4 de março, 2001. Passavam apenas 15 minutos das 21 horas quando a antiga ponte Hintze Ribeiro, responsável por fazer a ligação entre Castelo de Paiva e Entre-os-Rios, em Penafiel, cedeu e o tabuleiro caiu no rio Douro. Os motivos foram vários, em especial o estado avançado de degradação da ponte e a chuva intensa que se sentira naquela noite.

No momento em que um dos pilares ruiu, foram atiradas para o rio 59 pessoas — 53 viajavam num autocarro que, na altura, fazia a travessia e outros seis dividiam-se entre três carros. Nenhum deles sobreviveu. 20 anos depois, que se assinalam esta quarta-feira, 4 de março, vai ser assinado o contrato de financiamento comunitário para as obras de reabilitação com o objetivo de fazer daquela ponte uma travessia exclusivamente pedonal.

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No entanto, a tragédia continua bem viva na memória de todos os que vivem na região. Na data em que se assinala e se homenageia as vidas ceifadas pelo rio, a SIC e a RTP prepararam uma emissão especial ao longo de todo o dia para assinalar os 20 anos da tragédia.

59 pessoas morreram, mas apenas 23 corpos foram encontrados

"Ninguém, no pior dos seus pesadelos, poderia pensar que um dia pudesse acontecer uma coisa destas", explica Gonçalo Rocha, o atual presidente da Câmara de Castelo de Paiva, à Agência Lusa, citada pelo "Diário de Notícias".

O luto, sabe-se hoje, extravasou os limites fronteiriços das localidades e Portugal inteiro acompanhou, através de emissões em direto e de trabalhos de investigação jornalística, as buscas pelos 59 corpos que duraram até outubro de 2001. 

Para algumas famílias, no entanto, o luto nunca começou e muitas delas nunca conseguiram refazer as suas vidas, concluiu a investigação "Ausência de Cadáver Enquanto Fator de Risco para o Luto Complicado: O Caso da Tragédia de Entre-os-Rios", publicada em 2011, pela enfermeira e psicóloga clínica Lúcia Ferreira, que abordou o tema na sua tese de mestrado.

É que das 59 pessoas atiradas ao rio, apenas 23 corpos foram recuperados. 54 vítimas viviam no concelho de Castelo de Paiva, duas em Gondomar, duas em Cinfães e uma em Penafiel.

Na altura, escrevia Lúcia Ferreira, e porque as famílias não tinham recuperados os seus mortos, muitas sofriam de stresse pós-traumático; outras recusavam-se a comer peixe do rio e outras tantas guardavam a esperança de que, sempre que o telefone tocava, do outro lado da linha podia estar o ente querido desaparecido há vários anos. 

"Nunca mais lá fui. Eu sei que o rio não teve culpa, nem chamou lá ninguém. Mas não consigo tirar da ideia que foi lá que eles acabaram. Foi nessa noite que me fiz velha. Perder todos assim de repente... E uma tristeza maior foi eles não terem aparecido. Pus uma fotografia no cemitério deles todos, junto ao pai, mas o que queria mesmo era tê-los lá", recordou uma mulher de 76 anos, familiar de uma das vítimas, ao jornal "Público" em 2011.

Às famílias das vítimas, o Estado português atribuiu um montante de 50 mil euros. A esse valor, adicionou entre 10 a 20 mil euros, consoante o grau de parentesco dos herdeiros. Seguiram-se inquéritos, investigações e apontar de dedos.

A demissão do ministro e a culpa que morreu "solteira"

No final das investigações, que concluíram que a ponte tinha caído por um conjunto de fatores vários, ninguém foi responsabilizado pelas 59 mortes. Mas antes disso, a 5 de março, demitia-se Jorge Coelho, ministro do Estado e do Equipamento Social à época da tragédia, com uma declaração que marcaria todo o processo investigativo.

"A culpa não pode morrer solteira e, nesse sentido, têm de se retirar todas as consequências políticas. Não ficaria bem com a minha consciência caso continuasse [no cargo]", anunciou Jorge Coelho no dia seguinte à queda da ponte, cita o jornal "Público".

O pedido de demissão foi aceite de imediato por António Guterres, que na altura assumia as funções de primeiro-ministro de Portugal, dizendo que considerou o pedido "irrecusável".

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"É uma atitude de invulgar dignidade vinda de quem, seguramente, está isento de qualquer responsabilidade pessoal pelos trágicos acontecimentos que enlutam o País", explicou Guterres, manifestando a Coelho o seu mais "sincero apreço e gratidão" pelo trabalho prestado. 20 anos mais tarde, sabe-se que António Guterres fez pressão para que o seu ministro continuasse.

"Sou o responsável político pela pasta e, por isso, alguém tem de dar a cara pelo que aconteceu. Sou o ministro. Tenho mesmo de me demitir", terá sido o último telefonema do próprio a Guterres, tal como o jornalista Fernando Esteves recorda no livro "Jorge Coelho, o Todo-Poderoso", uma biografia não autorizada.

À súplica de Guterres ("Não tem de ser assim, Jorge", respondeu o primeiro-ministro, quando Coelho lhe falou da intenção de se demitir), o ministro foi peremptório: "Não há outra forma. Uma coisa desta dimensão exige uma tomada de posição radical. São muitos mortos, pá. Temos de dar o exemplo. Se não saio, isto vira-se contra ti."

Horas depois, nas primeiras horas da madrugada de 5 de março de 2001, anunciava aos jornalistas — e ao País — a sua demissão, repetindo por diversas vezes que a culpa não podia morrer solteira.

Em 2006, no entanto, o Tribunal de Castelo de Paiva absolveu os quatro engenheiros da antiga Junta Autónoma de Estradas e outros dois de outra empresa que, desde o início, eram responsabilizados pelo Ministério Público apoiando-se no parecer técnico das várias inspeções realizadas ao local e que lhes imputa o crime de negligência.

"Fica essa mágoa por não vermos ninguém responsabilizado criminalmente pela morte de 59 pessoas", lamenta Augusto Moreira, atual presidente da Associação de Familiares das Vítimas da Tragédia de Entre-os-Rios (AFVTE-R)), à Agência Lusa, citado pelo "Diário de Notícias". Pior: é que com a absolvição, em 2006, poderia ter cabido aos 250 familiares das vítimas que perderam a vida na tragédia suportar os custos inerentes a todos os processos judiciais. O Estado português, porém, assumiu os valores, decisão que foi elogiada por todos os familiares.

"A decisão vai ao encontro das nossas expectativas. Não esperávamos do governo outra coisa que não fosse esta sensibilidade", explicou, em 2009, o presidente da AFVTE-R.

Mas fica para sempre a mágoa e a memória, para sempre perpetuada no tempo através de um monumento, da autoria do arquiteto Henrique Coelho, que lista o nome das 59 vidas que o rio levou.

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