Os dias começam sempre cedo. Ainda não são 7h e Ana já está ao computador, de volta de um projeto de arquitetura que tem entre mãos. Tem 40 anos, é arquiteta e trabalha por conta própria, algo que exige muita disciplina, para conseguir cumprir os compromissos. Meia hora depois, ouve-se o choro de um bebé. Ana larga tudo e vai abraçar Maria, a filha de 8 meses, que já acordou.
O marido de Ana viajou em trabalho e, durante os próximos dias, Ana está sozinha, tendo a seu cargo os projetos, a Maria, a casa e ainda o cão. “Às vezes nestas alturas passo muitas horas sem comer. É tanta coisa que nem me lembro...”, confessa. Entretanto, são 9h e Ana ainda não tomou o pequeno almoço, apesar de estar pronta para sair de casa, ela e a filha. Durante quase 20 anos, a primeira refeição do dia repetiu-se, 365 dias por ano: leite com farinha láctea. Ana confessa-se uma fervorosa adepta das papas para bebé, desde sempre. Já andava na faculdade e continuava a comer, todas as manhãs, uma papa “grossa e com muita farinha”. Ainda se lembra da risota que foi quando passou três meses em Barcelona para fazer Erasmus e os colegas de casa descobriram uma mala carregada de pacotes de farinha láctea.
Até que um dia isto mudou. Estava na altura a terminar o curso quando surgiram os primeiros sintomas de que algo não estava bem. Sem que tivesse mudado a sua alimentação começou a sofrer de cólicas, acompanhadas de inchaço abdominal. No início pensou que era uma intoxicação alimentar, só que não passou. Durante quase um ano foi a consultas, fez análises e exames, até descobrir a origem do problema: intolerância à lactose. “Chegava a ter de faltar, quando estava mais aflita. Sofri tanto durante aqueles meses que tentei cortar radicalmente com o que me fazia mal. Só que na altura não havia muitas alternativas de produtos sem lactose. Eu já era magra e emagreci uns bons quilos...”, recorda, acrescentando que “até aí não tinha noção de que tantos produtos contêm lactose. Tive de passar as ler os rótulos.”
Ao longo de quase duas décadas, voltou a consumir alimentos com lactose, não de forma regular, mas com alguma frequência. “Quando me sentia melhor, facilitava. Acontecia quase sempre quando estava fora de casa. De vez em quando lá ia um gelado com as amigas, uma sobremesa num restaurante ou um iogurte no bar da empresa.” Arrependia-se sempre quando as crises voltavam.
Ana e Maria estão agora à porta, prontas para saírem de casa. Ana ‘lembra-se’ de algo. Volta para trás e vai tirar do frigorífico um iogurte líquido, que guarda na bolsa. Depois então seguem para o pediatra. “Os iogurtes sem lactose foram uma grande invenção! Passei anos sem comer iogurtes, mas agora fazem parte do meu dia-a-dia. Em média, como dois por dia. Um de manhã e outro ao serão. Cá em casa jantamos cedo e não gosto de me deitar sem comer qualquer coisa, para não acordar com fome. Fico bem com um iogurte. Se for preciso, junto-lhe granola”, explica.
Depois da consulta, o almoço vai ser na casa dos pais de Ana. A mãe é uma cozinheira de mão cheia e também teve de ‘aprender’ a cozinhar sem lactose. No início não foi fácil, mas hoje, as alternativas são tantas que é possível fazer tudo de forma igualmente saborosa, até sobremesas. Hoje, à sua espera, estará o já tradicional bolo de iogurte. É o primeiro bolo que se lembra de ter comido na vida. Quando terminar a refeição e regressar a casa, sabe que levará consigo umas quantas fatias do bolo, que a mãe fará questão de preparar, mesmo que ela não queira, até porque acabou de almoçar e não tem fome. A mãe insiste, e o bolo segue num saquinho. É sempre assim. E ainda bem, que durante esta tarde, com a Maria de um lado e o computador do outro, o lanche iria passar-lhe garantidamente ao lado. As mães têm (quase) sempre razão.