Já não se viam tantos olhos postos na televisão a ver uma tragédia em direto desde o 11 de setembro. Mas o impensável aconteceu e a catedral de Notre Dame ardeu quase ao ponto do colapso.
Um incêndio que começou nas águas furtadas da catedral e propagou-se rapidamente a grande parte do telhado, levando ao desabamento de um pináculo e à destruição de dois terços da área atingida. Os trabalhos de recuperação vão ser rápidos, até porque estamos a falar do monumento mais visitado de Paris. Além disso, sabe-se já que as famílias de Bernard Arnault e François Pinault — duas das mais ricas do mundo — vão doar 300 milhões de euros para a reconstrução.
Se vai ser como era? Difícil. Ali estavam 850 anos de história a provar que esta não é a primeira vez que Notre Dame é posta à prova. Além de ter sobrevivido a duas guerras mundiais, foi fechada e nacionalizada durante a Revolução Francesa, altura em que se pensou até em demoli-la.
Qual herói da Disney, foi o Corcunda de Note Dame que a salvou. Isto se quisermos romantizar uma história já por si cheia de amor. Mas a verdade é que se não fosse o conto de Victor Hugo, talvez onde hoje está a catedral estivesse uma placa a contar que ali chegou a estar uma das mais preciosas obras do gótico que este mundo já viu.
Foi precisamente para salvar o monumento, fortemente degradado, que o escritor começou a escrever "Notre-Dame de Paris", em 1831, mais tarde adaptado várias vezes ao teatro e ao cinema já com o nome de "Corcunda de Notre Dame".
No capítulo intitulado "Nossa Senhora", Victor Hugo escreveu: "Ainda hoje a igreja de Nossa Senhora de Paris continua a ser um sublime e majestoso monumento". E continua. "Por mais majestoso que se tenha conservado com o tempo, não se pode deixar de se indignar ante as degradações e mutilações de todo tipo que os homens e a passagem dos anos infligiram a este venerável monumento".
É que durante a Revolução Francesa, entre 1789 e 1799, a igreja foi pilhada e 28 estátuas fora destruídas.
Acabou por ser transformada num templo do Culto à Razão, uma espécie de religião da nova República. Como consequência, as estátuas da Virgem Maria foram substituídas por esculturas da Deusa da Liberdade, e as cruzes removidas. Mais tarde, esteve fechada e chegou a ser apenas um depósito para bens alimentares.
Além disso, alguns dos sinos originais da torre norte foram derretidos durante a revolução para o fabrico de balas de canhão.
O mau estado de conservação levou as autoridades a pensar em demoli-la. A ideia era utilizar as suas pedras para a construção de novas pontes na cidade.
Este crime contra o património histórico só não aconteceu graças à popularidade do romance “Notre-Dame de Paris”, publicado por Victor Hugo em 1831.
Ainda que no nosso imaginário o Corcunda seja a personagem principal, na obra original Victor Hugo pôs a catedral como protagonista. São centenas de páginas com descrições do espaço, bem como da sociedade parisiense daquela altura.
Ainda que a visão anticlericalista da obra não tenha agradado ao Vaticano e a algumas das vozes literárias com mais crédito na época — Balzac disse que o livro era um “dilúvio de mau gosto” e Chateaubriand reclamou que, depois de lê-lo, não poderia mais rezar no local, tal era o ataque que fazia à religião — Victor Hugo cumpriu com o seu objetivo.
Foi lançado um concurso para a reabilitação do edifício e, finalmente, em 1844, começam as obras lideradas pela dupla de arquitetos Eugene Viollet-le-Duc e Jean-Baptiste-Antoine Lassus, que duraram 23 anos.
O cuidado em preservar a obra intacta foi mantida desde aí. Em 1963, por iniciativa do ministro da Cultura, André Malraux, e para marcar os 800 anos da Catedral, a fachada foi limpa, voltando-se assim à sua cor branca original. O conjunto de quatro sinos do século XIX foram derretidos e transformados em novos sinos de bronze em 2013, para celebrar o 850.º aniversário do edifício. Foram projetados para recriar o som dos sinos originais da catedral do século XVII.
No final de 2018, deu-se início a uma obra de renovação que exigiu a remoção temporária de estátuas de cobre do telhado, assim como de outros elementos decorativos. E foi exatamente essa obra, que se prolongou até este ano, que salvou as representações de 12 apóstolos e quatro evangelistas, que tinham sido retiradas da catedral na passada quinta-feira, 11 de abril.