin-off da família Paixão, de fazer um spin-off do que aconteceu em Roma, de fazer uma continuação, de fazer um filme. Então há conversas acontecendo, de possibilidades, mas nada definido ainda.

Há autores que escrevem para entreter, outros para alertar, outros para confrontar. O Raphael Montes escreve para quê?
Para os três. Eu acho que qualquer um deles, sem o outro, é ruim. Ou seja, quem faz só para alertar, sem entreter, faz livro didático, livro denuncia. Quem só entretém, sem alertar e confrontar, também só entretém. Quem só confronta é um briguento. E os autores que eu gosto, os autores que eu leio, fazem isso. O Ian McEwan, que é um autor inglês que eu adoro. O Ítalo Calvino, da Itália, o Machado de Assis, no Brasil. O Rubem Fonseca, a Patrícia Melo. São autores que entretêm, provocam, confrontam, discutem, tudo ao mesmo tempo. E é isso que prende o leitor.