Estávamos em meados de 2016 quando o jornal alemão "Der Spiegel" dava a conhecer o homem por detrás daquela que foi considerada a maior fuga de sempre de informação na história do futebol. "Os fãs têm de perceber que com cada bilhete, cada equipamento que compram e cada subscrição televisiva a que aderem, estão a alimentar um sistema extremamente corrupto que funciona apenas para si", alertava "John", o nome utilizado por Rui Pinto que, pelo menos numa primeira fase, optava pelo anonimato.
"Há ligas na Europa que são controladas apenas por uns três ou quatro agentes e que fazem transferências contínuas com presidentes de clubes corruptos. É a prova de que o sistema do futebol está a consumir-se a si próprio", continuou.
A identidade de "John" foi revelada por William Bourdon, o advogado francês de Rui Pinto, que confirmou que era o jovem o responsável pela publicação de 70 milhões de documentos sensíveis referentes à indústria do futebol. Segundo escreve o mesmo jornal alemão, foi na primavera de 2016 que Rui Pinto decidiu mostrar mais do que "um simples contrato de um jogador" ou "um extrato bancário".
"Em vez disso, ele queria mostrar ao grande público como é que tudo parecia encaixar: as relações de poder estabelecidas e escondidas dentro da indústria, os acordos ilegais entre equipas e agências de marketing desportivo, bem como os truques de evasão fiscal usados pelos multimilionários. Queria que as histórias escondidas fossem contadas não em fragmentos, mas na sua totalidade", lê-se na reportagem assinada pelo "Der Spiegel".
Foi nesse contexto que o jornal diz ter recebido oito discos rígidos com vários documentos, onde se incluíam contratos originais com acordos subsidiários secretos, e-mails, ficheiros Word, gráficos em Excel e fotografias. Segundo a mesma publicação, os dados eram referentes até ao ano de 2016 e totalizavam quase dois terabytes de memória.
No entanto, desconhecia-se de onde vinha toda esta informação. "O John recusa-se a revelar. a sua identidade. E não pediu ao 'Der Spiegel' para lhe pagar alguma coisa pela informação, mesmo que agentes de alguns jogadores lhe tenham oferecido até 650 mil euros pelos documentos."
As acusações de extorsão e as comparações a Edward Snowden
Denunciante ou criminoso? A suposta procura de dinheiro terá sido o que, desde então, tem manchado a imagem de Rui Pinto junto da opinião pública. É que um dos principais alvos do informático foi a Doyen Investment Sports, o grupo de investimento gerido, na altura, pelo empresário português Nélio Lucas. Segundo os documentos obtidos pelo hacker português, este fundo ajudava os clubes a conseguir pagar os valores das transferências dos jogadores à medida que eliminava dívidas da venda desse jogador no futuro.
Segundo o jornal "Público", muitos desses documentos mostraram que, em alguns desses negócios, "a Doyen assegurava a existência de cláusulas de contrato que garantiam sempre lucro ao clube — mesmo que o rendimento do jogador durante a competição fosse aquém das expectativas."
Foi precisamente devido aos documentos sobre os negócios da Doyen Investment Sports que Rui Pinto foi detido na Hungria depois do mandado europeu de captura emitido pelo Ministério Público no início de 2019. Uma das acusações em causa, além da de cibercrime, é a de extorsão.
É que Rui Pinto, já na posse dos documentos, terá enviado um e-mail assinado com o nome Artem Lobuzov a Nélio Lucas com o objetivo de perceber quanto é que o empresário português estaria disposto a pagar para que a informação que obteve nunca chegasse a ser publicada.
Já detido, o informático não negou o pedido de dinheiro, mas reforçou — na primeira entrevista dada na sua casa em Budapeste ao "Der Spiegel", ao "Mediaparte" e ao canal alemão NRD após ser detido —, que as suas intenções eram outras. Segundo explicou, a única razão para ter contactado a Doyen foi para tentar "confirmar a ilegalidade das suas ações".
"A única razão pela qual contactei a Doyen foi para confirmar a ilegalidade das suas ações, com base na quantidade de dinheiro que pudessem estar dispostos a pagar para que os documentos nunca fossem divulgados. Queria perceber o quão importantes eram os documentos para a Doyen e achei que conseguiria descobrir isso se soubesse o quanto a empresa estava disposta a pagar pelo meu silêncio", reforçando que nunca foi a sua intenção "aceitar o dinheiro".
A acusação de extorsão estende-se também ao seu anterior advogado, Aníbal Pinto, que se terá encontrado com o diretor executivo da Doyen embora nunca tenha terminado numa transação.
Na mesma entrevista, Rui Pinto nunca negou os factos. "É verdade, quis perceber quanto lhe ofereceriam. Só que enquanto ele negociava, eu continuei a ler os documentos e só pensava para mim que se os deixasse comprarem-me agora, não iria valer mais do que todos estes esquemas. Foi por isso mesmo que escrevi à Doyen e lhes disse para ficarem com o dinheiro. Não me pagaram um único cêntimo. O que fiz foi muito ingénuo e, olhando para trás, arrependo-me. Mas nego ter cometido qualquer crime."
Apesar disso, a justiça portuguesa acredita piamente que esta abordagem se traduziu numa tentativa de extorsão, apenas um dos crimes pelos quais Rui Pinto pode vir a ser julgado. Foi por isso mesmo que, na passada sexta-feira, 17 de janeiro, na fase de instrução do processo, a juíza Cláudia Pina invocou a legislação europeia para argumentar que o responsável pelo Football Leaks não pode reclamar o estatuto de whistleblower (ou denunciante).
Segundo a revista "Sábado", que teve acesso à decisão proferida e assinada pela juíza, Cláudia Pina considerou que "o arguido nunca poderia ser integrado na categoria de whistleblower, a qual envolve apenas, de acordo com a doutrina que dissertou sobre o tema e instrumentos internacionais até á dada aprovados, ilícitos conhecidos no âmbito de uma relação laboral, comercial ou similar, fundamentando-se a divulgação dos factos ilícitos no interesse público e não em razões pessoais da pessoa que realiza a divulgação."
E continua: "Um whistleblower é um denunciante de boa fé que teve conhecimentos dos factos que denuncia licitamente (...) entendendo que o interesse público na denúncia da corrupção está acima dos seus deveres de lealdade ou obrigações de sigilo a que esteja vinculado."
Para a juíza não há dúvidas de que a atuação de Rui Pinto é muito diferente daquela que permitiria que se qualificasse como um "denunciante de boa fé". É que o hacker português "não tinha qualquer relação com Doyen" e a informação que obteve e, posteriormente, divulgou foi feita através da apropriação "de credenciais de acesso ao sistema informático."
Ainda que, sabe-se agora, tenha sido advertido pelo seu advogado, Aníbal Pinto, para "cessar a conduta", é verdade que Rui Pinto continuou a divulgar os documentos referentes aos negócios da Doyen — atos que só terminaram com a sua detenção na Hungria. Tudo isto levou a juíza de instrução a crer que "é indubitável que Rui Pinto preencheu com a sua conduta os elementos típicos do crime de extorsão."
O hacker português, por sua vez, assume a bandeira de denunciante e carateriza-se como um "whistleblower da corrupção no futebol".
Segundo o Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa, Rui Pinto vai ser julgado não por 147 dos crimes pelos quais era acusado, mas por 93 — um de sabotagem informática, um de tentativa de extorsão, a única acusação capaz de manter a prisão preventiva juntamente com o perigo de fuga, 6 de acesso ilegítimo, 68 de acesso indevido a informação privada e 14 de violação de correspondência.
As comparações com o caso de Edward Snowden, que em 2013 denunciou as práticas de vigilância em massa pelo governo americano, são inevitáveis. No entanto, para Ana Santos, especialista em segurança informática, as diferenças são gritantes.
"O analista americano denunciou as práticas do governo americano que considerava serem erráticas. Ser considerado um herói por muitos pode dever-se ao facto de ter ido contra o próprio governo e a instituição para a qual trabalhava. Claro que o rótulo de criminoso não escapou, em parte porque revelou segredos de estado, mas não tentou ganhar dinheiro com isso", considera.
Pelo contrário, terá sido a forma de atuação de Rui Pinto que fez com que a opinião pública pudesse, de certa forma, virar-se contra ele. "A forma como Rui Pinto fez as coisas não abona nada a favor dele. Além da obtenção dos dados de forma ilegal e através dos mais variados métodos que só ele sabe, depois tentou chantagear para conseguir dinheiro. Edward Snowden, por sua vez, denunciou e fugiu, ainda hoje vivendo exilado para não ser preso", explica.
Apesar disso, Paulo Pereira, advogado e doutorado em Ciências Sociais é, perentório na ideia de que o interesse público não se pode sobrepor à lei e recorda que Rui Pinto, assim como qualquer outro hacker que tenha o mesmo tipo de agência, cometeu uma série de crimes que não podem ser branqueados.
“O nosso código penal diz que são admitidas todas as provas que não sejam proibidas por lei. Um hacker, independentemente de se chamar Rui Pinto ou não, não pode obter provas de forma ilícita e as provas que ele obteve foram por meios ilícitos", revela.
E continua: "Um hacker acede a caixas de correio, aos sistemas informáticos, faz sabotagem informática, houve uma alegada tentativa de extorsão e tudo isto são crimes. Não vale a pena estarmos a branquear os crimes que foram feitos, como Ana Gomes [ex-eurodeputada socialista] o tem feito até agora, que acha que os hackers são heróis só porque denunciam crimes que são de prova difícil. O interesse público nunca se pode sobrepor à legalidade democrática, porque assim deixamos de estar num Estado de direito."
Mas Paulo Pereira reconhece, à falta de melhor palavra, o propósito utilitarista de um hacker. É que, segundo explica, o que este faz é lançar para a opinião pública e para os meios de comunicação, elementos que foram obtidos de forma ilegal para forçar o Ministério Público a iniciar uma investigação formal sobre a notícia do crime.
"Os elementos que um hacker obtém indevidamente são meios de provas nulos e não podem ser utilizados em tribunal. No entanto, a publicação dos mesmos permite ao Ministério Público, que recebe a notícia do crime, lançar ele próprio uma investigação para talvez vir a obter os mesmos meios de provas só que de forma legal e assim formular uma acusação contra agentes de corrupção que seja sustentável em tribunal."
"Naturalmente, há um contributo do hacker em fazer obrigar o Ministério Público a desencadear uma investigação", mas o advogado mantém que, nem por isso, o hacker deixa de cometer um crime e não deve ser considerado um herói.
Há um estatuto de denunciante para proteger hackers como Rui Pinto?
Confrontado sobre se existe ou não um estatuto que possa vir a proteger Rui Pinto e outros denunciantes como ele, Paulo Pereira remete para os conceitos de delação premiada e direito premial que, embora pareçam a mesma coisa, não o são.
É que embora em Portugal não exista a delação premiada — que se traduz na atribuição de um benefício legal a quem, estando envolvido em ações criminosas, decida colaborar com a justiça para identificar outros que façam parte da mesma rede —, o direito premial está previsto na lei.
A diferença está precisamente nos termos, ou nos tipos de crime, em que o direito premial se aplica. "É uma ferramenta importante no combate ao crime organizado em que, alguém que esteja envolvido num crime de corrupção e colabore com a justiça na obtenção de provas decisivas para a identificação de outros responsáveis, pode ver uma atenuação da sua pena."
Mas também se aplica no combate ao terrorismo nos termos em que alguém, pertencente a uma organização terrorista, impeça um atentado avisando as autoridades ou as auxilie na recolha de provas decisivas para a identificação ou captura de outros membros.
"O indivíduo não deixa de ser um terrorista e um criminoso, mas também pode vir a beneficiar de uma atenuação especial", explica o advogado ressalvando que, apesar disso, o direito premial não seja algo a que os juízes sejam particularmente recetivos.
Ainda que, de momento, não exista em Portugal o estatuto de denunciante para proteger pessoas como Rui Pinto, está em marcha uma diretiva comunitária desde 16 de dezembro de 2019 que o Governo português vai ter de aplicar e regulamentar até 2021. E o que se discute agora é se essa diretiva não será uma espécie de delação premiada à imagem da realidade brasileira que serviu para a prisão do ex-presidente do Brasil, Lula da Silva.
Embora assuma não ter conhecimento do texto da diretiva, o advogado tem dúvidas de que a ideia seja copiar o que acontece no Brasil até porque a delação premiada "tem vindo a mostrar algumas incongruências e alguns perigos, ao ponto de certos advogados estarem contra a sua aplicação."
"Neste momento não existe em Portugal o estatuto de denunciante que dê uma proteção jurídica a alguém que denuncie um crime de corrupção e que muitas vezes, acaba sujeito a pressões, represálias e ameaças. Vai existir. Até lá, hackers como Rui Pinto não podem beneficiar dele porque simplesmente não existe juridicamente", continua.
O que muda com o Luanda Leaks e qual o desfecho previsto para Rui Pinto?
Depois de se saber que Rui Pinto também esteve por detrás da denúncia de um alegado esquema de corrupção na criação do império de Isabel dos Santos, lançou-se a dúvida sobre se isso poderia ou não servir de atenuante no julgamento do caso Football Leaks.
Ainda que os juristas envolvidos no caso digam não ser possível determinar o impacto que isso terá no julgamento, o advogado Paulo Pereira é mais confiante: "Se um hacker, que já está a ser acusado pela prática de vários crimes e denunciam um outro alegado esquema de corrupção, tenho dúvidas de que possa tirar proveito dessa situação. Precisamente porque se parte do pressuposto que, tal como a anterior, também esta denúncia terá sido feita com base em provas obtidas de forma ilegal."
Devido à complexidade do caso, o advogado Paulo Pereira diz que o desfecho é tão difícil de prever como o de um jogo de futebol. A expressão perderia todo o peso se não tivesse sido o futebol a pôr Rui Pinto debaixo de fogo, mas o especialista diz que o "prognóstico" vai depender sempre do tipo de julgamento "e da sensibilidade do juiz".
No entanto, e pelo material que dispõe para análise, o advogado não vê uma outra decisão que não seja a da condenação pelos crimes cometidos.
"Os juízes poderão aplicar uma pena mais ou menos pesada em função de determinados fatores, nomeadamente, o arrependimento de um hacker e a garantia de que não voltará a cometer o mesmo tipo de crimes. Mas se se comprovar que esta nova divulgação [o Luanda Leaks] foi com base em obtenção indevida, então o indivíduo está a ser reincidente e não pode beneficiar da atenuação especial da pena", diz.
E conclui: "A provarem-se os crimes, não creio que o tribunal tenha outra opção que não a condenação do autor dos mesmos, ainda que queiram transformar o hacker em herói."