O palavra "infertilidade" é bastante complexa para milhares de casais portugueses. Apesar de, atualmente, grande parte das pessoas que recorre a tratamentos de fertilidade conseguir concretizar o sonho de ter um filho, isso nem sempre acontece e a vida desses casais acaba por ficar, de certo modo, afetada para sempre.
Foi neste sentido que surgiu a MyJorney, um projeto pensado e desenvolvido pelo Cardiff University Fertility Studies Group em colaboração com a Associação Portuguesa de Fertilidade (APFertilidade) e a Fertility Network UK. Esta aplicação, lançada em Portugal no passado dia 17 de novembro, pretende ser um programa de autoajuda, interativo e gratuito. Baseia-se em Terapias Cognitivo-Comportamentais Contextuais, e disponibilizará, passo a passo, um apoio para a promoção da adaptação psicológica de pessoas que não conseguiram ter filhos.
"Para a grande maioria dos casais, um diagnóstico de infertilidade surge como uma surpresa", começa por explicar Ana Galhardo, psicóloga e uma das responsáveis pelo projeto, à MAGG. "A maior parte das pessoas considera que quando quiser ter um filho, quando achar que estão reunidas as condições para concretizar esse projeto de parentalidade, que o faz com relativa facilidade. Por isso, muitas vezes, não estão à espera de encontrar dificuldades a esse nível e quando são confrontadas com as possibilidades que poderão não estar ao seu dispor, isto é habitualmente sentido como um choque", acrescenta a especialista, assumindo que, muitas vezes, a grande maioria das pessoas fica triste, ansiosa e com medo em relação ao futuro.
"De facto, há uma grande percentagem de pessoas para quem ter um filho é algo muito valorizado e que constitui um objetivo importante nas suas vidas", diz Ana Galhardo. Pedro Xavier, médico de Ginecologia e Obstetrícia no Centro Hospitalar de São João e presidente da Sociedade Portuguesa de Medicina de Reprodução, explica à MAGG que um disgnóstico de problemas fertilidade surge quando um casal se encontra há certa de um ano a ter relações sexuais frequentes sem utilização de métodos contracetivos e não consegue engravidar.
Segundo o especialista, o problema da fertilidade é bastante prevalente em Portugal e tem vindo a aumentar devido à mudança de estilos de vida e, principalmente, ao facto de as pessoas pensarem em ter filhos cada vez mais tarde. "Estima-se que cerca de 15% dos casais portugueses possam ter problemas de fertilidade", começa por referir, explicando que os tratamentos a este nível são cada vez mais complexos e consequentemente também mais eficazes.
"Felizmente, hoje em dia, temos taxas de sucesso bastante elevadas "
Ainda assim, do total de casais que se submete a tratamentos, apenas é possível resolver certa de "70 a 75% das situações". Portanto, segundo Pedro Xavier, há uma percentagem de casos que acaba por não ter resolução. A impossibilidade de ter filhos leva, muitas vezes, a sentimentos desgosto e acaba até por perturbar o relacionamento entre o casal e do mesmo com a sociedade.
Cláudia Vieira, presidente da APFertilidade, explica que o mote para o desenvolvimento deste projeto foi acompanhar os casais que já terminaram a sua jornada na tentativa de ter filhos. Segundo Cláudia, existe a preocupação de acompanhar as pessoas desde a fase de diagnóstico à espectativa dos tratamentos — e até à fase de frustração por os mesmos não resultarem —, mas no caso dos casais que já não se encontravam em processo de tentativa, este acompanhamento deixa de existir.
A presidente da APFertilidade, refere que após a "alta médica", "não se sabe como é que as pessoas estão a lidar com essa decisão" — decisão que, muitas vezes, não é individual e que deriva de fatores externos, como a idade ou o facto de já terem realizado todos os tratamentos possíveis do serviço nacional de saúde e de não terem capacidade financeira para recorrer ao serviço privado.
No Serviço Nacional de Saúde só é possível realizar três tratamentos e, segundo Pedro Xavier,"30 a 40% das vezes os casais conseguem à primeira", contudo, há ainda uma percentagem elevada em que isso não acontece e, por isso, o especialista alerta para a importância de não se desistir após a primeira tentativa. "É muito importante nessa caminhada os casais não desistirem logo à primeira, porque o facto de não conseguirem à primeira não quer dizer que se tentarem de novo não venham a conseguir".
Ao contrário do que muitas vezes se pensa, Pedro Xavier esclarece que "hoje me dia, podemos dizer que as causas masculinas e femininas são praticamente equivalentes", acrescentando que "temos de olhar sempre para o problema como um problema conjugal em que têm de ser os dois estudados". Após o diagnóstico de infertilidade, o casal é submetido a vários testes e exames que vão determinar qual a causa do problema.
Neste processo, é essencial o acompanhamento psicológico. Ana Galhardo refere que a necessidade pode surgir como "picos" e ser mais evidente em fases como "na altura da punção ovárica, da transferência dos embriões, ou enquanto se está à espera do teste de gravidez". Contudo , cerca de 30% das pessoas tem elevados níveis de ansiedade que se pode traduzir também em depressões. Segundo a psicóloga , "de momento não existe uma evidência empírica que diga claramente que os níveis de ansiedade ou os níveis de stresse interferem com o resultado do tratamento", contudo interfere com a vida das pessoas e provoca mau estar e sofrimento. "Se o poderem fazer com um acompanhamento que os ajuda a atenuar esse sofrimento, melhor", afirma a especialista.
O que acaba por influenciar bastante o sucesso ou não dos tratamentos é a idade dos casais. "A partir dos 30 já se começa a notar e a partir dos 35 há um declínio acentuado da fertilidade", refere a psicóloga. Pedro Xavier acrescenta que, à idade avançada com que se começa a procurar este tipo de ajuda, ainda se tem de acrescentar o facto de o Sistema Nacional de Saúde levar cerca de um ou, às vezes, dois anos a dar resposta o que se torna "num grande problema".
Há vários fatores que ditam o fim da tentativa de tratamentos de fertilidade como o facto de terem atingido a idade máxima, 4o anos, ou porque já realizaram as três tentativas do SNS ou até porque estão cansados de tentar e assumem uma vida sem filhos. "Esta aplicação, MyJorney, vai um pouco dessa necessidade de poiar os casais que passam para uma outra fase que é do ter de aceitar que não vão conseguir ter um filho", refere o médico ginecologista.
Mas como funciona a aplicação?
O objetivo é ajudar as pessoas no dia a dia a terem acesso a um suporto que está à distância de um clique e que sugere formas simples de ultrapassar os momentos mais difíceis.
"As pessoas preenchem um questionário e a partir do resultado deste questionário, a aplicação vai sugerindo estratégias e métodos para que a pessoa a dado momento, quando se sentir mais ansiosa ou com mais dúvidas, possa encontrar mecanismos para ultrapassar esse mal estar geral que sente e que impede de ver grandes alternativas", explica a presidente da Associação Portuguesa de Fertilidade referindo que esta não deve substituir o acompanhamento de um profissional de saúde.
Tomar a decisão de seguir em frente não é fácil, principalmente quando ela é imposta pelas barreiras da idade ou por aspetos económicos. "A aplicação não tem interação direta com ninguém, tem sim um desenvolvimento por trás para selecionar as maiores frustrações e com ferramentas simples e ao alcance de cada um poder gerir melhor as emoções", refere Cláudia Vieira.
A psicóloga Ana Galhardo afirma ainda que a aplicação é "abrangente" e "inclusiva", ou seja, não se destina apenas a casais que tenham passado por problemas de fertilidade. É ideal também para quem " desejava muito ter filhos, mas não encontrou um companheiro com quem concretizar esse projeto" ou "alguém que foi adiando e a determinada altura a idade já não permite essa situação".
"A MyJourney é uma ferramenta de auto ajuda, não tem que dispensar o acompanhamento presencial ou por um profissional de saúde. De qualquer modo, diferentes pessoas beneficiam de diferentes tipos de ajuda e estamos em crer que muitas podem beneficiar de uma ferramenta deste género que lhes possibilita, através de um conjunto de exercícios e passos, fazer essa viagem de aceitação e ajustamento a esta situação de uma forma mais tranquila e suave em termos de não ser tão indutora de sofrimento", remata a psicóloga acrescentando que a aplicação tem ainda alguns testemunhos de pessoas nas mesmas circunstâncias — o que pode ajudar bastante.