As pessoas sem-abrigo representam 0,1% da população portuguesa. São quase 11 mil a viver em situação sem abrigo em Portugal. Os dados são relativos a 2022 e representam um aumento de cerca de mais 1000 pessoas a viver na rua, comparativamente com o ano anterior. De acordo com os dados apurados pela Estratégia Nacional para a Integração de Pessoas em Situação de Sem Abrigo (ENIPSSA), “sabemos que temos mais de 10.700 pessoas sem abrigo, quase 6.000 sem teto e as restantes estão sem casa”, adianta à MAGG a antropóloga e investigadora Isabel Baptista, que também colabora com a ENIPSSA.
A 8 e 9 de novembro, temas como reintegração social, Housing First, harm reduction e outras temáticas relacionadas com as pessoas sem-abrigo vão ser discutidas no É Um Congresso, o primeiro fórum organizado pela associação CRESCER. Isabel Baptista e Luísa Gomes, com quem a MAGG conversou, serão duas das oradoras presentes na conferência, que reunirá especialistas de vários países.
Em Portugal, os projetos de Housing First já tiraram 700 pessoas da rua. Luísa Gomes é uma delas. A premissa do Housing First preconiza que, para reintegrar o sem abrigo na sociedade, para lhe dar perspectivas de futuro, é preciso dar-lhe uma casa. Uma casa definitiva, não um abrigo temporário. Esta estratégia, em conjunto com um acompanhamento estruturado, tem dado frutos em países como a Finlândia, a Holanda e a Escócia. Mas ainda há um longo caminho a percorrer.
De sem-abrigo a vice-presidente de associação de apoio a mulheres vulneráveis em menos de dois anos
“Tenho uma história que você nem queira saber”, diz Luísa, entre gargalhadas. E tem mesmo. A história desta mulher de 55 anos é a prova de que a ideia, muitas vezes preconceituosa e baseada em estereótipos, que temos das pessoas sem abrigo, não corresponde à realidade. Nascida em Timor, filha de mãe timorense e pai português, major do exército, Luísa viveu naquela antiga colónia portuguesa até 1975, ano em que se muda para Portugal, para casa da avó paterna.
Uma vida marcada pela violência, toxicodependência, prostituição, 15 anos nas ruas e uma passagem pela prisão não lhe tiram nem o sorriso do rosto nem a vontade de ajudar os outros. Há um ano, um grupo de mulheres que já foram sem-abrigo juntou-se e, com a ajuda da CRESCER, criou a SOMOS, da qual Luísa é vice-presidente. Esta associação, ainda a dar os primeiros passos, tem como objetivo defender os direitos das mulheres em situação de sem abrigo e expostas a violência em contexto de rua.
Luísa recebe-nos na sua casa em Carnide, freguesia de Lisboa. Um pequeno apartamento com o essencial, mas um verdadeiro palácio para quem passou quase duas décadas a dormir ora ao relento, ora num prédio devoluto. Sem vergonha e com uma lucidez impressionante, a vice-presidente da SOMOS conta-nos que caminho percorreu até chegar aqui.
“Andei 15 anos perdida nas ruas, na droga, na prostituição. Estive presa dois anos, o último em precárias, por causa do meu comportamento. Trabalhava na cozinha. Digo-lhe uma coisa, foi uma grande experiência. Há males que, às vezes, vêm por bem. Na minha situação, a prisão foi uma forma de me salvar. Eu estava muito agarrada às drogas nessa altura”, conta.
Marijuana, heroína, cocaína e álcool foram companheiros da agora vice-presidente da SOMOS durante muitos anos. Ter estado presa foi um passo decisivo para se livrar das dependências que tinha na altura, a cocaína e o álcool. Isto porque, no passado, a dependência da heroína já a tinha levado várias vezes a centros de desintoxicação. “Tirei muitas coisas boas dali para a vida. Uma delas que o crime não compensa. Quero é ser uma cidadã normal e não voltar a ver aquele sítio nunca mais na vida”, conta.
Mas o ponto de viragem de uma vida absolutamente normal para a rua aconteceu quando ainda era muito jovem. Luísa cresceu no Cacém, apaixonou-se e casou-se aos 16 anos e, um ano depois, foi mãe pela primeira vez. “O casamento só durou seis anos, a minha avó começou a ter problemas de demência, os meus padrinhos internaram-na num lar e depois o pai do meu filho não me dava dinheiro nenhum. Comecei a trabalhar no hotel Ritz e decidi deixá-lo. Era camareira e, como falava francês e inglês muito bem, adorava”, recorda.
Uma mudança na gestão do hotel fez com que Luísa, juntamente com a maioria dos funcionários, fosse despedida. “Fiquei desempregada, estava a viver num quarto com o meu filho e foi quando me iniciei na vida da noite”, recorda. O trabalho numa boîte rendia-lhe 3500 escudos por noite [17,45€], “mais comissões”. “Ganhei muito dinheiro lá”. Nessa casa, onde começou a fazer alterne, conheceu o homem que viria a ser o pai do segundo dos seus quatro filhos. Começaram a viver juntos mas, como recorda Luísa, “ele tinha uma vida dupla: era bancário, mas também era traficante (risos)”.
Depois de o filho nascer, o companheiro é detido e os sogros ficam-lhe com o filho. “Puseram-me na rua. Fiquei novamente com uma mão à frente e outra atrás”. Luísa volta a trabalhar na noite e o filho mais velho, já com 11 anos, acaba por ser institucionalizado, tendo crescido na Casa Pia. “Fui fazendo a vida, ia vê-lo de vez em quando, até que chegou uma altura em que ele não me queria mais ver. O meu filho é muito revoltado, ainda hoje em dia não fala comigo. Não me perdoou por o ter posto na Casa Pia”, recorda.
É nesta fase, com 26 anos, estando a partilhar casa com uma amiga, que Luísa começa a consumir heroína. “Na altura não havia o dr. Google, não me foi capaz de dizer quais os efeitos e que ia ter sintomas de abstinência. Eu pensava que aquilo era tipo um comprimido para dormir”. Depois da heroína, veio a cocaína. “Andei 10 anos agarrada, assim, até aos cabelos. Fazia prostituição para a droga, para pagar a pensão". Luísa orgulha-se de nunca ter estado dependente de proxenetas. “Os quatro homens sérios que eu tive, que foram os pais dos meus quatro filhos, sempre me tiraram da vida. Sempre. Foi a única sorte que eu tive”, conta. A filha mais nova tem 26 anos e é mãe de dois rapazes, os únicos netos de Luísa.
Luísa não tem contacto com os filhos mais velhos e o quarto, que teve aos 35 anos, foi para o sistema de adoção. Perdeu-lhe o rasto. “Foi aquele filho que me fez deixar a droga”, recorda. “Quando tive a minha filha quis laquear as trompas mas os médicos disseram que eu era muito nova. Aos 35 anos engravidei, uma gravidez de alto risco, com uma pessoa também consumidora. Como eu não tinha casa, não tinha trabalho, ainda estava no programa da metadona, o menino nasceu a ressacar. Eu tive alta e ele ficou lá. Eu ia todos os dias ao hospital. No dia em que o bebé teve alta, não me deixaram trazê-lo. Foi diretamente para a Ajuda de Berço”, recorda.
Luísa diz que assinou um documento em que se comprometia, em seis meses, a deixar a metadona, arranjar casa e trabalho, para voltar a ter o filho. Não conseguiu esses objetivos e filho acabaria por ser adotado. “Não consegui falar sobre isto durante dois, três anos. Perguntavam-me quantos filhos tinha, eu dizia que tinha três. Tinha vergonha de dizer que ele tinha ido para adoção. Mas de uma forma! Eu devia era ter deixado que eles me levassem a tribunal. Um prazo de seis meses é ridículo”, lamenta.
Paralelamente, Luísa foi frequentadora assídua do Centro das Taipas, a primeira unidade especializada na intervenção em toxicodependência no âmbito da saúde criada em Portugal. “Eu tinha a alcunha da mulher voadora porque, numa das curas, peguei nos lençóis e mandei-me de uma janela. Não sei como não morri. Fui expulsa e o doutor Rui Patrício, que era o diretor das Taipas, disse que eu tive de servir de exemplo. Estive dois anos sem poder frequentar as Taipas”, relembra, com uma gargalhada.
Mais recentemente, frequentou um curso de formação em geriatria, uma iniciativa da câmara municipal de Lisboa, criada na altura em que o atual primeiro-ministro António Costa era autarca da capital. Mas, durante os 18 meses do curso e mesmo durante o estágio, continuava a viver na rua, na zona de Santa Apolónia. Agora já com o companheiro, Pedro, e como ‘ocupas’ de um prédio “que estava em guerra de partilhas há mais de quatro anos”. “Conheci-o no dia em que saiu de Vale de Judeus, após ter cumprido oito anos sem direito a uma precária. Nunca mais nos largámos. Temos enfrentado tudo juntos”, diz com orgulho.
Antes de chegarem a Santa Apolónia, Luísa e Pedro dormiam “à luz da noite, no Martim Moniz”. Mas a iniciativa de sair dessa zona de Lisboa partiu do companheiro. “Eu tinha tanta vergonha! Às 6 da manhã as pessoas começavam a passar, eu tapava a cabeça. Havia um balneário ali ao pé e a primeira coisa que eu fazia, quando abria, era ir tomar banho”, recorda.
É em Santa Apolónia que trava conhecimento com a CRESCER, através de um dos elementos da equipa técnica da associação. Nessa altura, a associação estava a iniciar o projeto É Um Restaurante, onde só trabalham pessoas que foram sem-abrigo. “Ele disse ‘ó Luísa, és mesmo a pessoa indicada para uma coisa que eu tenho aqui’. Por isso é que eu digo que o Júnior é o meu padrinho’”, relembra Luísa, cujo sonho sempre foi cozinhar.
Seguiram-se as aulas na Escola de Hotelaria e Turismo de Lisboa, sob supervisão do chef Nuno Bergonse. “Fui entrevistada por ele, ele gostou muito da minha entrevista. Sou fascinada por ele e pela cozinha gourmet”, conta Luísa, que fez parte da equipa que inaugurou o É Um Restaurante.
O estágio coincidiu com a pandemia e também com os primeiros sintomas do que, mais tarde, seria diagnosticado como cancro. Fez estágio numa loja de uma cadeia de supermercados durante a pandemia, “constantemente com uma dor de ouvidos”. “Cheguei a meter baixa e eles descontaram-me. Eu ganhava 600€ mas sem regalias nenhumas, até que sou diagnosticada com um cancro na amígdala direita. E foi aí que a CRESCER mostrou todo o seu valor para comigo. Foi uma família que eu tinha ali”, conta.
Nessa fase, Luísa vivia num quarto arrendado, subsidiado pela Santa Casa da Misericórdia. “O quarto era 370€, eu pagava 70€ e só tinha o apoio de 300€. Do meu rendimento social de inserção, ainda tinha de pôr 70€. Eu recebia 180€”, recorda. Os 110€ que restavam, recorda, tinham de dar para tudo o resto durante o mês, inclusive alimentação e transportes.
Durante as 36 sessões de radioterapia e duas sessões de quimioterapia, Luísa recorda que foi a associação CRESCER que providenciou o alojamento, “numa residencial em frente ao IPO, com casa de banho privativa”. “A única coisa que não tinha era condições para fazer comida. Emagreci 17 quilos com a radioterapia. Ainda estou em recuperação. Mas a CRESCER não me largou”.
"Para ter trabalho, é preciso ter uma casa. Para ter uma casa, é preciso ter trabalho"
A viver há quase dois anos na casa que faz parte do projeto de Housing First da CRESCER É UMA CASA , Luísa Gomes explica como o sistema de reintegração dos sem-abrigo na sociedade, sem um plano de Housing First, é uma pescadinha de rabo na boca. “Tirar as pessoas da rua para entrar no mercado de trabalho sim, mas para isso é preciso uma habitação. Para ter trabalho, é preciso ter uma casa. Para ter uma casa, é preciso ter trabalho. Para haver dignidade, para eu ir tomar banho e sentir-me igual aos meus colegas, ter roupa lavada. A casa é a base de tudo”, salienta.
Luísa tem uma coordenadora e gestora de casa. E explica-nos como é que acabou com um teto por cima da cabeça, algo que não teve nos últimos 15 anos. “A associação sinaliza todas as pessoas e, quanto mais tempo de rua têm, mais têm prioridade. Há pessoas há 30 anos na rua”, explica. “Devido à minha doença oncológica eles não me largaram. Numa semana e meia, a Cristina [coordenadora] arranjou-me uma casa. Disse-me ‘tu tens de ter prioridade”. Os inquilinos que conseguem uma habitação através da associação assinam um contrato, onde são explicitados os direitos e os deveres, e é estabelecido um valor (que inclui a renda e despesas como água e luz), que varia consoante os rendimentos. “Se eu tiver zero rendimentos, não pago nada. Se tiver o rendimento social de inserção, pago 30% desse valor”, explica Luísa. “Acho que é justíssimo”.
Os beneficiários deste projeto recebem visitas semanais dos gestores de casa, “para ver se nos estamos a adaptar bem, a adaptar bem à vizinhança”. “Há pessoas que têm azar, que sabem que éramos sem abrigo, toxicodependentes, e discriminam. Também há pessoal que não se sabe comportar, que começa a levar gente lá para casa, para consumos e isso. Temos de ter essa noção, que a nossa casa é como um templo, e só entra quem é de família ou amigo. A única pessoa que entra aqui em casa é o meu companheiro”, explica.
A sua “casinha de bonecas”, como descreve, fê-la ter mais fé nas associações de apoio aos sem-abrigo, que antes olhava com desconfiança. “É muito blá blá blá e, depois, chega-se à altura e não é nada daquilo”. A abordagem, por vezes infantilizadora, que é feita por algumas associações, “é o que revolta o sem abrigo”, conta Luísa Gomes. “Eles querem conduzir a nossa vida. ‘Nós ajudamos mas tem de fazer isto, isto e isto’. E depois estão sempre a controlar e, à mínima falha, cortam-nos logo as pernas”, conta. “Nós não nascemos toxicodependentes nem alcoólicos. O que as pessoas deviam pensar é: ‘esta pessoa chegou a esta situação porquê?’. Tem de haver um motivo. E às vezes não é só um, são vários, e muitas vezes conduzem ao suicídio”, diz Luísa.
Os dados apontam que 30% da população sem abrigo em Portugal é do sexo feminino. Mas Luísa acredita que os números apurados pela Estratégia Nacional são inferiores à realidade. A vice-presidente da SOMOS explica que há sem abrigo mascaradas, uma vez que têm teto, mas sem as condições mínimas ou de de forma temporária.
Lares desestruturados, famílias em que a violência emocional e física marca o dia a dia estão a mudar a face da mulher sem abrigo, que é cada vez mais jovem. “Elas vêm parar à rua porque não querem estar em casa dos pais, porque não podem fazer aquilo que elas querem. Não querem estudar, querem drogar-se, querem sair, então vêm para Lisboa, sem eira nem beira, arranjam um gajo que depois começa a chulá-las. Conheço duas ou três moças nessa situação, muito novas”. Luísa sabe onde estão estas mulheres, conhece-as, incentiva-as a irem às reuniões da SOMOS.
A funcionar temporariamente num espaço cedido pela Santa Casa da Misericórdia, a ideia é, no futuro, não só ter casa própria como replicar o modelo criado pela Metzineres, uma cooperativa criada para mulheres e pessoas não-binárias em situações de fragilidade (sem abrigo, toxicodependência, prostituição, problemas de saúde mental, entre outras) que, através de uma abordagem holística, providencia alojamento e apoio (desde cozinhas e casas de banho até espaços para o consumo seguro de estupefacientes), num ambiente onde o não-julgamento e a privacidade, bem como uma abordagem individual, são prioritários.
“No dia em que eu conseguir ajudar a primeira pessoa, não vou parar mais. Quero muito mesmo ajudar as mulheres sem abrigo. Ser sem abrigo traz muitas coisas más: depressões, bipolaridades. A pessoa fica sem rumo e, termos uma casa em que elas possam chegar lá e sentir segurança, proteção, isso é muito importante. É preciso é que elas queiram, que é o trabalho mais árduo que vamos ter, conseguir puxá-las para nós”, garante.
"As mulheres evitam ao máximo estar numa situação de visibilidade na rua. Arranjam estratégias, algumas com custos elevados"
O que é, afinal, uma pessoa sem abrigo? A Estratégia Nacional para a Integração de Pessoas em Situação de Sem Abrigo (ENIPSSA), criada em 2009, ajudou a definir o conceito, dividido entre pessoas sem teto (pessoas que dormem na rua, em situações mais extremas) e pessoas sem casa (que pernoitam em abrigos temporários ou outras situações de alojamento temporário). E a definição do conceito, juntamente com uma estratégia concertada de levantamento de informação no terreno, determinou que fosse possível saber com maior exatidão quantas pessoas em Portugal vivem nestas condições.
Apesar de o número não ser 100% infalível, “sabemos que temos mais de 10.700 pessoas sem abrigo, quase 6.000 sem teto e as restantes estão sem casa”, adianta Isabel Baptista, antropóloga, investigadora em vário projetos nacionais e europeus pobreza e exclusão social, entre os quais o European Observatory on Homelessness.
Estes números, relativos aos dados apurados em dezembro de 2022, significam um aumento relativo ao ano anterior. “No final de 2021, tínhamos 9.604 pessoas sem abrigo”, acrescenta a investigadora, referindo que, de 2020, para 2021, também já tinha havido um aumento. A investigadora explica que as situações mais extremas, de pessoas sem teto, que vivem na rua e não em abrigos temporários, estão a aumentar. A maioria dos sem abrigo em Portugal são homens (cerca de 70%) e a nacionalidade preponderante é a portuguesa, um perfil que não se tem alterado desde que existe este método de recolha de dados.
Sobre as mulheres, que representam 30% da população sem abrigo, a investigadora salienta que os dados não são aprofundados de forma a poder construir um perfil. “Há mulheres mais velhas, cujas trajetórias são marcadas por estratégias de sobrevivência, como a prostituição e outras que as pessoas encontram para resolver a falta de recursos. Há uns anos tínhamos situações de mulheres que tinham estado a servir em casas de famílias durante muitos anos, sozinhas, sem filhos. De repente, morriam as pessoas de quem elas cuidavam, elas tinham vivido a vida inteira naquelas casas, e não tinham outro tipo de suporte”, explica a antropóloga.
Mulheres em situações de violência são também um perfil comum entre a população sem abrigo. “Violência familiar, que pode começar na família de origem, pode aparecer apenas na fase da conjugalidade. Nas mulheres temos muito estas situações de percursos marcados por histórias de violência não resolvida e não apoiada. Encontramos muitas mulheres sem abrigo que, quando vamos ver a trajetória delas, têm uma marca muito grande da violência, que desestruturou a vida daquelas pessoas”, explica Isabel Baptista.
Toxicodependência, jovens que cresceram em instituições de acolhimento são também motivos, comuns a ambos os sexos, que podem conduzir à situação de sem abrigo. Mas a investigadora salienta uma característica. “As mulheres evitam ao máximo estar numa situação de visibilidade na rua. Arranjam estratégias, algumas com custos elevados, para não irem parar à rua. Às vezes, até na rua, arranjam forma de não parecerem mulheres. E tendem também a arranjar soluções temporárias para evitarem a rua”, salienta.
A investigadora explica que, mesmo em situações vulneráveis, os filhos acabam por ficar a cargo das mulheres. “É muito mais vulgar uma mãe com filhos a ter de arranjar uma solução para não ir parar à rua do que um homem. Continuam a ser sobretudo as mulheres a ficar com as crianças. Nessas situações elas arranjam todas as estratégias e mais algumas para não acabarem na rua com uma criança. Às vezes até entregam a criança a familiares e aparecem na rua, mas não estão sozinhas”.
Isabel Baptista salienta que, quando uma mulher chega a uma situação de sem-abrigo, já vem, regra geral, com um percurso muito mais desestruturado, precisamente devido à “trajetória” de sucessivas soluções para evitar a rua, seja por causa dos filhos, seja para evitar a violência sexual (que, de resto, também afeta homens em situações de vulnerabilidade).
Esta invisibilidade faz com que possa existir um número muito maior de mulheres em situações de vulnerabilidade tal mas que, como não cumprem os critérios da definição de sem-abrigo, não entram para as estatísticas. “Se alguém ficou a dormir num corredor, em casa de uma amiga, esta mulher está numa situação de tanta vulnerabilidade como outra qualquer que esteja num acolhimento temporário. Só que isto não é contado porque são situações que estão completamente invisíveis. Estas não entram no 10 mil e tal mas têm potencial para se tornarem”, exemplifica a antropóloga.
A falta de habitação acessível, a subida das taxas de juro, a impossibilidade de pagar rendas ou empréstimos tem atirado cada vez mais pessoas para situações de vulnerabilidade, desde a coabitação em locais sobrelotados até ao uso de garagens, casas sem condições e até tendas. Este problema, que é comum a muitos países desenvolvidos tem vindo a aumentar.
“O que os técnicos nos dizem é que está a haver uma explosão enorme de situações dessa natureza. De pessoas que estão a viver em situações de sobrelotação extrema, em buracos, sem qualquer capacidade para suportar os custos de uma casa condigna. Estas situações escondidas têm potencial para se tornarem visíveis. Temos de olhar para aquilo que está debaixo do tapete, senão essas situações vão cair-nos todas em cima”, alerta a investigadora.
Isabel Baptista chama a atenção para a importância da prevenção. E dá o exemplo de um relato de uma família numa situação de vulnerabilidade financeira, em que as crianças foram encaminhadas para instituições de acolhimento e os pais ficaram em situação sem-abrigo. “Isto é gravíssimo porque, em vez de estarmos a arranjar uma situação para manter aquela família, estamos a fazer uma intervenção em que a separamos. Os impactos que isto tem nas crianças, nos pais… isto vai ter consequências muito graves e, daqui a uns tempos, vamos ter de fazer uma intervenção muito mais intensiva, mais custosa, mais difícil de reverter do que se tivéssemos ajudado aquela família a arranjar um local estável”.
O milagre finlandês. "Ter um sítio estável para nos podermos construir enquanto pessoas é absolutamente chave"
A tendência de crescimento da população sem abrigo é geral a nível europeu. Mas há uma exceção. A Finlândia, que desde 2008 tem vindo a conseguir diminuir o número de pessoas em situação sem abrigo. A abordagem, ao invés de ser Treatment First (tratamento primeiro), é Housing First. Dar um teto, em primeiro lugar, criar uma rede de apoio. A estratégia, como se pode ler pela definição do departamento de habitação e desenvolvimento urbano do governo finlandês, é muito simples: “dar casa de forma imediata e sem quaisquer pré-condições”. “O princípio subjacente ao Housing First é que um casa estável e segura é um direito humano fundamental e um princípio essencial para combater outros problemas que conduzem à sirtuação sem-abrigo, como doenças mentais ou toxicodependência”, pode ler-se.
Este verdadeiro milagre finlandês, com políticas aplicadas de forma consistente ao longo dos anos fez com que a população sem-abrigo passasse de mais de 18 mil pessoas em 1987 para pouco mais de 4000 em 2021.
“A primeira coisa que a Finlândia fez foi conseguir um consenso amplo, a nível nacional, e quando digo amplo é desde os responsáveis políticos ao mais alto nível até aos poderes locais e às organizações que trabalham com estas pessoas”, explica Isabel Baptista.
A estratégia, implementada desde 2008, contraria a existente na maioria dos países europeus que, como salienta a investigadora, “não está a funcionar”. “Ter um sítio estável para nos podermos construir enquanto pessoas é absolutamente chave. Se não tivermos um local onde possamos ter o nosso espaço, com a privacidade necessária, a coisa não vai funcionar”, salienta a antropóloga.
"Temos de ir diminuindo o mais possível os alojamentos temporários e aumentar o número de soluções individualizadas. Isso foi o que a Finlândia fez. Nós continuamos nesta ambivalência, que não é boa”, Isabel Baptista
Na Finlândia, os locais de acolhimento temporário foram transformados em soluções habitacionais permanentes para pessoas sem-abrigo. “E, ao mesmo tempo, com apoio, foram percebendo que tinham de investir em habitação acessível. Se não se atua na prevenção, estamos constantemente a criar novas situações sem-abrigo”, explica Isabel Baptista.
Os projetos de Housing First em vigor em Portugal têm, de acordo com Isabel Baptista, uma taxa de 90% de sucesso. “As pessoas mantêm-se. E são as pessoas com problemas mais complexos, que saem da rua diretamente para uma casa. Podem dizer que as pessoas não se conseguem orientar mas, com o apoio certo, conseguem. Está provado em Portugal, nos Estados Unidos, por toda a Europa. Mas exige mudanças que não são só em projetos, em coisas pontuais. Exige uma abordagem global, a nível da habitação, dos apoios sociais, com as câmaras, com as organizações”, salienta a investigadora.
Isabel Baptista lamenta que o caminho, em Portugal, está a ser feito “aos ziguezagues”, uma vez que existem apoios para projetos de Housing First mas continuam a ser financiados locais de alojamento temporário. “Temos de ir diminuindo o mais possível os alojamentos temporários e aumentar o número de soluções individualizadas. Isso foi o que a Finlândia fez. Nós continuamos nesta ambivalência, que não é boa”, explica a investigadora.
A aversão a pactos de regime em Portugal (a aceitação de políticas que perdurem além de mandatos e governos, qualquer que seja a orientação política de quem esteja com o poder executivo) pode deitar por terra o esforço feito até agora através da Estratégia Nacional para a Integração de Pessoas em Situação de Sem Abrigo (ENIPSSA)? “Esse receio existe e com fundamento. A estratégia começou em 2009 e, infelizmente, tivemos um período a partir de 2011 em que a estratégia esteve parada", recorda Isabel Baptista.
"Houve alterações em termos políticos, nas estruturas, nas entidades que dinamizavam a estratégia e houve o entendimento de que ‘isto dos sem abrigo é um fenómeno muito extremo, muito complexo, são pessoas com problemas difíceis de resolver e resolve-se caso a caso nos territórios. Não precisamos de uma estratégia global para resolver isto’. Quando entramos nisto e não percebemos que o caso a caso é importante mas que, por detrás disso, há problemas estruturais importantes… isto existiu e a estratégia só não esteve parada porque nos territórios, quem já tinha começado a trabalhar, manteve-se a trabalhar. E as câmaras tiveram um papel fundamental nos anos em que a estratégia a nível nacional esteve praticamente em banho-maria”, relembra Isabel Baptista.
A especialista aponta ainda Escócia, outro território onde o consenso político alargado no que toca a estratégias de reintegração de pessoas sem-abrigo já está a dar frutos. “Nós temos exemplos, sabemos como é que se faz. É preciso também que as organizações percebam que é para aqui que têm de caminhar e não é quando há oportunidades de financiamento para alojamento temporário, agarrar isso. Temos de ter a coragem de dizer ‘não é isto que as pessoas precisam’. Isto exige outro nível de reflexão sobre os fenómenos e, às vezes, isso falta um bocadinho”, admite a especialista.
Como é que se convence, em tempos de crise, o eleitor, o contribuinte, a que dar uma casa a quem está na rua é vantajoso e não, como poderão argumentar, despesismo público? “Não é admissível que nós vivamos numa sociedade, que é suposto ser minimamente avançada e com recursos, e que tenhamos pessoas a viver abaixo do patamar da dignidade humana. Isto tem de ter consequências. Não podemos aceitar que isto exista na nossa sociedade”, diz Isabel Baptista.
A investigadora salienta também a importância de mudar o estereotipo do sem-abrigo. “Se continuarmos a mostrar ao público que as pessoas sem-abrigo são aquilo que se vê nos cartazes, deitadas na rua, com os cartões por cima, se continuarmos a insistir que esse fenómeno tem só que ver com isso, temos mais dificuldades. A imagem que passamos é muito importante. Temos de passar a imagem de que estas pessoas não surgiram de geração espontânea. Têm um percurso”, aponta. “É preciso mudar a percepção que se tem do fenómeno, e que ele é muito mais do que só essa imagem que as pessoas associam a problemas de saúde mental e toxicodependência”, alerta.
“Temos de seguir um caminho coerente, que garanta que a habitação é o que diz na nossa Constituição. É um direito. Os finlandeses não têm na constituição deles que é um direito. No entanto, é mais direito lá do que é cá. As pessoas normais têm que sentir que, de facto, é o país que lhes garante o direito à habitação acessível”. “Trabalhar na habitação como um todo”, criando condições para haver habitação acessível para todos, é o único caminho viável para evitar que os populismos contaminem as estratégias de reintegração das pessoas sem-abrigo.