Tem algum preconceito com quando a descrevem como blogger e enerva-se quando a limitam a influenciadora digital. Joana Gama, 34 anos, tem um blogue, faz espetáculos de stand-up, construiu uma carreira na rádio e lançou, em plena pandemia, o seu podcast "Psycotherapia". É aqui que Joana extravasa demónios, enfrenta traumas e admite estar à procura de uma melhor versão de si mesma.

Quando lhe perguntamos quais as diferenças entre essa versão e a que está sentada à nossa frente, é assertiva e imediata na resposta. "A minha melhor versão passa por conseguir aceitar que nunca serei perfeita, por não viver nessa angústia e de ser capaz de olhar ao espelho e pensar que estou fixe." Mas com a exposição, vêm as possíveis consequências já que, como admite, tem "um problema" — o facto de se esquecer que a vida continua depois das suas revelações ou confissões.

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E a comediante — é assim que prefere ser apresentada, já agora — tem muito a confessar: que não é boa pessoa, que se está a "cagar" (palavras da própria) para quem não gosta dela e para o quão possessiva foi nas suas relações anteriores, ao ponto de verificar mensagens e e-mails da pessoa com quem estava.

"No podcast digo que já fui assim e que tinha problemas. Ainda tenho alguns, mas já não são estes e está tudo bem. Mas o ângulo com que apresento as coisas também é muito produtivo porque admito as minhas falhas, reconhecendo que não são saudáveis, e demonstro vontade de mudar", explica. 

Desde o seu podcast, a saída do "Maluco Beleza", de Rui Unas, passando pelos traumas da infância, Joana Gama, que se prepara para lançar um livro ("Alguém Que Me Cale", editado pela Arena Editora e com o preço de 14,90€) foi a todas e sempre com o mesmo à vontade por que ficou conhecida.

Tem um blogue, um podcast, espetáculos de stand-up e faz rádio. Quando lhe perguntam a profissão, sabe responder?
Respondo, mas sempre com a noção de que estou a mentir. Digo que sou comediante, porque é aquilo que mais me enche de orgulho. Há uns dias referiram-se a mim como blogger e fiquei com algum azedume. Quando tive uma reunião com uma cliente — adoro dizer que tenho reuniões com clientes [risos] —, também me disseram qualquer coisa como: “Pois, vocês influencers…”. Caraças, esse termo enerva-me.

Ainda que seja mentira, porque não me considero comediante, é o único termo que me faz sentido usar.

Porquê?
Porque quando o digo, penso: “‘Tá fixe, vivo bem com isto. Não mexe mais”. É isso que gosto de dizer. Mas na prática, e se for honesta comigo mesma, sinto que sou uma comunicadora porque gosto de comunicar. Essa descrição irritava muito o meu ex-marido, mas é o que gosto de fazer. Só que, na prática, gostar de comunicar não é nada. Sei que não é nada, mas gosto de comunicar, seja qual for a vertente ou o tom. É uma necessidade que tenho e é o único paralelismo em tudo o que eu faço: em que, basicamente, sou eu a falar bué.

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Mas por que não blogger? Ou radialista? No fundo, também é nesses meios que se movimenta.
Tenho algum preconceito, confesso, com o termo blogger. Principalmente no que toca ao segmento em que o meu blogue está inserido [“A Mãe É Que Sabe”, um blogue sobre maternidade]. Não leio blogues porque me aborrece ler tudo aquilo que as outras pessoas escrevem. Não é por mal, estou só mesmo a borrifar-me. Mas também porque não me identifico com aqueles sobre os quais passei a vista há alguns anos.

Por algum motivo em específico?
Parecia-me tudo muito materialista ou idílico e isso criava-me alguma ansiedade porque não tinha algumas das coisas que algumas dessas pessoas que tinham blogues diziam ser importantes para ser-se feliz. Às vezes lia o que escreviam e pensava: “Mas porque é que parece estar tudo bem com a vida dos outros e com a minha nunca está?”. Isso fez-me a afastar do meio, mesmo que escrevesse nele. Mas também foi por isso que surgiu aquele projeto [o blogue "A Mãe É Que Sabe"], de uma tentativa de esvaziar a minha tendência depressiva, misturando isso com temas de maternidade.

Depois percebi que havia muitas mães que estavam na merda e que talvez isso tenha contribuído para o blogue ter alcançado o sucesso que alcançou.

A minha melhor versão passa por conseguir aceitar que nunca serei perfeita, por não viver nessa angústia e de ser capaz de olhar ao espelho e pensar que estou fixe

E quanto a ser radialista?
Opá… trabalho em rádio há coisa de 13 anos, mas nunca me identifiquei como locutora ou radialista. Sempre me vi como uma comunicadora que, por acaso, agora faz rádio. Apesar de ser uma área que está muito presente no meu ADN e na minha família, não me identifico só com uma coisa. Mas comediante ou humoristas são a descrições que talvez me dão mais conforto.

Talvez porque, em Portugal, há uma tendência para não se levar os humoristas e os artistas a sério e isso, de alguma forma, dá-lhe espaço para não se sentir presa?
Acho que tem mais que ver com a minha família e não tanto com as pessoas. A minha mãe e o meu padrasto são de Direito, o meu pai é engenheiro químico e professor numa universidade. Nesse contexto, ser a primeira artista foi preocupar um bocadinho a família [risos]. “Olhem, ela é artista. Menos uma, foi-se”, era nesses termos que se falava disto lá em casa.

De certa forma, nunca estive formatada para abraçar o meu lado artístico e dizer é assim que me sinto.

Não sente que caiba nesse estereótipo?
Nada. Tenho, muito por influência familiar, a cabeça formatada para o sucesso profissional em contexto empresarial e não tanto para devaneios artísticos. Mas, no fundo, é isso que sou, caraças [risos].

É isso que me tem feito viver nestes últimos dois anos porque, na verdade, não ganhei dinheiro com outras coisas.

Joana Gama.
créditos: Luís Pereira/MAGG

Repete muito, inclusive no podcast, a ideia de que vive todos os dias à procura da sua melhor versão. Que diferenças há entre essa Joana e a que está sentada à minha frente?
A minha melhor versão passa por conseguir aceitar que nunca serei perfeita, por não viver nessa angústia e de ser capaz de olhar ao espelho e pensar que estou fixe. Não me encaixo em nenhum molde, não tenho grandes referências de pessoas que sejam como sou, ou como acho que sou. A ideia de poder olhar-me ao espelho e sentir que não preciso de mudar mais nada é-me muito importante.

Esse descanso psicológico é o meu objetivo e seria a melhor versão de mim, mas tenho vindo a reparar que, ao longo dos últimos anos, tem havido uma evolução gigante em termos de maturidade emocional e de sanidade mental. Ao estagnar-se, a vida acaba a ser sempre uma valente merda.

No ponto em que se encontra agora, está mais longe ou mais próxima de a encontrar essa versão?
Quero acreditar que estou cada vez mais perto. Até há uns anos, havia uma palavra que me fazia espécie. Era "gratidão". Diziam-me sempre: "Tens de praticar a gratidão por teres a filha que tens." Como assim, man? Haveria de me sentir grata porquê? Fui eu que a fiz. Outras vezes diziam-me para ser grata por ter comida na mesa. Mas eu trabalho para isso, porra. Inicialmente era muito assim que pensava. Não me fazia sentido estar grata se trabalhava para que as coisas acontecessem.

Mas agora. Percebo o que é distanciarmo-nos um bocadinho do nosso presente e conseguirmos entender que, sim, fizemos por que as coisas acontecessem, mas ainda bem que essas oportunidades surgiram. E isso é especialmente verdade para os programas em que participei, como o "Maluco Beleza" [de Rui Unas] ou a "Prova Oral" [de Fernando Alvim], porque a verdade é que há pessoas muito melhores do que eu, mas as oportunidades vieram ter comigo.

E isso é de celebrar, e não só de aceitar.

Quando essas oportunidades surgem, desvaloriza e acredita ser só sorte ou reconhece que foi porque alguém achou que seria a pessoa certa?
Ah, caraças...

É-lhe difícil reconhecer valor no seu trabalho?
Não sei se o termo está correto, mas costumo enquadrar-me como tendo uma falha narcísica. Vai toda a gente cair-me em cima depois desta entrevista, mas que se lixe [risos]. Essa falha faz-me acreditar que sou melhor do que todos os outros, mas que isso só é verdade porque todos os outros são uma merda. Não é porque eu seja uma grande coisa, mas porque, de facto, não há mais ninguém a fazer isto. Quando esses convites surgem, atribuo-os ao minha maneira de ser — de não estar parada, de me mexer, de correr atrás das oportunidades.

Por exemplo, fiz parte do "Maluco Beleza" porque, quando saí da Rádio Renascença, tive a ideia de fazer um podcast e perguntei nos meus Stories com quem é que os meus seguidores gostariam de me ver a trabalhar. Mediante as respostas, ia mencionando as pessoas. Quando mencionei o Unas, fui buscar um vídeo sobre um trabalho que tinha feito com ele no Rock in Rio, precisamente para ele perceber que tivemos uma boa química durante aquele formato.  Depois disso, respondeu-me, convidou-me e a coisa deu-se. Com o Alvim foi semelhante, porque já o conhecia há vários anos e até já tinha sugerido trabalhar com ele.

Gosto de acreditar que construo as minhas oportunidades, mas claro que consegui concretizá-las não se deve só a esta atitude. Talvez seja porque sou fixe.

É instinto de sobrevivência?
Para quem vive diariamente com ansiedade, como é o meu caso, sim. E uma das coisas boas é essa: ter de me safar, dê por onde der. A minha cabeça funciona de forma estratégica e da mesma maneira que acredito não ter nada de interessante em mim, penso que tenho de me safar e mexer-me para sair de uma situação pouco confortável. Se tiver de mencionar o Unas, por exemplo, menciono-o.

O pior que pode acontecer é ouvir um "não".
Seria só mais um, que se lixe.

"Não sou filantropa nem boa pessoa, mas sinto necessidade de ajudar os outros com problemas com os quais também me identifique. Nesse aspeto, o podcast preenche-me"

Essa procura decorre também da necessidade de se expor neste podcast em que fala abertamente sobre tudo, mas especialmente de saúde mental?
Surge, essencialmente, da consciencialização de que tenho vindo sempre a trabalhar em dupla e isso fez-me perceber que estava a ganhar medo a fazer coisas sozinha. Quando o fazes a solo, só tu é que estas a ser avaliado e não dá para te desculpares com a performance de outra pessoa. Se ficar uma valente merda, é porque tu próprio não estiveste bem. Quando comecei a pensar em coisas novas para fazer, perguntei-me: "Porque é que haveria de me envolver num projeto que me desse muito trabalho? O que é que aconteceria se eu me legitimasse?".

Pensei que se falasse do que me apetecesse num podcast, não teria obrigatoriedade nenhuma. Claro que uma das coisas que faz parte do meu arquétipo é tentar ajudar as outras pessoas. Não sou filantropa nem boa pessoa, mas sinto necessidade de ajudar os outros com problemas com os quais também me identifique. Nesse aspeto, o podcast preenche-me porque faz-me sentir que algumas das conclusões às quais tenha chegado poderão ser um atalho para outras pessoas que possam estar nas mesmas situações que eu estive. À semelhança do blogue, o podcast decorre de um aborrecimento meu no geral e de uma necessidade de extravasar. Surge muito nesse contexto de sentir que estava só a ser mãe e a precisar de ser mais coisas. Mas a estrutura do meu podcast não foge muito ao tipo de conversas que tenho diariamente com várias pessoas da minha vida.

Prepara alguma coisa para os episódios ou é natural?
É totalmente feito em direto, sem preparação ou edição. A única coisa que quis estipular foi não ter qualquer obrigatoriedade, porque em rádio há uma obrigatoriedade dos diretos e de, todos os dias, ter de preparar o programa do dia seguinte. Não queria nada disso, mas sim que fosse sobre temas que me surgissem na altura e que me dessem vontade de falar.

Não preparo nada, por isso, mas tenho a mentalidade de, diariamente, avaliar se estou ou não com vontade de falar sobre um determinado assunto.

Qual foi o episódio que mais lhe custou gravar?
O primeiro, sem dúvida, aquele de poucos minutos em que apresento o projeto. Estive durante três meses a adiar aquela porra. Porque, na minha cabeça, pensava: "Fiz rádio durante tantos anos e isto é só uma grande faixa de voz. É relativamente simples". Mas estava cheia de medo, não conseguia respirar e estava completamente sozinha naquele projeto. Foi o pior.

E arrependimentos sobre alguma coisa que tenha dito, há?
Tenho um problema que é esquecer-me que a vida vai continuar a acontecer depois disto.

Esquece o impacto do que diz e do que faz?
A médio e longo prazo, sim. E antes de conhecer o meu namorado, fartei-me de falar de merdas. Dizia que não era gaja de curtes, que só queria namorar... Só que quando começas a namorar e essa pessoa já ouviu o podcast, já sabe naquilo em que se está a meter e sente a pressão.

Perde-se alguma magia?
Perde-se, mas é o que é. Porque é que haveria de estar a fingir uma coisa que não sou? Não sou de pensar coisas como: "Não, não. É-me tranquilo se queres dormir comigo ou não. Tenho bué vida social e és-me pouco importante." Não sou assim. A pessoa que estiver comigo já sabe que estou obcecada.

Deixa de haver mistério, mas pelo menos há verdade.

Num dos episódios fala abertamente sobre ser possessiva nas relações. Admite ter visto mensagens [de parceiros anteriores] e admite...
Ser um bocadinho psycho, sim...

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Como é que uma pessoa que acabou de conhecer e que ouviu o podcast encaixa essa informação?
É a coisa boa disto: a fase de marketing inicial acaba rapidamente. Não há aquela coisa de passar a ideia de que sou super saudável, que sou a mulher da vida dele e que não tenho problemas. Não. Se essa pessoa ouviu o podcast, sabe exatamente na merda em que se está meter.

Mas, atenção, também sou esperta. No podcast digo que já fui assim e que tinha problemas. Ainda tenho alguns, mas já não são estes e está tudo bem. Mas o ângulo com que apresento as coisas também é muito produtivo porque admito as minhas falhas, reconhecendo que não são saudáveis, e demonstro vontade de mudar. No outro dia, por exemplo, o meu namorado deixou a conta de e-mail aberta no meu computador e bazou. Quando me sentei à secretária e percebi, fechei a janela e não vi nada. Mas depende muito da relação que se tem.

E nesta há confiança.
Quando deixas de andar com cabrões, a dinâmica muda.

Num meio como este, de egos e de plasticidade, sente que o que faz e a maneira como se expõe é pouco comum?
Sinto, primeiro do que tudo, que é um tiro no pé porque não posso comparar o meu percurso com o de ninguém. Pode ser ignorância minha, porque afasto-me muito dos outros para não me comparar. Mas também não me imagino a ser de outra maneira. A minha ansiedade não me permite fingir uma coisa que não sou. Sinto-me fisicamente mal se tiver de o fazer.

E já teve de o fazer?
Há pouco tempo tive um problema relacionado com isso. Tive uma parceria com um hotel de cinco estrelas em que me puseram numa suite de luxo a estrear. Gostava muito de fazer uma espécie de tour da suite, mas não queria que fosse a ostentar à parva porque não sou influenciadora nem nada do género. A maneira que encontrei de fazer um conteúdo divertido, foi aparecer toda camiona, vestida com roupas da Decathlon e a mandar vir com as coisas da suite — que é só uma das melhores que alguma vez verei na minha vida.

Isso resultou num desconforto da marca. Acharam giro, mas não. Não podia ser. Problema? Não me imaginava a fazer aquilo de outra maneira, a pôr Stories na piscina e a dizer como a vida era boa. Não descarto essa malta, mas sinto-me mesmo mal.

Mas a pergunta era se alguma vez, em qualquer projeto que tenha participado, teve de fingir. No "Maluco Beleza", por exemplo.
Não. E no momento em que senti que seria necessário começar a fingir, fui-me embora. Estamos a viver na era do politicamente correto, dos wokes e tudo isso é necessário para a nossa evolução. Mas não me agrada sentir-me limitada pela opinião alheia.

Há momentos para brincar e há outros para falar a sério, e consigo separar a pessoa da persona embora saiba as consequências negativas que existem ao brincar com determinado assunto por estar a perpetuar estereótipos.

Tenho uma coisa que acho ser patológica, talvez devido a alguns traumas de infância e ao divórcio dos meus pais. É que quando as coisas me doem muito, é como se elas não existissem.

Refere-se ao episódio em que José Castelo Branco esteve no "Maluco Beleza"?
Sim. Porra, não me lixem. Não tenho nada contra o senhor. Acho-o bastante articulado, claro que diz coisas imbecis — porque quer, atenção —, mas um momento daqueles é para puxar para a risada. Ou íamos para o momento emocional de descoberta do "eu" dele, mas eu senti a necessidade de animar a conversa porque era o José Castelo Branco.

Foi aí que começou a receber críticas pela postura que teve no formato.
Se com o José Castelo Branco não podia ser quem sou, não estava ali a fazer nada. Não é por mal. Isto acontece quando há uma espécie de desenquadramento num projeto. Não é que eu seja má ou o projeto não seja suficiente, mas senti que o espaço que estava a ocupar ali não estava certo.

Uma das críticas que lhe fizeram foi a de cortar a fluidez da conversa, de interromper o convidado por diversas vezes.
Foi, sim. Mas houve outros convidados em que não interferi tanto, mas noutros temas sentia que fazia todo o sentido ser eu a estar lá — especialmente quando eram humoristas ou pessoas geralmente bem dispostas. Houve um programa que me correu muito bem com um gajo do Sporting que era muito criticado...

Bruno de Carvalho?
Esse mesmo. Não era humorista, por exemplo, mas fartei-me de o interromper e o programa foi do caraças.

O que mudou para que as críticas ao programa com José Castelo Branco tivessem ganhado outra proporção?
Não sei. Lembro-me que a certa altura ele disse que tinha uma grande preocupação com o ambiente e eu respondi: "Então porque é que se encheu de plástico na cara?". Era uma simples graça que faz parte da minha persona, mas houve quem tivesse levado a mal.

As críticas que recebeu fizeram mossa?
O [Rui] Unas deu-me sempre muito espaço e muita liberdade para ser quem sou e muitas vezes dizia-me para não ligar aos comentários, que não se podia agradar a todos. Mas ainda que fizesse um esforço para ter esse distanciamento, ainda hoje acredito que não podemos ser completamente surdos a tudo o que está a acontecer à nossa volta.

Se as críticas surgem em massa, é porque se passa alguma coisa. Não quer dizer que eu seja má, mas significa que talvez tenha de repensar qualquer coisa. Não sai por achar que a multidão me odiava. Obviamente que me estou a cagar se a multidão me odeia ou não. O meu dinheiro é o mesmo, a diversão também... mas o que é que aquilo queria dizer? Fiz esse exercício e decidi bazar.

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Mas fizeram mossa?
Tenho uma coisa que acho ser patológica, talvez devido a alguns traumas de infância e ao divórcio dos meus pais. É que quando as coisas me doem muito, é como se elas não existissem. E isso faz-me desvalorizar tanto os comentários negativos, como os positivos.

Num dos episódios do podcast, tem um episódio chamado “Escolhi não morrer logo” no qual diz ter vivido durante 20 anos “na merda”. O que é que isto quer dizer?
A minha ex-namorada dizia-me muito isto: "Já passaste pelas piores merdas da tua vida, por isso aguentas tudo." E atenção, nunca fui violada nem nada que se pareça. Falo nisto nestes termos devido à perceção que tenho de alguns dos traumas de infância, que me aconteceram, como o divórcio dos meus pais, e outros que eu fiz com que acontecessem. Isso criou-me esse espaço para gratidão. A minha tolerância à dor aumentou tanto que hoje já sou capaz de dizer que não quero morrer, que está um ótimo dia para respirar.

Já estive tão mal que agora sinto ser capaz de estar fixe.

"Já fui assediada gravemente, ao ponto de ainda hoje ter pesadelos com isso, mais de dez vezes na minha vida"

Consegue precisar o ou os momentos que a quebraram ou falar disto nestes termos é demasiado simplista?
Não é, de todo. Há uma série de momentos que me marcaram e um deles aconteceu quando tinha 13 anos. Fui vítima de revenge porn [a partilha de imagens ou vídeos de teor sexual sem o consentimento dos visados] e fui confrontada, e até ameaçada, com isso até aos meus 20 e tal anos — inclusive em sítios onde trabalhei. Afetou-me — e irá afetar-me para a vida inteira — ao ponto de envolver a Polícia Judiciária e tribunais.

Depois houve outras coisas, como o divórcio dos meus pais e o facto de a saída de casa do meu pai ter acontecido à minha frente, o que causou em mim um desconforto relativamente ao sexo masculino e me fez ter um trauma de abandono. Depois há também o facto de, por uma razão que não compreendo, ser uma pessoa extremamente assediável. Já fui assediada gravemente, ao ponto de ainda hoje ter pesadelos com isso, mais de dez vezes na minha vida. Não sei se é o meu à vontade ou o que quer que seja, mas os predadores vêm todos ter comigo.

Joana Gama.
créditos: Luis Pereira/MAGG

Sentiu-se a reviver o divórcio dos seus pais quando, em 2017, se divorciou de Frederico Pombares?
Inconscientemente, estou a recriar o padrão da minha infância. Não senti medo de o fazer porque, após o divórcio dos meus pais, foi a minha mãe que me criou sozinha. Quando começaram a surgir os primeiros problemas na minha relação com o Frederico, senti-mo-nos relativamente confortáveis pela decisão de terminar o casamento porque sentíamos alguma familiaridade com isso devido às referências da minha infância. E apesar da minha mãe ser uma mulher que tem muita coisa que nunca serei capaz de compreender, é uma mulher de forças e nunca senti que o lado feminino, aquele que tinha como referência ao crescer com pais divorciados, fosse de fragilidade.

Tendo uma filha, sente o receio de lhe passar algumas das suas inseguranças?
É uma grande merda. Egocêntrica como sou, quase que, de forma irracional, não consigo atribuir nenhuma autoria da personalidade da Irene a ela própria. Se ela faz alguma coisa de diferente, penso de imediato que a culpa é minha e que fui eu que lhe passei a ansiedade toda pelo leite quando a amamentei. Projeto-me imenso nela e tenho muito receio disso.

Este novo livro é também um extravasar dessas inseguranças?
Também. Mas é, acima de tudo, uma vontade minha de comunicar. Mas claro que também aqui dou palco a alguma das minhas frustrações e inseguranças. Mas não é só isso: falo de amor, maternidade, ansiedade (lá está)...

Dá palco a todas as suas inseguranças?
Há coisas de que não consegui falar, muito porque em falhou a coragem.

Na capa do seu livro diz: "As entranhas de quem tem tanto medo que já nem se assusta". É também disso que tem medo?
Também, mas principalmente tenho medo de ser. Não sei ser e não tenho jeito nenhum para isso. Por exemplo, namoro com um gajo que é beto, o que é uma chatice. Porque quando tenho de conhecer a família dele, penso: "O que é que eu visto, meu? Como é que falo? Como é que se pega num copo? Quais é que são os primeiros talheres? Como é que é suposto uma gaja sentar-se?".

Não me sinto encaixada em ser feminina ou masculino, em ser comediante ou em ser artista, porque não sei ser, ponto.

É aquela pessoa que, vista de fora, parece desajeitada em qualquer situação?
O problema é esse: não sei se pareço ou se, efetivamente, sou assim. Mas sinto-me sempre desenquadrada. Os músicos têm aquela merda do metrónomo que os guia durante uma canção. Não tenho nada disso, nunca tive.