Quando saímos do café onde esta entrevista estava marcada, a primeira coisa que faz é apanhar do chão um saco de papel que tinha servido para um take away do McDonalds. Bebe água da sua garrafa de vidro reutilizada mil vezes e nunca mais comprou uma embalagem de champô desde que descobriu que pode encher a sua a granel.

Eunice Maia abriu em 2015 a Maria Granel, a primeira mercearia moderna onde se pode comprar em quantidades certas e sem plástico envolvido. E mais, todos os produtos são biológicos. Mas não se deixem enganar por esta capa de Wonder Woman da sustentabilidade. Eunice era daquelas que gastava todo o dinheiro em roupa, malas e sapatos e nem sequer sabia o significado da expressão zero waste.

Assume-me como um "antigo desastre ambiental" e é sem medos que admite que a mercearia foi criada simplesmente como uma ideia de negócio do marido, um homem que é "o paradigma do crescimento e do capitalismo". Mas Eunice, juntou ao projeto o seu coração de minhota habituada a ver o pai a compostar quando essa palavra nem existia na boca dos agricultores, e fez da Maria Granel muito mais do que uma mercearia.

Hoje em dia são duas as lojas abertas em Lisboa, cheias de produtos a granel e acessórios para quem quer levar uma vida com menos desperdício. Mas não é por isso que apela ao consumo e diz às pessoas que a solução para ser mais sustentavel está muitas vezes já em casa. "Parece um contra-senso". Mas quem conhece a Eunice percebe que não é.

Cora com elogios, emociona-se com abraços e nada lhe dá mais prazer do que ver mais um dos seus alunos a pousar na secretária uma garrafa que não é de plástico. É que esta merceeira dos tempos modernos é também professora de português e é junto de escolas — e também de empresas — que leva agora o seu conhecimento, não só de línguas, mas também de temas ligados à educação ambiental.

Podíamos dizer que este projeto, que começa em 2015 com a abertura da Maria Granel, culmina agora com o livro "Desafio Zero", editado pela Manucrito. Mas não. É certo que nestas 295 páginas está tudo o que precisa para criar um mundo mais verde, mas há muito mais para fazer e a Eunice vai estar cá para desbravar caminho.

Com quem é que aprendeu a ser sustentável?
Sem que na altura tivesse consciência disso, aprendi muito com o meu pai. Ele era enfermeiro, trabalhava na cidade mas, ao fim de semana, corria para o campo para poder tratar do que era seu. Ele cultivava e continua a cultivar os seus próprios alimentos e, para mim, não há maior prova de respeito pela terra. Ah, e ainda eu era criança e ele já fazia compostagem, longe de mim saber sequer que esse nome existia. Ele chamava-lhe nitreira e ficava afastada de nossa casa. Lembro-me do balde onde íamos depositando os restos de comida e depois lá ia ele, num caminho solitário, tratar dos resíduos. Na altura, eu achava que ele era um extraterrestre e nunca valorizei o que ele fazia. Agora tenho um orgulho enorme.

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Viver no campo ajuda a ser mais sustentável?
Não necessariamente, até porque vemos comportamentos nas zonas rurais de pessoas que não estão despertas para a proteção ambiental. No entanto, o facto de estares no campo dá-te outro respeito pela terra e pela natureza. Dependes do ritmo da natureza, daquilo que ela te dá e, por isso, claro que valorizas mais.

A cidade tira essas raízes?
Tira. O que me aconteceu foi exatamente isso. Eu tornei-me consumista quando saí da aldeia para ir viver para Braga. De repente, tinha um mundo enorme à minha frente, cheia de lojas e centros comerciais.

O que é que comprava mais?
Roupa e calçado. Lembro-me que na altura vivia com amigos de Fafe e no meu aniversário pedi-lhes umas botas de presente. Isto hoje para mim é mesmo estúpido. Estamos a falar de um objeto que tem uma utilidade reduzida e, além disso, o que mostra o afeto dos meus amigos?

Aconteceu algum clique para a mudança ou foi progressivo?
O clique devo-o à Maria Granel.

Mas como é que uma pessoa consumista abre uma mercearia a granel?
A ideia veio do meu marido, que, por ser da área da economia, é o paradigma do crescimento e do capitalismo.

Maria Granel
Na loja, pode econtrar chás, epseciarias, cereais de pequeno-almoço, bolachas, farinhas e até chocolate. Tudo a granel.

Ou seja, a Maria Granel inicialmente era só um negócio?
Quando ele tem a ideia, é uma ideia de negócio. Quando pegamos nela os dois e começamos a sonhar juntos, aproprio-me dela para lhe dar outro sentido. Além disso, eu, apesar de ter sido muito consumista, sempre tive um lado espiritual e contemplativo muito forte. Sempre estive muito atenta aos outros e este projeto é uma forma de me continuar a dedicar aos outros e ao planeta.

Quando começamos a construir a Maria Granel, eu tive abanões sucessivos. Os números do desperdício, os resíduos que todos nós geramos, o impacto ambiental do nosso dia a dia. E foi aí que a Maria Granel deixou de ser só um negócio.

Ainda assim, eu e o meu marido continuamos a ser de dois mundos diferentes. Cada um tem as suas prateleiras lá em casa, por exemplo. Há uns tempos ofereceram-nos um guardanapos bordados, o dele dizia Ministro das Finanças e o meu Ministra do Ambiente [risos].

Conta no livro que tudo começou com o reciclar.
Sim, eu reciclava e a minha consciência estava tranquila. É o que acontece a muita gente. Mas temos que pensar que não vale de nada reciclar quando continuamos a consumir desenfreadamente.

A essas pessoas que acham que reciclar chega, o que dizes?
Para quem vem do paradigma do consumismo, há coisas que não são óbvias. Só depois de parar para pensar é que nos apercebemos de que há um poder muito forte anterior ao da reciclagem e um deles é um recusar. Podes dizer não a muita coisa. E isso, que é a custo zero, tem um impacto enorme. Tens o poder de, perante um cartão, um folheto, um descartável, dizer não.

Toda esta mudança de mentalidade exige algum esforço inicial. Há que prever as situações e planear muito mais. Para eu poder dizer não a umas coisas, tenho que trazer outras comigo, como é o caso dos talheres por exemplo. Mas são gestos fáceis, e que cada um pode fazer individualmente sem ser precisa uma macro mudança.

A sua casa também mudou?
Mudou, mas eu não sou minimalista. Se entrarem em minha casa percebem imediatamente isso. O meu marido adora antiguidades e temos imensa coisa, mas também são coisas que valorizamos muito.

A minha casa mudou sobretudo na cozinha e na casa de banho. A forma como armazeno é diferente e, principalmente, a forma como compro é diferente.

Quais são as principais mudanças?
Se pensar na casa de banho, acho que o facto de usar o copo menstrual é o que tem maior impacto. Só o tirar os tampões e os pensos higiénicos da equação já é um passo gigante. Depois também passei a usar sabonete em vez de gel de banho e compro champô a granel.

Mas não é ainda plastic free?
Não, de maneira nenhuma. Quando começas a caminhada, o zero é o teu arquétipo, mas isso por vezes até gera alguma eco ansiedade.

Sofre com isso?
Muito, principalmente na loja que, por muito que me esforce, continua a ter plástico.

Maria Granel
O livro apresenta-se como um guia prático de redução de desperdício dentro e fora de casa. Custa 19,90€

Como é que se lida com isso?
Eu faço assim: bombardeio aquilo que consigo bombardear. Chateio todos os fornecedores para que reduzam o plástico e vejo até onde podemos ir. Mas às vezes percebes que é impossível ou que vai demorar muito mais tempo do que o esperado. E é preciso respeitar o tempo das pessoas, e viver com o meu marido na mesma casa é a minha maior lição. Ele ontem foi ao supermercado e, para mim, só o facto de ele se ter lembrado de levar sacos de casa já é uma vitória. Não lhe posso exigir que faça o mesmo do que eu. Eu tenho a minha despensa, as minhas prateleiras, a minha dinâmica. Foi a forma de eu conseguir resolver o conflito.

A Maria Granel começou como uma loja e hoje tem um livro nas mãos. Como é que aconteceu este crescimento?
Quando pensamos na ideia, tal como disse, era um negócio. Mas quando abre efetivamente, já está lá o meu coração. Não imaginava esta expansão, mas a verdade é que em tudo o que me envolvo eu dou tudo.

É fácil ter uma loja a granel?
Não, é tramado. Existem imensos impedimentos e limitações. O que existe da parte da higiene e segurança alimentar, por exemplo, é para restaurantes e supermercados, não havia nada referente ao granel. Tivemos que trabalhar com uma empresa de certificação e concebemos uma série de princípios a serem implementados. Ainda assim, há muita coisa que não podemos vender, como o azeite, arroz, algumas farinhas e muito por causa de legislação que parou nos anos 70.

Na segunda loja, em Campo de Ourique, ao granel juntou também a parte do zero waste.
Na primeira loja já tínhamos, mas estava confinado a um armário.O primeiro produto que tivemos foi a escova de dentes de bambu e tudo por sugestão da Bea Johnson, que visitou a loja em 2016.

Depois, aquele armário tornou-se demasiado pequeno e, ao abrir uma loja nova, pensámos que teríamos que ter um espaço maior dedicado aos produtos zero waste. E é lá que fazemos também os workshops.

Desses gadgets ecológicos que vende, quais são os que andam sempre consigo?
Para mim é uma luta fazer este jogo entre a minha vida pessoal e o negócio. É que, por exemplo ainda que eu venda garrafas reutilizáveis, aquela que anda sempre comigo é uma de vidro que veio com molho de tomate da Quinta do Arneiro.

É importante mostrar às pessoas que, muitas vezes, nem precisam de comprar. A sustentabilidade é, acima de tudo, responsabilidade. Tenho uma loja, mas não incentivo ao consumo. O que eu faço no Instagram é, por exemplo, mostrar que chegou um produto novo, mas a seguir mostrar ideias de reaproveitamento para outros tantos produtos. Parece contra-senso mas não é. É que, ao contrário do que possam pensar, eu não demonizo o plástico, sei que é um material cheio de virtualidades. E também não creio que o papel e o alumínio sejam as soluções. Quando vais analisar o ciclo de vida destes produtos até percebes que o plástico tem uma pegada inferior. Os produtos que tenho em loja só são sustentáveis quando comparado com os descartáveis, porque ali encontras materiais compostáveis ou, quando não o são, permitem uma reutilização.

O que muitos não sabem também é que continua a ser professora de português. Como é que se concilia isto tudo?
[risos] Não sei. Aquilo que me prende ao ensino é mesmo os alunos. É eu saber que marco a vida daqueles miúdos e que posso influenciar o projeto de vida deles. Mas há uma parte que me está a deixar num grande dilema, que é eu ver que a escola não está a dar as ferramentas que precisamos para a urgência climática.

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Além do ensino de português, também faz trabalho ambiental nas escolas?
Na minha escola, tento ser uma porta-voz da causa. Muito discreta, que eu nem sequer falo da Maria Granel e quando eles me falam disso eu fico mesmo corada e atrapalhadíssima [risos]. Mas vejo cada vez mais miúdos a levar a sua própria garrafa reutilizável depois de verem a minha. Também os chateio muito com a reciclagem na escola e, da minha parte, imprimo o menos possível.

Tudo o que eu puder fazer numa sala de aula, não impondo mas liderando pelo exemplo, eu faço. E por isso também criei o Programa Z(h)ERO no qual, em equipa, trabalhamos junto de comunidades, empresas e escolas que queiram implementar hábitos e processos mais sustentáveis. Pode ser desde uma palestra ou uma conversa, até ao acompanhamento durante um ano numa escola para a redução do desperdício.

Começou com uma mercearia e hoje a Maria Granel já são dois espaços em Lisboa, uma loja online, um projeto de consultoria e formação e, agora, também um livro. O que falta fazer?
Quero que este trabalho chegue a muito mais pessoas. Para mim é o mais importante.