“Depois de mais de 15 dias em coma acordei, mas não me lembro de nada, nem das pessoas a falarem comigo. Segundo os médicos e os meus familiares, eu estava de olhos abertos, mas estava com um olhar vazio. Estava lá, mas era só o corpo. Não falava, mal me mexia”, recorda Vanessa Borges, 30 anos, à MAGG. Em maio de 2015 sofreu um acidente de viação que a deixou em coma. Tinha 26 anos.
Não tem memórias até um mês antes ao acidente. “O que sei foi aquilo que a minha família me contou”, diz Vanessa Borges, natural de Midões, Coimbra. E nem sequer se lembra do que aconteceu naquela noite. “O mais difícil foi saber o que se tinha passado comigo e não me lembrar de nada.”
Foi um senhor que ia a passar de mota pelo local que ligou para o Instituto Nacional de Emergência Médica (INEM). Até hoje não sabem quem foi. Vanessa foi de imediato para os Hospitais da Universidade de Coimbra e hoje não tem dúvidas em afirmar que esteve entre a vida e a morte. De acordo com o que os pais e irmã lhe contaram, na viagem para o hospital, a ambulância do INEM teve de parar três vezes parar que fosse reanimada. Vanessa sofreu um traumatismo crânioencefálico e foi induzida em coma profundo por causa das dores.
“Um traumatismo crânioencefálico é uma situação em que uma pessoa foi vítima da aplicação de elevada quantidade de energia na cabeça, como pode acontecer com uma queda ou num acidente de viação, por exemplo”, explica Jorge Nunes, Coordenador da Unidade de Cuidados Intensivos do Hospital Lusíadas, em Lisboa.
Agora já encaro melhor [a situação], mas lá no fundo ainda me sinto desamparada com a vida que tenho agora. Quase quatro anos depois ainda não é fácil. Tenho que saber lidar bem com isso".
Dependendo da violência do impacto, este mecanismo vai provocar alterações mais ou menos graves da própria estrutura do tecido cerebral. Assim, “quanto maior for a violência do impacto, maior é a probabilidade de destruição de cérebro e, assim, de condicionar alterações do seu funcionamento de gravidade crescente, que podem, inclusive, levar à morte imediata.”
Vanessa deixou de falar, de comer, de andar. Toda a parte esquerda do corpo ficou afetada e teve ainda de ser submetida a várias operações. Depois de cerca de quatro meses no hospital, foi transferida para o Centro de Medicina de Reabilitação da Região Centro — Rovisco Pais, na Tocha, em Coimbra. Começou a ter sessões de fisioterapia diariamente, bem como terapia da fala, terapia ocupacional, terapia neuropsicológica ou hidroterapia. Uns meses depois de acordar do coma, as primeiras palavras que disse foram “ai” e “mãe”.
Atualmente, Vanessa Borges está “em fase de recuperação”, mas as melhorias são evidentes. “Continuo a fazer as terapias, exceto a hidroterapia, mas faço tudo com menos frequência, porque estou melhor. Também já falo muito melhor. Tenho menos força na mão esquerda, perdi alguma sensibilidade, mas faço tudo em casa desde limpezas à minha higiene pessoal".
Não foi fácil lidar com tudo o que lhe estava a acontecer, quando levava uma vida “normal”. “Era uma rapariga muito mexida e alegre, não parava, estava sempre a trabalhar e sempre disposta a ajudar os outros.” Passou por diversas fases. No entanto, não esquece as amizades que lhe “voltaram as costas”, a “revolta” que é não poder conduzir por causa da epilepsia e “estar sempre dependente de terceiros neste aspeto é frustrante”.
“Agora já encaro melhor [a situação], mas lá no fundo ainda me sinto desamparada com a vida que tenho agora. Quase quatro anos depois ainda não é fácil. Tenho que saber lidar bem com isso”, conclui.
Um AVC deixou Carlos em estado de coma
Ao contrário de Vanessa, Carlos lembra-se de tudo. “Tenho uma memória ainda tão fresca de tudo que é como se acontecesse todos os dias. Recordo-me, por exemplo, de os médicos comentarem entre eles: ‘temos de o operar já senão ele vai morrer”, começa por dizer Carlos Nunes, de 55 anos, à MAGG.
Em 2015, um Acidente Vascular Cerebral (AVC) deixou-o em estado de coma durante quase três semanas: primeiro, durante quinze dias, depois, o AVC tornou-se hemorrágico e foi novamente induzido em coma mais uma semana. “Antes disto acontecer, eu já andava com o sistema nervoso um pouco alterado e tenho quase a certeza que foi isso que levou ao AVC.”
“O coma diz-se induzido quando são administrados medicamentos com o objetivo de retirar a consciência”, clarifica Jorge Nunes, Coordenador da Unidade de Cuidados Intensivos do Hospital Lusíadas, em Lisboa. Pode acontecer quando é preciso realizar algum procedimento, como uma operação cirúrgica, e é necessário que a pessoa fique “profundamente inconsciente para que não tenha dores e para deixar fazer o que é preciso.”
Parecia que tinha deixado de ter noção do que existia ou não. Eu continuava a alucinar, a ver e a ouvir coisas que não existiam, estava muito confuso.”
Depois de acordar do coma, Carlos Nunes, natural do Luso, Mealhada, foi submetido a uma operação “para desinflamar o cérebro”. Teve sempre consciência do que se estava a passar. “Quando acordei estava na enfermaria. Lembro-me de colocar as mãos na cabeça e perceber que a tinha toda ligada. Perguntei de imediato o que é que tinha acontecido comigo e lá me explicaram que tinha sido operado.”
Carlos conta que depois desta operação começou a delirar e a ter “alucinações acordado”. Esta situação arrastou-se ainda durante alguns meses, mesmo depois de estar no Centro de Medicina de Reabilitação da Região Centro — Rovisco Pais, na Tocha. “Parecia que tinha deixado de ter noção do que existia ou não. Eu continuava a alucinar, a ver e a ouvir coisas que não existiam, estava muito confuso.”
Ao longo de nove meses foi lá que viveu. Fazia fisioterapia diariamente, com uma sessão de manhã e outra à tarde. Depois, seguiu para o Centro de Reabilitação Profissional de Gaia onde esteve mais seis meses. Ficou com todo o lado esquerdo do corpo afetado e anda com muita dificuldade. Sabe que nunca mais voltará a mexer o braço esquerdo, está “morto”.
Carlos tinha uma vida “normal” e era madeireiro de profissão. Agora, desempregado, gostava de encontrar uma atividade profissional compatível com a sua condição. “Gostava de voltar à vida militar onde já estive, nem que fosse para uma secretaria ou arrecadação”, confessa. Sabe, no entanto, que não poderá voltar a fazer paraquedismo ou mergulho, os seus hobbies preferidos. “Foi muito difícil perceber que não podia fazer tudo aquilo que mais gostava".
Para Carlos Nunes, estar dependente de terceiros para realizar as necessidades do dia a dia é o “mais difícil de tudo”. “Nunca gostei de depender de ninguém”, acrescenta.
“Fui vítima de erros meus”
Estávamos em março de 2010 e André Moura Pereira, agora com 29 anos, estava prestes a viver a experiência que lhe mudou a vida. “Fui vítima de erros meus”, começa por dizer o jornalista, natural de Coimbra. Nos primeiros dois dias daquele mês, André participou num torneio universitário de andebol na Covilhã. Não andava a dormir muito nem nas “melhores condições”. Na noite de 2 de março foi a um jantar de despedida de um amigo que ia para Erasmus.
A mistura de sono, cansaço, álcool e excesso de confiança por já estar na rua de casa fizeram com que adormecesse."
“Ainda não tinha recuperado do cansaço do torneio ou da falta de sono da noite anterior e lembro-me de pensar que, por isso, não queria demorar muito e ia voltar para casa cedo. levou o carro, mas a festa acabou por se prolongar. “A mistura de sono, cansaço, álcool e excesso de confiança por já estar na rua de casa fizeram com que adormecesse”, recorda.
Depois do acidente, o seu estado era considerado muito grave. Sofreu um traumatismo craniano e esteve em coma durante cerca de um mês. “A minha primeira memória depois do coma é do dia 13 de abril — se não estou em erro — em que já estava na ambulância a caminho do cento de reabilitação.”
Segundo Jorge Nunes, Coordenador da Unidade de Cuidados Intensivos do Hospital Lusíadas, há que ter cuidados especiais quando um doente se encontra em coma, uma vez que não é “capaz de reagir a nenhum estímulo do ambiente, não se consegue defender ou manter as suas necessidades básicas, como beber água ou alimentar-se”.
Da mesma forma, estes pacientes devem estar em áreas hospitalares específicas para tratar doentes em situação crítica, como as Unidades de Cuidados Intensivos, que têm “capacidade não só de vigiar apertadamente estes doentes”, como também facultar “todos os cuidados e tratamentos de suporte de vida” de que precisam.
Foi uma questão de aprender com o erro e seguir em frente. Mas também tenho noção da sorte que tive e esse foi um facto que pesou e pesa para tomar decisões importantes."
André Moura Pereira, na altura com 20 anos, não se lembrava do que lhe tinha acontecido. “O resto para mim apagou-se.” Ficou sem qualquer memória dos momentos imediatamente anteriores ao acidente. Foi recuperando a memória aos poucos com a ajuda da família e dos amigos. “Nos primeiros dias, o meu pai esteve sempre ao meu lado e ia respondendo às minhas muitas questões. Nessa altura era como se voltasse a ser uma criança. Tinha muitos porquês.”
Esteve durante cerca de dois meses no centro de reabilitação, onde fez fisioterapia e teve acompanhamento psicológico. “Estive em contacto com pessoas que não tiveram a minha sorte e ficaram piores condições que eu. Esse convívio despertou em mim uma sensação de agradecimento. Tive sorte com o que o destino me guardou.” A família e os amigos — que todas as semanas o visitavam no centro de recuperação — tornaram o processo mais fácil.
Ainda assim, André teve de começar de novo. “Foi um verdadeiro reboot, inclusive, para andar. No início, ainda nos HUC, só me deslocava com a ajuda da cadeira de rodas. Felizmente, tive uma recuperação rápida, dada a gravidade do meu traumatismo craniano. Ainda fui ver a maior parte do Campeonato do Mundo de Futebol de 2010 a casa”, recorda.
Passados nove anos desde o acidente, André Moura Pereira está “bem” e são poucas as sequelas. “Uma vez que parti a clavícula esquerda, no inverno ressinto-me, mas logo me lembro da sorte que tive. A minha vida, entretanto, deu uma volta e ganhou um rumo.”
Daquela noite de março de 2010 fica um ensinamento para a vida. “Foi uma questão de aprender com o erro e seguir em frente. Tenho noção da sorte que tive e isso mudou a minha perspetiva de ver as coisas e as pessoas. Acho que agora a minha melhor característica é determinar o que é realmente importante para mim: ser feliz”, conclui.