Passámos de uma vida feita ao volante, entre dois bairros que ainda fogem à loucura do turismo, para um trabalho com sede no Bairro Alto onde só em sonhos alguém entra de carro. A mudança só trouxe vantagens e, assim de repente, lembro-me imediatamente de duas: não ter de me chatear com estacionamento, uma vez que o carro fica em casa, e poder finalmente pôr em dia os livros que começavam a criar uma pilha na mesinha de cabeceira.

Há ainda a parte ambiental, claro, e até a social. Nada como ter os nossos pensamentos interrompidos por conversas alheias vindas do lugar do lado na carruagem do metro ou chegar à redação com a frase: "Sabiam que abriu ali um novo...", sendo que, trabalhando no centro de Lisboa, as reticências podem ser substituídas facilmente por expressões como 'gelataria', 'restaurante de comida saudável' ou 'hamburgueria gourmet'.

Mas precisamente por ter como destino final o centro de Lisboa, considero que o meu dia tem um antes e um depois de entrar no metro. Em Arroios, digo bom dia à manicure que abriu debaixo de minha casa, compro duas maçãs para o lanche na mercearia de todos os dias e ainda tenho tempo para invejar os alunos do Técnico que ocupam os intervalos na relva da Alameda.

Este começo do dia a dar para o idílico tem um fim assim que a voz do metro anuncia: "Baixa-Chiado". De repente ouvir falar português passa a ser raro, a não ser por quem deixa escapar uma asneira por ter que subir um ou dois lanços de escadas a pé, porque as rolantes estão paradas. Não turistas, não aconteceu só desta vez, é uma coisa very typical de Lisboa.

Das profundezas do metro, começamos a ver a luz da cidade, a ouvir a música brasileira tocada por quem para em frente à Brasileira à procura de uns trocos e assim que pomos os pés no Chiado, há uma Lisboa que se transforma.

Os estrangeiros ficam estarrecidos, abrem a boca de surpresa, sacam do telemóvel para tirar fotos e dividem-se por entre as dezenas de ofertas de "free tours" para melhor conhecer a cidade. Eu percebo, atenção. Também eu sou muitas vezes a turista e também eu já cheguei a ser uma turista em Lisboa e sei que esta é uma cidade de espantar.

Nos anos 80, o elétrico em Lisboa era visto como um transporte do dia a dia. Hoje em dia, é vê-los passar sem parar, sempre cheios de turistas
Nos anos 80, o elétrico em Lisboa era visto como um transporte do dia a dia. Hoje em dia, é vê-los passar sem parar, sempre cheios de turistas

Mas repetir este cenário todos os dias leva-me a sentir a personagem principal do "Feitiço do Tempo" e, tal como o Bill Murray, também tenho vontade de sair daquele loop diário. Neste caso, e como ainda não existe a possibilidade real de fazer fast forward, fizemos nós uma viagem no tempo, desta vez ao passado, numa tentativa de lembrar como era ser turista na Lisboa de outros tempos.

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Visitámos alfarrabistas e feiras, vasculhámos as gavetas e ligámos àqueles amigos que guardam tudo, inclusive guias de viagens sobre a própria cidade. Chegámos finalmente a uma coleção de três guias, dois sobre Lisboa, um de 1980 e outro de 1992, e um sobre o Porto, de 2001. E acreditem, vale a pena ler o que o desfazamento de 38, 26 ou 17 anos faz a duas cidades. Neste caso, a um Porto ainda sem metro ou a uma Lisboa sem ponte Vasco da Gama, hipermercados ou multibanco, mas com um Parque Mayer ao rubro e onde andar de metro custava 10 escudos.

Transportes

Começamos por este tema, porque chega a ser hilariante pensar nas diferenças de uma Lisboa de elétricos e apenas com a Ponte 25 de Abril a ligá-la a sul, quando comparada com uma cidade em que nos dias de greve de metro, mais vale ficar em casa e fingir que o mundo lá fora não existe.

Em 1980, a estação Marquês de Pombal ainda se chamava Rotunda, Praça de Espanha era Palhavã e Martim Moniz era conhecido por Socorro. Os bilhetes eram comprados em balcões e não em máquinas e apenas em algumas estações.

Custavam 10$00 se comprados avulso, algo que fica perto do ridículo quando convertido em euros, mas que tendo em conta a devida inflação, podemos traduzir como os atuais 54 cêntimos.

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Como complemento ao que se passava debaixo de terra, havia nada mais nada menos do que 18 linhas de elétrico a funcionar, entre elas a do mítico 28. O bilhete custava 5$00, o equivalente a 27 cêntimos quando comprado ao motorista, ficando ainda mais barato se fosse pré-comprado. Atualmente custa 2,90€ e as filas de turistas chegam a roçar o ridículo. Esta semana já é a segunda vez que vejo passar vários elétricos que nem sequer param porque, na verdade, não cabe nem mais uma pessoa de tão cheios que circulam e houve até um dia em que contei 152 pessoas na fila à minha frente. Cento e cinquenta duas. Isto até perceber que — alerta lisboetas — se formos meros residentes na cidade e não turistas a querer conhecer a cidade a bordo do elétrico, podemos passar à frente. Palavra de condutor do elétrico.

Museus

Respiremos fundo antes de avançar para o capítulo seguinte, que isto dos transportes é capaz de fazer subir a tensão à mais calma das almas que todos os dias tem que estar "aware of the pickpockets".

Mas vá, museus. Aí não há como fugir à feliz realidade de que, ainda que nos anos 80 o cenário já fosse rico, agora as opções sejam mais interessantes.

O que hoje temos como Jardim Botânico Tropical já foi o Museu Agrícola do Ultramar. Passamos, por isso, a poder apreciar a flora tropical, em vez de, e passo a citar, "alfaias agrícolas rudimentares, artesanato e animais embalsamados de todas as províncias ultramarinas".

Já existia Museu dos Coches, ainda que noutros moldes, cuja entrada custava 5$00 e era grátis ao fim de semana. Agora custa 8€, mas teve obras recentes e há gelados Santini à porta. Justifica-se o investimento.

Existia um Museu dos CTT, sendo que o mais aproximado atualmente é o Museu das Comunicações e havia até um Museu dos Bombeiros que, curiosamente, percebemos numa pesquisa no Google, que vai reabrir em Alcântara, junto ao Museu da Carris, este sim, uma obra mais recente.

Mais recentes e que não constam nem no guia de 1992 são o Museu do Design, na Baixa, o Museu do Aljube, que ocupa desde 2015 as antigas instalações da Cadeia do Aljube e o Maat, que trouxe a Lisboa quatro mil metros quadrados de arte, design e arquitetura inovadoras.

Bairros típicos

Um dos nossos capítulos preferidos do guia. Já vai perceber porquê.

A Baixa é "o centro cosmopolita e dinâmico de Lisboa". Certo. Bairro Alto já começava a ser o sítio para onde se ia beber copos, Certo. Alvalade e Areeiro eram "os mais sofisticados". Até aqui tudo certo.

Mas Marvila, por exemplo, era tão só um bairro "fundamentalmente industrial". Não é que não continue a ser, mas era giro dizer aos autores deste roteiro que, uns anos mais tarde, esta zona da cidade seria a Brooklyn de Lisboa, com fábricas de cerveja artesanal, galerias de arte e alguns dos mais arrojados restaurantes.

Fizemos esta viagem com dois guias antigos de Lisboa, de 1980 e de 1992, e um de 2001 do Porto
Fizemos esta viagem com dois guias antigos de Lisboa, de 1980 e de 1992, e um de 2001 do Porto

Já Arroios, por exemplo, era, como ainda é até hoje, um dos bairros mais importantes da cidade, por juntar a parte comercial com a residencial e Benfica era ainda "o local ideal para passar um bom domingo". Hoje, só se for em dia de jogo.

Diversão

A Feira Popular estava no auge e mantinha-se a funcionar de 25 de abril a 30 de setembro. Chegou a ser na Praça de Espanha e em Entrecampos e, desde que fechou em 2003, que muito se tem especulado sobre aquilo que temos de mais parecido à Disney. Sabemos apenas que vai ser em Carnide, mas ainda não há data de abertura.

O Parque Mayer era outro dos pontos de passagem para quem vinha a Lisboa. Os teatros eram muitos naquele espaço junto à Avenida da Liberdade e, mesmo quem não fosse pelas peças, podia ficar apenas a absorver a dinâmica dos restaurantes e bares do recinto onde hoje sobrevive apenas o Teatro Maria Vitória enquanto teatro de revista, mas onde também se vê um Capitólio a renascer para concertos e outros eventos.

A história de Lisboa continua a interessar a quem nos visita. Para conhecer o Padrão dos Decobrimentos paga-se 5€, com direito a miradouro sobre o rio e a cidade
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Para comer, Portugal era bom nos anos 80, 90 e podemos meter-nos num foguetão até o ano 4076 que o cenário não vai mudar.

O guia de 1992 divide o cenário entre opções mais caras e outras mais em conta. Se a ideia era esbanjar, o Gambrinus e o Tavares Rico eram boas opções e continuam a ser. Para algo mais contido, da lista faziam parte a Antiga Casa Faz Frio, o Bichano e os Anarquistas, todos eles já encerrados.

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Mas sítios para comer é coisa que não falta em Lisboa, tanto para quem quer comer barato, como quem não se importa de investir um pouco mais. Não que seja preciso, tendo em conta as filas à porta, mas deixamos aqui duas sugestões, uma para cada carteira e para quem quer continuar a comer o que de mais típico a cidade oferece: Solar dos Presuntos (preço médio de 35€ por pessoa) e Zé dos Cornos, onde fica bem jantado por menos de 10€.

Porto

Temos nas mãos um guia de 2001, mas nem é preciso ir assim tão atrás para nos lembrarmos de um Porto onde o turismo era escasso. Em poucos anos, transformou-se na cidade onde todos querem ir e atualmente, todos os anos, recebe oito turistas por cada morador, uma média superior a cidades como Londres ou Barcelona.

Pelo Porto, os roteiros são semelhantes aos de hoje, ainda que agora com muito mais oferta
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Mas voltemos então a uma cidade ainda sem metro (só começa circular em 2002), e onde as alternativas eram o elétrico e o autocarro, com bilhetes que rondavam os 50 cêntimos (agora custam 1,95€).

Já se passeava pela Ribeira e já se aconselhava uma passagem pelos mercados da cidade. Só que aí, o do Bom Sucesso vendia só frutas, legumes e flores e não oferecia ainda a panóplia de restaurantes e lojas de hoje. Já o do Bolhão, esse, estava aberto, o que já é por si é uma grande diferença. O mercado está em obras e só lá para Maio de 2020 é que volta a abrir. Por enquanto, os vendedores estão instalados no centro comercial La Vie.

Quando o assunto é comida, o guia dedica várias páginas a fotografias de travessas cheias de bacalhau, rojões ou de pratos de francesinhas. A Cozinha do Manel já era, e bem, um ponto a não perder na cidade, assim como a Casa Aleixo, ali perto da estação de comboios, com os seus generosos filetes de polvo com arroz do mesmo.

Agora continua-se a comer muito e bem e esta semana soubemos que o Gazela, histórica cervejaria da cidade, abriu novo restaurante. E que por favor ninguém traduza os cachorrinhos que lá se servem para inglês. Cada um tem os hot dogs que merece.

(publicado em 2018)