Terminais de multibanco, máquinas de exercício físico, equipamento de oftalmologia e manequins despidos. Computadores, impressoras, televisões, material de escritório, máquinas registadoras, tecidos, fotografias emolduradas e paletes com garrafas de Coca-Cola ainda cheias. Tudo isto permanece esquecido dentro do Vilafranca Centro, o centro comercial mais emblemático de Vila Franca de Xira. Abandonado há mais de cinco anos, os seus quatro pisos são como uma viagem no tempo.
Era para ter sido um projeto do arquiteto Tomás Taveira, mas tanto a população como os partidos da oposição não gostaram da proposta demasiado “arrojada”. Arsénio Espinosa acabou por ser o arquiteto responsável por criar o centro comercial que todos queriam ver nascer. E nasceu: no lugar da antiga Estalagem Lezíria e do Cinema de Vila Franca abriu o Vilafranca Centro, que recebeu os primeiros curiosos a 19 de novembro de 1994.
Na inauguração estiveram presentes Luís Filipe Vieira, José de Sousa Cintra e até Eusébio. Afinal, não era todos os dias que abria um espaço como este. Com quatro pisos, 180 lojas, três salas de cinema e dois parques de estacionamento, na altura era o terceiro maior centro comercial do País — e o maior da região. Além disso, trazia uma novidade até então única em Portugal: o IMAX.
“‘Qualidade, imaginação e audácia’ foram as palavras de ordem, no dia da inauguração, para caracterizar este imponente edifício”, escreveu o “Notícias de Alverca” a 15 de dezembro de 1994. “Arsénio Espinosa, arquiteto responsável pela obra, não tem dúvidas: ‘Os problemas foram muitos em relação à concretização desta obra, mas é um empreendimento de extrema importância para o País, uma vez que a sala do IMAX é a única em Portugal”.
E sobre o IMAX, não havia dúvidas de que os 300 lugares dispostos em anfiteatro e 17 metros de ecrã prometiam uma experiência única. “A ilusão de que a pessoa tem de estar dentro e ao centro da ação é conseguida através do sistema de som que conta com 12 mil watts de som estereofónico que rodeia a audiência”, explicava o “Notícias de Alverca”. “Em termos de orçamento para uma obra desta envergadura, não é preciso ir mais longe, basta dizer que quase metade do investimento (3.500 milhões de contos) foi para a mais recente maravilha da ciência visual em Portugal”.
Ainda hoje é o maior centro comercial da cidade, mas a sua história atual está longe do glamour de outros tempos. Abandonado desde 31 de outubro de 2013, já foi assaltado e vandalizado, e os sinais de degradação são evidentes. Transformou-se também numa espécie de morgue para os pombos, com cadáveres em várias divisões. No entanto, as suas lojas estão longe de estarem vazias.
Uma das coisas que mais me impressionou foram os pombos. Neste momento o centro comercial parece um pombal"
“Há cerca de duas semanas, fui informado por pessoas que vivem em Vila Franca de Xira que um dos acessos do shopping estava aberto”, conta à MAGG António (nome fictício), um dos fotógrafos que entrou dentro do Vilafranca Centro e fotografou o espaço. “Como sabem que eu gosto de espaços abandonados, falaram comigo”.
António juntou-se aos amigos, também fotógrafos de locais abandonados, e fez duas visitas ao espaço: uma de dia e outra de noite. Foi o momento certo para entrar no centro comercial — pouco tempo depois, o local por onde entraram voltou a ser vedado. Já ninguém consegue entrar com a facilidade com que António e os fotógrafos entraram.
Ainda assim, foi claro que outros chegaram antes deles — e não apenas para fotografar.
“Havia claros sinais de algum roubo e vandalismo. Muitas montras estavam partidas — via-se que tinham partido as montras ou as portas para entrarem”. António supõe que tenham sido usados extintores do próprio centro comercial para os arrombamentos, uma vez que foi possível encontrá-los espalhados pelos corredores.
Veja na galeria as imagens das áreas comuns do centro comercial.
“Neste momento o centro comercial parece um pombal”
Se olhar com atenção para algumas destas fotografias, é bem capaz de conseguir encontrar um pombo. Não se trata de um jogo ao estilo de “Onde Está o Wally?”, mas antes uma consequência de um local que, abandonado, foi invadido por estas aves. "Neste momento o centro comercial parece um pombal”.
Nas palavras de António, há centenas de pombos neste momento dentro do Vilafranca Centro. Pior: sobretudo na zona de restauração, é possível encontrar algumas dezenas destas aves já mortas. “O cheiro é impressionante”, descreve o fotógrafo. “Isto é representativo da ausência total de manutenção no shopping”.
Além disso, os dejetos e penas também são bem visíveis. No restaurante chinês que fica no último piso do edifício, antigamente conhecido como o restaurante panorâmico, os vestígios dos pombos estão por toda a parte. À entrada de um outro restaurante, O Pote, nem os candeeiros ou a televisão escaparam à sujidade.
Na minha loja [um cabeleireiro] acabaram por destruir tudo e remexer o espaço, cadeiras, móveis, tudo"
Há lojas que estão completamente vazias, outras nem por isso. “Se tivesse de atribuir uma percentagem, diria que em 70% das lojas os comerciantes levaram o recheio. Nos restantes 30%, não sei. Se calhar as pessoas não tinham para onde levar essas coisas”.
Fátima Martins foi uma das pessoas que preferiu deixar tudo na loja. Em entrevista ao jornal “O Mirante” em fevereiro de 2015, na altura em que foi noticiado um assalto ao centro comercial que resultou em prejuízos na ordem dos milhares de euros, a comerciante disse ter deixado tudo como estava, na esperança de voltar a abrir o seu cabeleireiro um dia.
“Na minha loja [um cabeleireiro] acabaram por destruir tudo e remexer o espaço, cadeiras, móveis, tudo. É pena que a empresa responsável pelo centro nem sequer tenha tido uma palavra connosco depois disto que aconteceu. Investimos ali 20 anos da nossa vida para nada e ainda há gente a acabar de pagar lojas que ali comprou”.
Anos mais tarde, o cenário mantém-se. No caso do cabeleireiro, tudo o que tinha valor já desapareceu. Permanecem alguns espelhos, cadeiras e posters nas paredes.
No health club há mais equipamentos, talvez pela dificuldade de transporte: as imagens revelam máquinas de musculação, bicicletas elípticas, uma banheira de hidromassagem e um solário. No espaço de oftalmologia o cenário é o mesmo, nos antigos escritórios da administração restam as dezenas de dossiês com documentação, além das máquinas de calcular, mesas, cadeiras e estantes.
Veja as imagens das lojas abandonadas no centro comercial.
Mas continua. Numa antiga loja de reparação de aparelhos eletrónicos há dezenas de computadores e impressoras destruídas no chão, provavelmente reviradas por alguém em busca de peças. Nas lojas de roupa só ficaram os manequins e as prateleiras vazias, na loja de fotografia restam duas molduras com fotos.
Na despensa do restaurante chinês foi possível encontrar várias paletes de bebidas ainda por abrir, incluindo muitas Coca-Colas. Já numa das salas anexas à saída de emergência, António encontrou várias caixas de telemóveis da Vodafone. “Os telemóveis não estavam dentro das caixas, mas os cartões sim.”
Como é que o maior centro comercial de Vila Franca de Xira fica abandonado?
Não é uma resposta fácil. Quando o Vilafranca Centro fechou, só havia 23 lojas a funcionar dos 155 espaços comerciais disponíveis, segundo “O Mirante”. A maioria das lojas era detida pela Obriverca. Na altura do encerramento, os comerciantes queixaram-se das elevadas rendas (duas lojas de tamanho médio custavam cerca de 1.500€ mensais). Já a administração alegou que as dívidas dos comerciantes para com o condomínio tinham deixado a situação insustentável.
Em junho de 2017, o Banco Popular, propriedade do Santander, adquiriu a maioria das lojas e arrecadações do centro comercial. No total investiu dois milhões e 563 mil euros, de acordo com o jornal “O Mirante”. Segundo Alberto Mesquita, presidente da Câmara Municipal de Vila Franca de Xira, em declarações à Lusa, o objetivo era mesmo reabrir o centro comercial.
“O Banco Popular mostrou-se muito interessado em rentabilizar aquilo que está na sua posse. Pelos sinais que me foram transmitidos vejo que existem dinâmicas interessantes para a sua reabertura”, disse, conforma cita o “Diário de Notícias”.
Segundo o que a MAGG conseguiu apurar junto do Santander Totta, no final de 2018 o banco iniciou um processo de venda dessas frações no “Projeto Tagus”. O “Projeto Tagus” foi o nome dado à transação que reunia imóveis no valor de 600 milhões de euros. Foi adquirido pelo fundo norte-americano Cerberus e o projeto ficou concluído já em 2019.
Contactada pela MAGG, a Câmara Municipal de Vila Franca de Xira explica que o centro comercial tem vários proprietários, de diversas frações autónomas. No entanto, e de acordo com "a informação de que o município dispõe", neste momento "os principais proprietários são o Novo Banco e a Finsolutia."
A Finsolutia, porém, garante não "ser proprietária de coisa nenhuma". "Poderemos ter clientes que são proprietários", adianta, acrescentado que isso nada tem que ver com a Finsolutia. Já o Novo Banco não respondeu às perguntas da MAGG até ao fecho deste artigo.
"O município tem promovido diversas diligências e notificações junto do principal proprietário do imóvel"
Salvaguardando que "considera totalmente ilegítimas as iniciativas de natureza particular ou coletiva que consubstanciem a invasão de propriedade alheia ou a captação de imagens não autorizadas pelos proprietários", e alertando que deram "a devida conta aos proprietários do imóvel", a autarquia diz ter conhecimento da situação atual.
"O município tem promovido diversas diligências e notificações junto do principal proprietário do imóvel, para que este tome as medidas necessárias à salvaguarda da integridade e limpeza do espaço." E continua: "A câmara municipal promoveu, junto do principal proprietário, as notificações e as ações necessárias à colocação da vedação existente, na expectativa de impedir o acesso ao imóvel por parte de terceiros não autorizados, salvaguardando-se desta forma a sua proteção contra assaltos e atos de vandalismo."
A principal intervenção da câmara municipal tem sido feita "no estrito respeito e cumprimento da lei", continua, "nomeadamente no que se refere à não invasão de propriedade privada." Além disso, e mesmo tratando-se de um imóvel que nunca pertenceu ou foi explorado pela autarquia, a câmara "tem promovido e atuado no sentido de dar conhecimento do espaço a alguns investidores."
"Mas a sua dinamização comercial e económica está sujeita às leis do mercado e ainda não se concretizou. A câmara municipal deseja, naturalmente, que essa realidade seja alterada com a maior brevidade."
Quanto à possibilidade de a Câmara Municipal de Vila Franca de Xira adquirir o imóvel, a autarquia responde que "no momento atual essa possibilidade não se coloca. Coloca-se sim a possibilidade de aquisição, pela Câmara Municipal, dos dois espaços de estacionamento que o imóvel possui. Trata-se de uma negociação que está em curso, e que se espera possa vir a ser concretizada em breve."