Depois de conhecer os ingredientes desta adaptação d'"O Pai Tirano", dizer "nemmelodigas" e pedir um "copinho de vinho" é a única opção possível. Com realização de João Gomes e argumento de Patrícia Müller e Miguel Viterbo, vem aí uma nova versão deste clássico cinematográfico de 1941, que foge a passos largos da ideia de que é 'só' mais do mesmo. Não é.
Estreia-se a 21 de julho nos cinemas portugueses e nasce da vontade de pegar "em gente talentosa" e "fazer um filme português". Segundo João Gomes, "não há Vascos Santanas e Ribeirinhos [Francisco Ribeiro], mas há outras pessoas muito talentosas e seria um desperdício não aproveitar um guião icónico do cinema português e não voltar a filmá-lo com outros meios e outras pessoas".
Mas uma coisa é certa: "'O Pai Tirano' original é obviamente intocável, por todas as razões e mais algumas. O génio do Vasco Santana e do Ribeirinho é irrepetível", diz.
Desta vez, Francisco Ribeiro, Leonor Maia e Arthur Duarte cedem o lugar a Miguel Raposo (Chico), Jessica Athayde (Tatão) e Diogo Amaral (Artur), que são os vértices do trio romântico que move esta história — e que, às tantas, vira quarteto. Com Carolina Loureiro (Maria da Graça ou Gracinha, como é mais conhecida) na equação e muita ilusão e sofrimento à mistura. "Há espaço para a comédia, mas também tem de haver espaço para o drama", acaba por ser o mote do realizador desta produção.
A história? É (mais ou menos) a mesma
Gracinha rende-se aos encantos de Chico, mas este empregado de uma sapataria nos antigos Armazéns Grandella, no coração de Lisboa, perde-se de amores por Tatão, que trabalha na perfumaria lá do sítio. Cria expectativas e tenta a sua sorte, só que a jovem não se restringe a dizer o que pensa e não tem qualquer problema em gritar aos sete ventos: 1) que não percebe esta coisa de as mulheres usarem meias; e 2) que gosta de dinheiro e procura um homem rico.
Perfil que, no caso, descreve Artur, não terá qualquer problema em enfrentar o "fantasma do Hamlet" em prol de um novo amor, segundo disse Diogo Amaral à "Magazine.HD". Isto porque, à semelhança do que acontece na história original, também nesta adaptação moderna, que não deixa de ser um filme de época, a trama gira em torno de uma peça de teatro. E Chico, inimigo de Artur nesta luta pelo coração de Tatão, faz parte do elenco.
Tatão quer um homem rico, mas Chico só é conde no papel
"A circunstância continua a ser a mesma do original: têm de encenar uma peça, estão atrasados, aquilo não está bem preparado e o Francisco [conhecido por Chico, interpertado por Miguel Raposo] em vez de estar focado na peça, anda preocupado com a Tatão [Jessica Athayde]. Se ela gosta dele ou se só gosta pelo dinheiro e depois tem de inventar uma farsa para fingir que é rico e que é conde", começa por explicar João Gomes à MAGG.
Esta "farsa" é alicerçada no guião da tal peça para os Grandelinhas de que Chico faz parte. O que, à partida, não teria qualquer problema, já que Tatão é uma "menina cinéfila" que odeia teatro. Tudo indicava que nunca assistiria à peça e, consequentemente, nunca teria como descobrir que Chico, na verdade, só é conde no papel. Mas, alerta, spoiler: a menina cinéfila vai ao teatro — e a trama complica-se.
"Quando a vê lá, [Chico] entra em pânico e diz: 'ela vai reconhecer-me' e 'vai ver que esta peça é a mesma que fizemos para a enganar no Palacete'. E José Raposo [enquanto Santana, dono da loja de sapatos nos antigos Armazéns Grandella e patrão de Chico] diz 'não te preocupes, porque eu tenho uma solução' e veste-o de mulher", começa por explicar João Gomes.
"Aquilo até parece estar a correr bem, as pessoas até parecem estar a acreditar, só que a dada altura a Gracinha percebe o que está a acontecer, entra pelo palco a dentro e expõe todo o circo", acrescenta."É aí que culmina tudo. É aí que aquilo vem tudo por ali abaixo e as coisas ficam um bocadinho mais tensas e reais".
Há mal-entendidos, planos que saem furados e todo um peso sociopolítico à mistura, mas esta nova versão tem, segundo Patrícia Müller e Miguel Viterbo, mais de "comédia romântica" do que de "comédia de costumes". A culpa? É não só da química entre Miguel Raposo e Jessica Athayde como, segundo os argumentistas e realizador, da necessidade de dar um toque mais pessoal a algumas personagens.
Desta vez? Tatão é feminista e Ciriloff vira vidente
Nesta versão, Tatão, interpretada por Jessica Athayde, distancia-se da personagem originalmente interpretada por Leonor Maia. Desta vez, esta "menina cinéfila" que odeia teatro é uma feminista "antes do tempo", que tanto se apoquenta com a necessidade de as mulheres usarem meias (cujo problema, na verdade, vai muito além de pés quentes e sapatos) como aborda questões como a guerra e o papel da mulher na sociedade. "É essa talvez a maior diferença: a história muda, porque a perspetiva muda", começa por explicar Miguel Viterbo.
"Há referências à guerra. Há referências às mulheres. Porque as mulheres eram tratadas de maneira completamente diferente. Eram muito submissas, eram muito pouco independentes, não podiam votar", acrescenta Patrícia Müller. "Porque é que nós [mulheres] não podemos ir para a guerra?" ou "porque é que temos de andar de meias?" são algumas das questões que Tatão traz à tona. Não fosse, neste novo universo de "O Pai Tirano", "a voz das mulheres", como frisa a argumentista.
Já o refugiado russo Ciriloff (Eliezer Kamenesky, na versão original) "agora é vidente". "É como se fosse uma personagem do presente que tivesse recuado", diz, garantindo que estes se tratam apenas de escassos exemplos de que este novo guião é "totalmente diferente".
"A base é a mesma, a história é a mesma, mas os diálogos são diferentes. Há algumas cenas que a Patrícia Müller e o Miguel Viterbo, os autores do guião, mantiveram relativamente parecidas com o original, em jeito de homenagem àquelas cenas que acho que as pessoas iriam querer ver ou de que iriam sentir falta", reforça João Gomes.
Os "copinhos de vinho" e a famosa expressão "nemmelodigas" da personagem Teresa, outrora interpretada por Teresa Gomes e, agora, por Rita Blanco, foram dois dos pontos que permaneceram intactos, diz Patrícia Müller.
Prepare-se para um novo "O Pai Tirano": a cores, e não a preto e branco
É um filme de época, sim, mas desta vez há cor na equação. "O Pai Tirano" de 1941 é a preto e branco, mas em pleno 2022 chega aos cinemas e ao streaming nacional (leu bem, já lá vamos) a cores. Não por falta de vontade dos argumentistas e do realizador, mas porque não só era um risco, como era mais um ponto em comum com o original.
"Eu pensei muito em fazer uma versão a preto e branco", mas "seria um risco muito grande", começa por explicar João Gomes."É um statement muito grande filmar a preto e branco. Pensou-se muito na conversão pós-produção e fazer uma série de exibições em cinemas particulares a preto e branco", mas "achámos que perdíamos no sentido em que perdíamos muito daquilo que foi feito ao nível da direção de arte neste filme".
"A ideia era ter um glamour daquela altura, mas que fosse mais percetível através da cor e das texturas que usámos. Portanto, aí sentimos que ficaríamos um bocadinho a perder. E, lá está, o original já é a preto e branco e é a obra que é. Aí seria mais arriscado [no sentido de] dar a ideia de que estamos a colar ao original. Quando o objetivo não seria esse, de todo", acrescenta.
A história é a mesma, mas a essência é diferente
"Não é [uma réplica], de todo. Para quem tiver visto 'O Pai Tirano', de 41, e vir este agora são duas coisas diferentes", garante Miguel Viterbo. "São dois filmes totalmente diferentes. Não é um ramake, é mesmo uma adaptação", frisa.
Com a nostalgia como dado adquirido, na adaptação d '"O Pai Tirano" prepare-se para mergulhar numa Lisboa dos anos 40 ligeiramente diferente da real e daquela com que se depara no filme original. Este novo universo, os personagens vivem numa Lisboa diferente — e é também aí que está a magia.
"Acho que continua a haver qualquer coisa de especial em filmar histórias de pessoas que querem fugir (e fogem) à sua circunstância. Neste caso, a fuga é para o teatro. É para o palco. Para um sítio onde são importantes e o que dizem é ouvido. Continuo a achar que há algo de muito romântico nisso. Mas serve apenas de fundo para uma história divertida, com personagens que reconhecemos e com vidas que não são assim tão diferentes das que temos hoje", explica o realizador.
"Usámos imagens de arquivo, enfim, para fazer uma alusão à época, mas, de facto, o universo que criámos daquela Lisboa dos anos 40 não quis ser nunca uma reprodução minimamente fiel do que era. Ou seja, este universo em que este filme acontece é meio onírico", diz.
"As roupas não eram bem aquelas, os penteados não eram bem aqueles, os telefones também não eram bem assim. [É] meio exagero, meio fantasia. Lá está, não valia a pena ter essa preocupação com o real, porque, para isso já existe o filme original, que é um documento histórico fantástico. Portanto, tomámos a liberdade de criar estes anos 40 diferentes do que eram na realidade. São mais os anos 40 que seria na cabeça daquelas personagens, que fogem um bocadinho àquela vida cinzenta e sem horizontes que têm", completa.
"Existe aqui um lado social, brinca-se com estas disparidades", acrescenta Miguel Raposo (Chico), que neste novo "O Pai Tirano" contracena diretamente com o pai, José Raposo, que veste a pele de Mestre Santana, originalmente interpretado por Vasco Santana.
"Foi uma maravilha e tive imensas cenas com o meu pai", diz. "A coisa acontece de uma maneira muito natural. Nós falamos da cena como falamos do bacalhau com grão que vamos comer a seguir. Não existe um peso extra."
Há a versão cinematográfica e....a série em streaming
À MAGG, João Gomes conta que esta adaptação de "O Pai Tirano" não se vai limitar apenas ao formato filme e vai mesmo catapultar-se para o mundo do streaming, sob forma de uma minissérie de três episódios.
E. não, não será 'apenas' o filme dividido em três segmentos distintos. Esta série de "O Pai Tirano" conta com cenas extra, que foram excluídas da versão filme e surge como um bombom para quem quiser conhecer ainda melhor a história desta grupeta que dá vida à capital. Estreia-se na OPTO, plataforma de streaming da SIC, até ao final deste ano e na HBO Max no início de 2023.
"A série tem cenas que o filme não tem. São três episódios, entre os 45 e 50 minutos, penso eu. Se o filme tivesse tudo aquilo que filmámos, seria demasiado longo. Há certas cenas e certas partes que não estão no filme, mas vão estar na série", explica o realizador.
"Quem não viu o original e veja este filme, espero que goste e espero que tenha vontade de ver o original, porque é uma obra obrigatória. Mas, sim, é um filme perfeitamente acessível para quem não viu o original", completa.
João Gomes descreve esta adaptação como uma "carta de amor" ao filme original. Enquanto Patrícia Muller e Miguel Viterbo garantem que se trata de uma produção que aquece o coração, não fosse também este um filme com "bom coração". Estreia-se nos cinemas a 21 de julho e, mais tarde, em streaming.