Lembram-se quando Portugal ia do Minho a Timor? Os mais novos (ou os mais distraídos) podem pensar que estamos a sofrer as consequências de um golpe de calor, mas Portugal, de facto, já foi bem além do Algarve. Pelo menos na cabeça cheia de imaginação, chamemos-lhe assim, de Salazar que, nos anos 60, introduziu este slogan como prova da nossa grandiosidade.
Não que Portugal não seja imenso, mas vamos cingir esse espírito colonialista à comida. É da maneira que saímos todos a ganhar, principalmente agora que nem precisamos de correr Lisboa à procura de comida goesa, angolana ou de Macau. O Geographia reúne tudo num só espaço, com pratos onde cabe toda uma portugalidade.
"Mas atenção: não somos um restaurante de colonialistas nem um restaurante de saudade", começa por avisar Rúben Obadia, um dos três sócios do espaço. O trio fica fechado com Miguel Júdice, que detém já vários outros restaurantes e hotéis, e a polaca Lucyna Szymanska, responsável pela agência de modelos D'Vision. Amigos de longa data, sabiam que, mais cedo ou mais tarde, iam estar juntos num projeto. "Pensámos numa casa de fados ou num restaurante de comida tradicional portuguesa, mas nada nos parecia suficiente para marcar a diferença", explica.
Essa vontade de marcar uma posição na restauração chegou quando, simplesmente, voltaram às bases. "Temos um património tão rico, fomos tão exploradores, que bastou rever toda essa história para chegar a um conceito que, por incrível que pareça, ainda não existia em Lisboa", admite.
À mesa com o que fala português
O novo restaurante abriu tendo como vizinho o Museu Nacional de Arte Antiga numa praceta que junta o melhor de dois mundos: a familiaridade que permite ao padeiro deixar o pão pendurado nas portas e as curtas estadias dos turistas que trazem vida à pacatez do bairro. E é exatamente uma mistura entre portugueses e estrangeiros que vemos entrar e sair no dia que decidimos lá almoçar.
O restaurante tem duas salas ainda que, para já, apenas uma esteja a funcionar. Sentámo-nos de frente para o Ulisses oferecido ao rei Dom Manuel I e que aqui está eternizado num poster gigante, mesmo ao lado de Magalhães, um macaco que viveu no zoo de Lagos e que foi empalhado para estar agora a subir uma das colunas que sustenta o restaurante. Histórias mais felizes moram na outra sala porque, apesar de continuarmos na temática de animais nas paredes, pelo menos esta cabeça de rinoceronte é feita por uma ONG que faz esculturas com chinelos apanhados nas praias do Quénia.
Já percebemos que aqui não se poupam na forma impactante de passar a mensagem, algo que se nota também na comida. O picante, que pode ser pedido para dar um toque especial a alguns dos pratos da ementa, é de tal forma forte que "ou levanta mortos ou faz filhos", brinca Rúben.
Mas os intolerantes a esta explosão de sabores podem estar descansados. Existem opções para todos os gostos e mesmo os pratos especialmente picantes podem ser adaptados a quem prefere sabores mais leves. "Estamos em casa, tudo se faz", garante Rúben.
É que na rifa do menu do dia — que inclui couvert, entrada, bebida e café (14€) — saiu-nos o caril de camarão à goesa com arroz de coco. Pedimos uma variação apenas com camarão salteado mas deixamos que a curiosidade nos guie até à travessa vizinha do caril. Basta uma garfada para perceber que, de facto, é para rijos, e que o arroz de coco é ainda mais delicioso quando comido nesta versão menos aventureira que acabamos de inventar.
Viajámos até Goa, mas podíamos ter decidido ir até Angola com a moamba de peixe (13€), Moçambique e a sua galinha de campo ao caril de amendoim (14€) ou até Macau — qual música dos Da Vinci — com o arroz gordo de enchidos (14€).
Há ainda uma série de pratos que nos deixam com um pé em cada continente. O escondidinho, por exemplo, apesar de ser uma especialidade brasileira, é feito com o tão português bacalhau, assim como os "Fritinhos dos 4 continentes", de entrada, que junta num só prato, variantes de Portugal, Goa, Brasil, Timor Leste, África. O bolinho de bacalhau, um dos "fritinhos", tem bacalhau, como é óbvio, mas a mandioca substitui a habitual batata. E já que saltamos para as entradas, importa referir mais uma ligação entre Portugal e Brasil numa "sapateira que queria ser casquinha de siri" ou ainda entre Portugal e Goa na sopa de peixe com maionese de garam masala.
As sobremesas ainda não chegaram à mesa, mas basta ler as descrições para perceber que não é aqui que os sabores vão ser poupados. "Mousse de chocolate de São Tomé com o seu salame", que é mesmo isso que está a pensar: um pote de uma densa mousse com uma fatia de salame cortada aos quadradinhos como topping (5€). Há ainda o quindim com sorvete de caipirinha (6€) ou a bebinca com gelado de baunilha (6,5€).
O último item da lista esconde uma curiosidade. Chama-se Portukal e leva laranja, azeite e canela. "Foram os portugueses a trazer a laranja para a Europa e, antes de sermos o país do Figo ou do Ronaldo éramos, para os estrangeiros, o país das laranjas", explica Rúben. Sabia que, Portugal, em países como a Roménia, a Arménia ou o Iraque, Portugal significa laranja? Nós não sabíamos, mas na próxima visita, já sabemos o que pedir assim que chega a pergunta mágica: "Então de sobremesa, o que é que vai ser?".
Uma carta inacabada
Os vinhos vêm de pequenos produtores, assim como o azeite, e o café é de marca própria que, assim como chá e o picante, vai passar brevemente a ser vendido ao público.
A mistura de sabores ganha forma também no mixer dos cocktails. O mojito é feito com grogue de Cabo Verde (6€) e a Caipirinha chama-se "Gabriela, Cravo e Canela" e, para justificar o nome, é mesmo feita com cravo e canela.
A esta espécie de "embaixada da gastronomia de língua portuguesa", como lhe chamam os sócios, pode vir quem tem saudades do que comia nas colónias, quem está habituado ao que de mais tradicional Portugal tem ou ainda quem quer simplesmente ter a experiência de viver, mais que não seja por uma ou duas horas, entre os países que têm a língua como unidade.
É que nem de propósito, e toda a gerência garante ter sido uma total (e feliz) coincidência, o primeiro cliente do Geographia foi José Eduardo Agualusa, o escritor que habitualmente personifica esta mistura de culturas em palavras, mas que não quis deixar de a experimentar servida num prato.