Tocam tambores junto ao Tejo. Uma voz feminina sobrepõe-se ao vento. Há sal no chão. Corpos erguem-se lentamente do cimento. Na ponte ferroviária sobre o Jamor, um pescador tenta perceber o que se passa mais abaixo, junto ao rio. “Será uma cerimónia esquisita, essas que estão na moda?”, pergunta em voz alta.
Não, não se trata de um qualquer ritual mais ou menos esotérico. É um ensaio de “No Fim do Rio — Uma Travessia Coreográfica”, a mais recente produção do projeto MADURA que é apresentado nesta sexta-feira, dia 29, às 20h, no Pontão da Cruz Quebrada, em Oeiras, com entrada livre.
E não, não são atores aqueles que se movimentam na faixa de betão que se adentra na água nesta tarde quente de junho. O grupo de dez mulheres e um homem que integram o MADURA e aqui fazem este “exercício de contemplação/aproximação ao objeto do desejo” são quase todos reformados (ex-engenheiros, ex-administrativos, ex-professores, por exemplo). E, com uma exceção, a de Petula Mushkova, com 38 anos, têm todos mais do que 55 anos.
O critério da idade só durou algum tempo, o do início do projeto nascido em 2017. “Começou por ser para pessoas acima dos 55 anos, daí o nome MADURA. Depois decidimos abrir a outras idades, achámos que a mistura intergeracional faz todo o sentido”, explica Isabel Barbosa da Costa que, juntamente com Margarida Pinto Coelho, assina a conceção, dinamização e direção do grupo.
A ideia nasceu de um desafio colocado às duas mulheres pela direcção da Companhia de Actores do Teatro Municipal Amélia Rey Colaço (Algés), depois de ter acompanhado as Romarias de Histórias que as duas criaram em Brotas, no Alentejo. Convidou-as a pensarem num projeto para esta faixa etária sediado naquele Teatro.
Isabel Barbosa da Costa, educadora de infância, e Margarida Pinto Coelho, professora de dança, que se tinham conhecido no Serviço Educativo e Cultural da Fundação D. Luis I, em Cascais, onde tinham trabalhado a ligação entre a arte e a educação, resolveram aceitar o repto.
Criaram o MADURA Intervenção Cultural e Artística na Comunidade, projeto que não é de fácil definição, tal como aquilo que fazem não se encerra num só rótulo. Não é um grupo de teatro embora tenha muita expressão dramática, não é um grupo de dança, embora dance muito, não é um grupo de reflexão embora discuta autores, obras e pensamentos, não é um grupo de leitura embora estude textos.
O melhor é pedir ajuda à descrição oficial: “É um projeto de ação-formação em continuidade destinado a homens e mulheres maduros interessados em descobrir, desenvolver e explorar capacidades intrínsecas ao nível da criatividade e da estética do olhar. Usa como estratégia, na sua relação com o universo pessoal, o recurso às linguagens da dança, do teatro, do cinema, da plástica, da literatura, da música… enquanto formas de fruição, reflexão e construção”.
Ou seja, continua Isabel Barbosa da Costa, “é um projeto que está sempre em ações de formação e de intervenção cultural e artística, que promove o contacto com artistas mas também com profissionais ligados às áreas da psiquiatria e da filosofia, por exemplo”. O que se pretende, acrescenta Margarida Pinto Coelho, “é que seja construtor de experiências estéticas, que permita desenvolver um olhar estético”.
O grupo, que tem produção da Companhia de Actores, “trabalha” todas as terças-feiras, entre as 14h30 e as 17h30 no Teatro Amélia Rey Colaço, em Algés. São tardes interessantíssimas, diz à MAGG Luísa Manaças, uma “madura”, como se chamam entre si.“Tanto podem ser sessões teóricas com um formador de voz e dicção como exercícios de movimento com o corpo — nunca sei o que vai acontecer e o que me interessa é que o que quer que seja tem muita qualidade e multisciplinaridade. Para mim são tardes de ouro”, congratula-se, aos 66 anos, a ex-professora de Francês e Português.
Essas sessões, que envolvem sempre um processo criativo, culminam em trabalhos que são apresentados ao público e que tanto podem ser performances como peças de teatro, por exemplo. Margarida Pinto Coelho prefere chamar-lhe outra coisa: “Objetos artísticos de intervenção na comunidade, sobretudo em espaços não convencionais e do património do concelho”.
Assim se passa com a performance do dia 29. Sem texto, “No Fim do Rio”, resulta do “percurso vivenciado durante os meses de maio e junho da 3ª metáfora, ‘Asas’, da programação anual do projeto”, refere Margarida Pinto Coelho. (Da abordagem das outras duas metáforas, ‘Coragem’ e ‘Vozes’, nasceram “os objetos artísticos”, “A Lama dos Bolsos” e “Hermengard, uma apropriação indecente de Cartas a Hermengardo de Clarice Lispector”. Já em 2017 o grupo apresentara, antes das metáforas, “Fragmência” e o “Jantar”).
O sal pica nos pés
“No Fim do Rio” estava destinado ao Farol do Bugio. Era aí que o MADURA queria apresentar o trabalho que partiu de “Heróis do Mar”, obra do artista plástico João Pedro Vale exposta no CAMB - Centro de Arte Manuel de Brito, e da reflexão sobre o pensamento de Sartre “Somos condenados a ser livres”. Sem autorização da Marinha para o fazer, Isabel e Margarida transformaram o objeto de desejo num objeto de contemplação, naquilo a que chamam “Travessia Coreográfica” no pontão da Cruz Quebrada. Sempre com os olhos postos lá ao longe, no farol que fica onde o Tejo se dilui no Atlântico.
E é por isso que vemos António Maria, um engenheiro reformado de 80 anos, o único homem do MADURA, a olhar para o Bugio, ou Helena Abreu, figura alta de cabelo grisalho, virada na mesma direção, a sonhar com uma visita à capela do farol.
Aos 73 anos, a antiga conselheira de orientação vocacional não poderia estar mais feliz com o projeto. “É muito entusiasmante”, garante à MAGG. “Estamos todos tão entusiasmados que aguentamos tudo e mais alguma coisa. Fazemos coisas ao ar livre, fizemos, por exemplo o “Hermengard” numa casa húmida, onde chovia e tínhamos de pôr bacias para apanhar a água que caía do teto e nós tossíamos, mas não nos importávamos”.
Agora, no pontão, há quem tenha pela primeira vez “a experiência surreal”, como diz uma “madura”, de andar descalça. Não é fácil, quando se tem de pisar sal — “Isto pica”, observa uma outra. Mas nem Isabel nem Margarida desistem da ideia do sal "como elemento de aproximação".
Luísa Manaças quer ter a certeza de que os seus gestos são os adequados: “Acho que estou muito furiosa a mexer no sal com os pés, não deve ser assim, pois não?”, perguntara horas antes de chegarem à praia da Cruz Quebrada, ainda no ensaio na sala do Teatro Amélia Rey Colaço. "Não, o movimento é afetivo, mas não lamechas", corrigira Margarida.
À MAGG Luísa Manaças conta como no MADURA a ajudaram a depurar os movimentos. “Sempre fiz teatro na escola mas tinha um estilo muito dramático, muito exagerado, muito fiteiro. Aqui a elevação estética é grande e não há contemplações para o que eu queria fazer; têm-me ajudado a afinar os meus gestos. Mas, se por um lado o projeto me castra, por outro enriquece-me e forma-me”. A antiga professora reconhece que aqui vai tendo “uma aproximação à arte e aos conhecimentos por onde dantes perpassava sozinha, autodidata”.
Uma coisa é certa, assegura Helena Abreu: “O que estamos a fazer é bastante novo. Há uma sensibilidade poética que joga com o corpo de cada uma, com os jeitos de cada uma, numa frase coreográfica”.
Sentada ao fundo do pontão, Ilda Corte-Real está absorta na sua contemplação do Bugio, indiferente ao canto de Marta Plantier ou ao ritmo dos tambores de Gueladjo Sané (que desta vez, tal como outros quatro jovens, colaboram com o projeto).
Baixinha, com 73 anos, sorri ao dizer à MAGG como a sua vida se tornou menos solitária desde que descobriu o MADURA. Viúva, a ex-funcionária pública de um serviço de saúde admite ser mais livre: “Sou um bocado tímida e agora tenho mais à-vontade, e sentia-me um bocadinho atrofiada com o reumatismo”. Movimenta-se em palco com mil cuidados, tal como Clara Rocha, outra “madura”, tem alguma dificuldade em, por vezes, se equilibrar, situação de que a ex-professora de Geologia tira partido para a cena em que todos desestabilizam os corpos.
“Nem sempre consigo fazer bem os gestos, doem-me os pés, por exemplo”, lamenta Ilda. Houve um tempo em que achava que não podia usar as mãos, afetadas pela doença. Achava-as “deficientes”. Isabel insistou com ela: “Há um valor estético do movimento, o movimento das suas mãos é belo”. Ilda acreditou e aqui está ela, à frente do grupo, a estender os braços num gesto elegante, dando razão a Margarida quando esta assegura: “Este projeto é transformador”.