Antes que venham as piadas sobre loiça com formato fálico, deixamos já o aviso: as Caldas da Rainha são muito (mais muito) mais do que isso. Da arquitetura à cerâmica, da gastronomia às termas, passando pelos jardins e pela arte, 24 horas é muito pouco tempo para conhecer a fundo esta cidade vibrante, onde em cada recanto se esconde uma loja repleta de obras de artesãos locais, um edifício de Arte Nova ou um pão muito especial que só se consegue comprar às sextas-feiras e é feito com trigo cultivado e produzido localmente. Mas já lá vamos.

Uma piscina privada e um chef a cozinhar para nós? Descubra onde é este paraíso
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José Malhoa e Rafael Bordallo Pinheiro podem ser dois dos nomes mais famosos das Caldas da Rainha mas tudo isto começou por culpa de uma mulher. Reza a lenda que, em 1484, de viagem de Óbidos para a Batalha, a rainha D. Leonor (mulher do rei D. João II) se deparou com populares a banharem-se em águas fétidas, porém curativas. Resumindo e baralhando, Leonor de Avis (fundadora também da Santa Casa da Misericórdia, já que estamos numa de factos históricos), que se diz que padecia de maleitas várias, banhou-se nas águas e não foi de modas. Mandou edificar o hospital termal que não só existe até aos dias de hoje como foi reabilitado e reabriu portas a 15 de maio.

Chegados às Caldas, a prioridade era pousar a bagagem e descansar um pouco antes do jantar. E é aqui que começa a nossa viagem, marcada em cada paragem pelo espírito empreendedor e cosmopolita que se vive nesta cidade do oeste. E não somos só nós que dizemos: é que as Caldas da Rainha pertencem desde 2019 à Rede de Cidades Criativas da UNESCO, com o título de Cidade Criativa do Artesanato e Artes Populares.

Dormir com artistas na 19 Tile Boutique House

Calma, não lhe vamos revelar pormenores da nossa vida íntima. A 19 Tile Boutique House, situada no coração da cidade, é uma homenagem aos artistas locais em forma de hotel. Cada um dos quartos foi imaginado por sete ceramistas caldenses (Maria João Peres, Cláudia Canas, Mário Reis, Elsa Rebelo, Ana Sobral, Francisco Correia, Bolota), sendo as peças não só elementos decorativos como também utilitários (como é o caso dos lavatórios dos quartos, todos eles diferentes e criados pelos artistas). O 19 Tile tem ainda uma Pátio House e o Studio Bordallo, com capacidade para cinco e seis hóspedes.

Peças de cerâmica de Francisco Correia no 19 Tile
Peças de cerâmica de Francisco Correia no 19 Tile Peças de cerâmica de Francisco Correia no 19 Tile créditos: MAGG

E porquê 19 Tile (Azulejo 19, em português)? Porque essa era a numeração dos azulejos amarelo ocre que se encontram nas paredes da escada interior do edifício que une os pisos e nos conduz à sala onde são servidas as refeições (e na qual está uma espantosa mesa de madeira que nos faz pensar como é que foi transportada ali para dentro).

Aquando o encerramento da fábrica SECLA (Sociedade de Exportação e Cerâmica SA), em 2008, muitos ceramistas caldenses iniciaram os seus próprios negócios. Hoje em dia, existem cerca de meia centena de artistas independentes.

O edifício da 19 Tile remonta ao tempo em que Rafael Bordallo Pinheiro (o pai da tradição cerâmica moderna das Caldas da Rainha) vivia na cidade. Apesar de ter nascido em Lisboa, o criador da figura do Zé Povinho viveu durante muitos anos nesta cidade do oeste, tornando-a o epicentro nacional não só da cerâmica, mas de toda uma tradição de artes e artesanato que se mantém até aos dias de hoje.

19 Tile Boutique House
Rua General Queirós 46, 2500-211 Caldas da Rainha
Tel: (+351 ) 910 435 284
E-mail: info@19tile.pt

Jantar no Afinidades

Os símbolos da Rota Bordaliana estão espalhados um pouco por toda a cidade. À entrada do restaurante Afinidades somos recebidos pela figura autoritária e bisonha do polícia de Lisboa que, ainda que feito de loiça, parece que perscruta os comportamentos dos transeuntes. Somos recebidos por Jorge Guilherme que, ao contrário do polícia, é só simpatia e hospitalidade.

polícia civil afinidades
polícia civil afinidades créditos: MAGG

Acompanhamos a refeição com Espera, não de tempo, mas de vinho. Mais concretamente um vinho branco da região de Lisboa, leve e fresco, que combina as uvas Arinto e Fernão Pires. De copo cheio, começam a chegar à mesa as estrelas: mexilhão, tiborna com gravlax de salmão com um ovo perfeitamente escalfado, queijo de cabra com frutos vermelhos e frutos secos, carpaccio de vitela barrosã. Para prato principal, uma dourada ao sal acompanhada dos melhores legumes que já provámos nos últimos tempos (de destacar aquelas batatinhas perfeitamente salteadas). E, para finalizar, coisa pouca: um pudim de vinho do Porto com gelado de limão e ainda o doce da casa (gelado de cavaca, um dos doces típicos das Caldas da Rainha, com pera do Oeste).

Restaurante Afinidades
935 885 438
R. do Provedor Frei Jorge de São Paulo 1, 2500-254 Caldas da Rainha

No final da refeição, José Guilherme ainda nos dá um miminho para trazermos como recordação: um cabaz da Mercearia Pena, histórico estabelecimento caldense, fundado em 1909. Há Beijinhos das Caldas, Café d’Avó (mistura feita pela mercearia) e ainda doce de pera rocha.

Comprar fruta na Praça da República

Pequeno-almoço tomado, um pequeno passeio leva-nos até à Praça da República. Mais conhecida como Praça da Fruta, este espaço ao ar livre é o epicentro da vida (e do comércio tradicional) da cidade. Criado oficialmente em 1883, o espaço já servia de mercado para os produtores locais desde o século XV (mais uma vez, ideia da rainha D. Leonor, que ofereceu a então praça do Rossio aos agricultores para que ali pudessem comercializar o espólio destas terras férteis e que produzem as frutas e os legumes que todos deveríamos consumir e comprar mais).

A Praça da Fruta funciona todos os dias e, por causa da pandemia, existe um contador eletrónico que avisa quantas pessoas se encontram dentro do recinto. O sábado é o dia mais agitado, com bancas não só de frutas, legumes, compotas e outros produtos produzidos localmente mas também de artesanato. O difícil é mesmo escolher.

(Tentar) fazer cerâmica com a Bolota

Isabel Claro tem 50 anos, mas desde miúda que lhe chamam Bolota. A ceramista cresceu, mas a alcunha ficou e transformou-se no nome da sua marca. "Os meus pais contam que, quando iam à feira de artesanato, bastava chegar a um oleiro, que eu ficava fascinada a vê-lo trabalhar e já não saía dali", relembra.

"Aos 16 anos, inscrevi-me no primeiro curso de olaria. Mas não me foi logo muito fácil. Aprender a trabalhar à roda não é fácil, é preciso muita persistência", conta. O clique deu-se durante um verão, em que teve tempo para treinar e, desde então, nunca mais parou.

Isabel recebe-nos no seu atelier que é também a sua casa e, assim que entramos, os olhos perdem-se nas cores, formas e brilhos das peças. Umas decorativas, outra muitas utilitárias (as canecas, os copos e os pratos são paixão à primeira vista e já nos imaginamos a usá-las num jantar de amigos ou apenas para beber café enquanto espreguiçamos num domingo de manhã).

Mas não estamos aqui para ficar a olhar para o boneco, mas sim para meter mãos à obra. E o que é que vamos fazer? Não uma, mas duas experiências: tentar criar uma taça na roda de oleiro e ainda pintar e vidrar um azulejo. Sendo pessoa que sempre teve notas miseráveis a EVT, a tarefa adivinhava-se para rir. Mas, quer por sorte de principiante quer por algum jeitinho desconhecido, a coisa lá se fez.

A ceramista Isabel Claro (Bolota)
A ceramista Isabel Claro (Bolota) A ceramista Isabel Claro (Bolota) créditos: MAGG

"O mais difícil da roda é centrarmos o barro. O barro comanda-nos, tem a mania de nos mandar. E a nossa atitude tem de ser ‘quem manda nisto sou, vais para onde eu quero e acabou-se’", orienta Isabel.

E trabalhar aquela pasta húmida e escorregadia, tendo o cuidado de ir sempre molhando os dedos, ao mesmo tempo que se controla a velocidade da roda, tem o seu quê de relaxante e terapêutico. Toda a concentração e energia é canalizada para o momento, e há algo de muito gratificante e feliz quando vemos o barro ganhar forma, subir e abrir-se às ordens dos nossos dedos. Já quando chegou o momento de agarrar nos pincéis, se fossemos professores, a nota seria um S. S de Sofrível.

No final desta aula de olaria, Isabel ainda nos presenteia com uma iguaria típica da zona: a chamada Torta da Arrelia, um dos segredos mais bem guardados das Caldas, e que conjuga uma massa leve e esponjosa com um delicado doce de ovos.

Se ficou com curiosidade, pode marcar uma visita ao atelier da Bolota (ou até mesmo um workshop de cerâmica) através do 965 292 391. As peças podem ser encomendadas por telefone ou através do email bolotaceramics@gmail.com

Almoçar na Casa Antero

E porque isto de darmos uma de Bordallo Pinheiro abre o apetite, rumamos à Casa Antero, para um belo repasto. E a expressão casa aqui na perfeição, ou não fosse este restaurante uma verdadeira instituição da cidade, de portas abertas para comensais locais e forasteiros de visita desde 1957.

Casa Antero
262 835 089
Beco do Forno, 7 2500-123 Caldas da Rainha

Para a mesa vieram vários petiscos, mas há que destacar um que merecia uma estátua: ovos rotos com tirinhas finas de batata doce frita e cogumelos frescos, primorosamente salteados. A combinação é de uma delicadeza e decadência que só a doçura desta batata, casada com a gema molengona, conseguiriam oferecer.

Houve também tempo para mergulhar um pão torrado com azeite e sal no molho da fritada de atum, provar uns fofinhos croquetes de espinafres (que não estavam farinhentos nem desenxabidos como acontece muitas vezes, quando este aperitivo é confecionado sem carne) e ainda umas empadas de galinha ainda mornas.

Fazer pão de trigo de Barbela no Forno do Beco

Paulo Santos não é um padeiro qualquer. É professor na Escola de Hotelaria e Turismo do Oeste. Além de ter o curso de escultura, é chocolatier, pasteleiro e padeiro. Natural da Covilhã, mudou-se para as Caldas da Rainha para criar uma revolução. Ou, melhor dizendo, uma "pãovolução".

Na padaria Forno do Beco há, todos os dias, pão e bolos para todos os gostos. Mas o dia especial é a sexta-feira, quando do forno saem morninhos os pães de quilo feitos com trigo de Barbela. Paulo quis (e conseguiu) por em prática uma economia circular à volta do trigo.

Ou seja, recorrer a produtores locais para cultivarem esta variedade de trigo antigo, não modificado, cujas origens se perdem na história do nosso País. Ao contrário do trigo produzido em agricultura intensiva, o trigo de Barbela requer tempo e espaço. E Paulo foi mais longe e quis fazer a experiência com as próprias mãos.

Paulo Santos, dono do Forno do Beco
Paulo Santos, dono do Forno do Beco Paulo Santos, dono do Forno do Beco créditos: MAGG

Comprou um terreno, semeou trigo e é dali que vão sair os bagos que, depois, serão moídos de forma tradicional para fazer este pão. E o que distingue o pão de trigo de Barbela dos outros? Além de ser amassado à mão, a fermentação é feita com massa mãe, criada por Paulo Santos com recurso a um ingrediente peculiar: mosto de uvas. Depois, fica a levedar durante 24 horas e, às sextas, vai ao forno.

Tivemos a sorte de receber um em casa e confirmamos o que Paulo nos disse: é um pão consistente, que enche sem pesar e que não está, como diria a minha mãe, rijo como cornos ao fim de 24 horas. Quer provar? Tem de se apressar porque, se falhar a hora, terá de esperar uma semana por mais uma fornada.

Ir às compras no Sr. Jacinto

São 120 anos de história num só edifício. O Sr. Jacinto já foi uma mercearia. Depois, passou a retrosaria, já nas mãos de José Marques Henriques. Samuel e Cláudia Henriques são a terceira geração aos comandos da casa. Há dois anos, o Sr. Jacinto fechou, mas para reabrir portas como concept store. "Trabalhamos com muitos artistas, locais e nacionais, mas privilegiando sempre os locais. Vendemos desde o artesanato às tapeçarias, cerâmicas, ilustrações, um conjunto enorme de coisas", explica Cláudia.

A retrosaria mantém-se, "para dar continuidade à história" mas, no fundo da loja, existe um atelier onde Cláudia e Samuel também fazem peças em madeira.

Visitar o Hospital Termal

Esta cidade é pioneira em tantos aspectos, mas este é o que está na génese da cidade: mandado construir pela rainha D. Leonor em 1485, é o hospital termal mais antigo do mundo.

Hospital Termal rainha D. Leonor, nas Caldas da Rainha
Hospital Termal rainha D. Leonor, nas Caldas da Rainha Hospital Termal rainha D. Leonor, nas Caldas da Rainha créditos: MAGG

As suas águas, embora mal cheirosas, são usadas para tratamentos das vias respiratórias. Depois de obras de reabilitação na ala sul (e também na Igreja da Nossa Senhora do Pópulo), o Hospital Termal Rainha d. Leonor reabriu portas a 15 de maio.

Conhecer a obra de José Malhoa

Situado no Pavilhão do Parque D. Carlos I, o Museu José Malhoa reúne as obras do artista nascido nas Caldas da Rainha. O edifício, inaugurado em 1940, foi o primeiro em Portugal a ser construído para o propósito de um museu.

Retrato da Rainha D. Leonor, pintado por José Malhoa
Retrato da Rainha D. Leonor, pintado por José Malhoa Retrato da Rainha D. Leonor, pintado por José Malhoa créditos: MAGG

José Malhoa (1855 - 1933), um dos nomes mais importantes do naturalismo português na pintura e na escultura, doou à cidade a pintura a óleo "Rainha D. Leonor", que pode ser vista numa das salas do museu. Há também obras de Columbano Bordallo Pinheiro, Silva Porto, Marques de Oliveira, Carlos Reis, Eduardo Viana, Sousa Lopes, Veloso Salgado, Dordio Gomes, Delfim Maya e Abel Manta.

Museu José Malhoa
Morada: Parque D. Carlos I, 2500-109 Caldas da Rainha
(+ 351) 262 831 984
mjosemalhoa@drcc.gov.pt

Horário de abertura ao público

De 1 de abril a 30 de setembro:
Terça-feira a Domingo, das 10h00 às 12h30 e das 14h00 às 18h00

De 1 de outubro a 31 de março:
Terça-feira a Domingo, das 10h00 às 12h30 e das 14h00 às 17h30

Bilhete geral: 3,00 € (consulte aqui descontos)

Ver o futuro no Silos - Contentor Criativo

Comparar o Silos - Contentor Criativo ao Lx Factory é não fazer justiça a este projeto. Nascido em 2010, na antiga fábrica de moagem Ceres, o Silos alberga atualmente 46 criativos da região em 24 estúdios. Nas unidades de criação, espalhadas pelos vários andares da antiga fábrica de cereais, há arquitectos, pintores, escultores, artistas de street art, de design gráfico. O objetivo foi, desde o início, fixar os criativos da região no concelho, como nos explica Nicola Henriques.

Nicola Henriques, fundador do Silos - Contentor Criativo
Nicola Henriques, fundador do Silos - Contentor Criativo Nicola Henriques, fundador do Silos - Contentor Criativo créditos: MAGG

O fundador e diretor executivo do hub criativo, nada tem que ver com o mundo das artes. Começou por ser professor de educação física, formou-se em Marketing e regressou às Caldas da Rainha quando a filha nasceu. Já na sua terra natal, decidiu tirar o curso de Design de Ambientes na Escola Superior de Artes e Design de Caldas da Rainha (ESAD - CR). E é no curso que os alunos são desafiados a fazer uma proposta para o rés-do-chão do edifício da moagem Ceres (entretanto desativado). Nicola junta-se a dois colegas e é aí que nasce a semente para o que viria a ser o Silos - Contentor Criativo.

"A nossa sugestão foi fazer o que chamámos na altura Pop Up Creative Hub. Partimos de uma necessidade que identificámos no território e criámos um conceito". O projeto nasce no mesmo ano do Lx Factory (este, em Lisboa, mais centrado no imobiliário e no turismo). "O nosso propósito eram unidades de criação, cujo objetivo era valorizar o público que cá está e os espaços orientados para a criação".

Silos - Contentor Criativo
Silos - Contentor Criativo créditos: MAGG

Da teoria, passaram à prática. Nicola entrou no edifício da Ceres, que estava desativado, falou com a responsável, esperou uma proposta e chegou-se a um valor mensal para cada um dos ocupantes do ateliers. O Silos começou no rés-do-chão, depois expandiu-se para o primeiro andar, onde funcionava ainda em open space. "No segundo piso já fizemos os estúdios fechados, que rapidamente foram alugados", relembra.

Em dezembro de 2019, decidiram investir nos espaços individuais, que vão até ao quarto piso. A pandemia veio aumentar a procura pelos ateliers e, neste momento, há até lista de espera. "O que nos faz olhar para o futuro de um modo mais risonho e perspetivar ações concretas: melhorarmos a qualidade da nossa oferta para conseguirmos fixar o público que temos agora", explica Nicola.

Com esta procura a superar a oferta cumpriu-se, nas palavras de Nicola, o propósito do projeto: "Fixar capital intelectual e criativo nas Caldas da Rainha". "Assim nasceu a Vicara, uma plataforma de venda comercial, que comissaria alguns dos mais interessantes de design de produto de cerâmica e vidro a nível nacional, e que uma boa parte deles se não está aqui, passou pelos Silos, e está na cidade. E isso reflete-se no ambiente, no parque nas montras, onde o produto deles já está à vista, em alguns projetos de música, como o Grémio Caldense". No rés-do-chão há uma sala multiusos e galeria.

A MAGG visitou a cidade a convite do município das Caldas da Rainha. As fotos instantâneas foram captadas com a Instax Mini 40