Há quatro anos que Maria Filomena Mónica luta contra um cancro raro. A doença e a busca pela cura — três anos de quimioterapia e 18 comprimidos por dia — algumas marcas teriam de deixar.

O corpo pode pois estar mais frágil mas, como gosta de dizer, continua “sem amarras” no pensamento e no discurso. Sentada na sala da sua casa pombalina, os olhos azuis brilham no prazer de trocar argumentos enquanto o sorriso é rápido nas memórias de menina rebelde.

E entre o “sim, sou rica” e o “não, não sou rica” a socióloga, conhecida por dizer exatamente aquilo que pensa, conversa durante duas horas com a luz da tarde lisboeta nas costas, vinda do jardim que tanto preza. Diz frases como:

  • “Um miúdo, mesmo pobre, se for inteligente e bastante trabalhador, hoje pode ascender — tem é que trabalhar o dobro dos ricos e ser duplamente inteligente”.
  • “Se eu fosse feia, provavelmente não teria sido tão bem aceite”.
  • “Há pessoas na minha família que me criticam por eu não meter mais cunhas para os meus filhos”.
  • “Sou muito contra os psicanalistas porque desculpabilizam as pessoas".
  • “A cultura católica e o confessionário desempenham um papel fundamental em lavar coisas que não são necessariamente boas".
  • "Quando o médico me disse 'tem um cancro', eu respondi-lhe: 'Ah, obrigada doutor'".
  • “Porque é que os homens dão uma importância tão grande à pilinha?”

Enfiada numa sweatshirt com capuz onde a imagem do elétrico 28 desvia a atenção do seu rosto sereno, a escritora fala sobre o País, os empresários, as mulheres, as cunhas, o marido (António Barreto), a doença, o dinheiro, as séries — e até o sexo —, a propósito do seu último livro que nesta quinta-feira, 7 de junho, é apresentado ao público. “Os Ricos”, da editora Esfera dos Livros, surge depois de, em 2016, ter publicado “Os Pobres”. Não se julgue, porém, que Maria Filomena Mónica replica estruturas ou modos de análise e raciocínio.

Nestas 294 páginas, a académica olha para a sociedade portuguesa a partir do século XVIII traçando pequenas biografias muito interessantes de alguns empresários portugueses, começando com a história do duque de Palmela e terminando com a de Belmiro de Azevedo.

Diz que por ser “híbrida” — “pertencia e não pertencia ao grupo" — pôde “olhar os ricos por dentro e por fora, sem ressentimentos nem ódios”.

Sem forças para ir para a sua adorada Biblioteca Nacional, entre doses semanais de quimioterapia, Maria Filomena Mónica conseguiu investigar, apesar da escassez de fontes —“os ricos não guardam memórias, são raríssimos os que preservam cartas e papéis” — e escrever. Conta que no início resistira à ideia de fazer novo livro. “Lera num reputado jornal americano que a esperança de vida para quem sofria de um mieloma múltiplo — o meu cancro — era de três anos. Ora, se o meu prazo de validade terminasse no verão de 2017, não valia a pena começar a escrever fosse o que fosse”. Mas cedo percebeu que essa seria a melhor maneira de não deprimir.

Licenciada em Filosofia e doutorada em Sociologia por Oxford — “Escolhi Sociologia por um motivo estúpido, mas que é muito do meu carácter: o que me é proibido apetece-me e eu faço-o. Ou seja, o Salazar não deixava haver Sociologia em Portugal? Então eu ia estudar Sociologia para Londres" — este livro mais parece o de uma historiadora. “Quando acabei o doutoramento, em 1978, era marxista, percebi que as estruturas não determinavam tudo e que me apetecia era escrever sobre pessoas. Acabei nas biografias”.

Esteve a olhar para os ricos portugueses em dois séculos, do XVIII ao XX. Mas curiosamente excluiu os banqueiros, o que faz com que a família Espírito Santo não entre neste livro.
A banca é um mundo que eu não consegui entender, faz parte da minha deficiência cultural. Decidi não a incluir para não dizer disparates.

Não foi por ter sido amiga de alguns deles e a família estar envolvida num escândalo de corrupção?
Eu não tinha medo nenhum de escrever sobre os Espírito Santo, nenhum! Fui na infância amiga de alguns (não do Ricardo Salgado que é mais novo do que eu), mas mesmo assim eu teria dito o que pensava, não sou pessoa para retirar da minha mente qualquer coisa porque pode ofender alguém. Não. Se eu for honesta, sou capaz de defender o meu ponto de vista. No caso do Ricardo Salgado penso mesmo que ele foi uma má pessoa e que aldrabou muita gente e não tinha pejo nenhum em dizê-lo.

Aliás, está a dizê-lo agora.
Estou e até disse no “Correio da Manhã” que ele devia ir preso. E estou-me completamente nas tintas para a reação dele.

Os ricos de hoje são diferentes dos daquele tempo em que passava férias em Cascais com os filhos deles e frequentava o clube muito restrito da Parada?
Este clube era diferente do Tauromáquico e do Turf, porque aqui eram as famílias que se reuniam. Muitas delas nem eram muito ricas, mas pertenciam à antiga aristocracia da corte do rei. Eram famílias muito endogâmicas, só se casavam entre si. O clube era muito restritivo porque se abrissem muito podia ser que os meninos se apaixonassem por meninas que não eram adequadas.

Festa do Clube da Parada, em 1959. Maria Filomena Mónica é a quarta em baixo, a contar da direita.

Como é que fazia parte do clube?
Ia com uma amiga minha cuja família era sócia, mas nunca me senti ostracizada. Se eu fosse feia, provavelmente não teria sido tão bem aceite, porque como os meninos gostavam muito de mim se calhar diziam aos pais para não levantarem problemas por os meus pais não serem sócios.

Diz no livro que a sua família era da classe média lisboeta. Mais média alta, certo?
O meu avô era um lavrador relativamente abastado da zona de Tomar, o meu pai herdou o negócio e nunca gostou de ser negociante e acabou por se arruinar, embora tenha dado um grande salto na empresa quando começou a exportar madeiras para a Europa. Vivíamos bem, tínhamos carro, estudávamos em colégios caros, e não havia nenhuma diferença no estilo de vida que eu levava relativamente aos outros que eram aristocratas.

E as diferenças desses ricos em relação aos de hoje?
Naquela altura as famílias eram muito recatadas, não ostentavam nenhuma riqueza, e isso mudou, o que me admira, com o 25 de Abril.

Escreveu, aliás, que não se lembrava de nenhum adolescente a quem tivesse sido dado um carro aos 18 anos, nesses tempos.
Nada, eles não pareciam ricos. Não tinham vestidos espampanantes nem iam a costureiras espantosas, nem sequer viajavam muito. Na verdade, alguns destes grandes aristocratas não tinham dinheiro, alguns nem eram particularmente ricos, tinham era património, quintas em Sintra do século XVI ou em outros locais do País, mas não tinham muito dinheiro sonante.

Não querem que os filhos casem com Vanessas

A revolução levou a que o conceito de rico mudasse ou a que os comportamentos dos ricos mudasse?
Acho que mudaram os comportamentos num certo sentido. Este recato inicial, que eles já tinham provavelmente há muito tempo, foi muito reforçado por Salazar, que não queria ostentações, odiava festas.

No livro diz que Salazar fazia a apologia do pobre. E cita uma frase muito interessante: “Quero este país pobre, mas independente: não o quero colonizado por capital americano”.
É uma frase extraordinária. Eu quando a li também fiquei admiradíssima.

E a razão pela qual proíbe a entrada da Coca-Cola também é muito reveladora. Transcreve parte de uma carta ao responsável pela multinacional na Europa que vale a pena reproduzir: “Portugal é um país conservador, paternalista e — Deus seja louvado —‘atrasado’, termo que eu considero mais lisonjeiro do que pejorativo. O senhor arrisca-se a introduzir em Portugal aquilo que eu detesto acima de tudo, ou seja, o modernismo e a famosa ‘efficiency’. Estremeço perante a ideia dos vossos camiões a percorrer, a toda a velocidade, as ruas das nossas velhas cidades, acelerando, à medida que passam, o ritmo dos nossos hábitos seculares”.
É ótima, não é? Com a Coca-Cola depois viria o resto, a pílula, a minissaia, sabe-se lá o que mais… (risos)

O que muda na atitude dos ricos, para além da abertura aos costumes (muitos começam a divorciar-se, como conta), é então o abandono do recato?
Essa gente, curiosamente, depois do 25 de Abril, começou a mostrar-se ao mundo na imprensa cor-de-rosa, na “Olá”, por exemplo. Eu fiquei espantada, porque dantes nunca abriam as portas das suas casas a revistas. Passaram a permitir que as revistas e o povo penetrassem em alguma intimidade deles e a ostentar até o dinheiro. Embora seja uma atitude mais dos novos ricos do que dos velhos ricos.

Uma menina que diga 'vermelho' em vez de 'encarnado' já não serve”.

A distinção continua a ser muito forte?
A divisão é muito grande. Eu sei de um caso de uma família, que não era particularmente rica, mas que pertencia a uma aristocracia antiga, em que um deles ia casar com a filha de um dos maiores banqueiros portugueses, que vinha da pequena burguesia do Norte. E a família, mesmo não tendo dinheiro, não queria que o rapaz casasse com aquela menina porque era uma nova rica.

Maria Flomena Mónica como debutante no baile  em casa de Guida Lopo de Carvalho, em 1961

Esses preconceitos não estão mais diluídos?
Não totalmente. Ainda no outro dia tive uma conversa com uma destas pessoas e ela dizia:
— “Ah, o meu filho vai casar com uma menina e eu não gosto nada”.
— “Então mas ela não é porreira?”
— “Porreira é, mas chama-se Va-nes-sa, estás a ver o género? Va-nes-sa! Não quero que o meu filho se case com uma menina chamada Vanessa!”
Por isso há ainda aqui um resto de snobismo mesmo em relação aos novos ricos. Não aceitam facilmente casamentos com meninas que se chamem Vanessas, Sónias ou Tânias. É uma casta antiga que se comporta de determinada maneira. Uma das distinções é o vocabulário. Uma menina que diga “vermelho” em vez de “encarnado” já não serve. Eu agora de vez em quando digo “vermelho”. Lembro-me que há seis ou sete anos, estava a almoçar com um amigo rico e disse:
— “Está ali uma coisa vermelha”.
— “Vermelha? Mas tu agora dizes vermelha?”
E se eu digo “era um gajo porreiro”, ouço como resposta: “Mas tu dizes gajo?”. O vocabulário era muito importante para a distinção de classe.

As pessoas dos partidos podem é tornar-se ricos através do poder que têm e então também aparecem nas revistas cor-de-rosa. Devem ser atrasados mentais”.

Refere o relatório Global Wealth de 2017 que fala em 68.000 milionários em Portugal, pessoas com mais de 860 mil euros de rendimento anual mas também um estudo das Finanças portuguesas que aponta 758, pessoas com mais de 750 mil euros por ano. O que é para si ser-se rico? Afere-se apenas pelo dinheiro?
Não, é também a questão do status, do prestígio. De resto a definição é arbitrária como digo no livro “Os Pobres”, depende de onde estabelecemos a linha a partir da qual se é rico. Inclui o dinheiro, claro, mas há a parte do prestígio, das famílias antigas e também do poder.

Os ricos têm necessariamente poder mas as pessoas dos partidos têm poder e não são necessariamente ricos. Podem é tornar-se ricos através do poder que têm e então também aparecem nas revistas cor-de-rosa.

Devem ser atrasados mentais para o fazer, é a única explicação que eu tenho para aquilo: eram paupérrimos e de repente têm quintas fabulosas? Como é que enriqueceram de um dia para o outro? Se eu fosse filha de um sapateiro e depois tivesse uma quinta com não sei quantos hectares a perder de vista, não mostrava, mas eles mostram. Evidentemente que se põe a questão do enriquecimento ilícito…

Da corrupção.
E são poderosos.

Temos muitos?
Mais do que um é demais, para mim. Entristece-me que Portugal seja um país tão corrupto. E que seja tão suscetível à cunha.

Há pessoas na minha família que me criticam por eu não meter mais cunhas para os meus filhos, por exemplo."

Fala disso no livro. “Em Portugal, não funciona o princípio marxista de a cada um segundo as suas necessidades, nem o meritocrático, o de a cada um segundo a sua competência, mas um sistema infinitamente mais simples, o de a cada um segundo as amizades políticas, as ligações familiares ou as crenças religiosas. A ‘cunha’ reina: era assim no passado e continua a ser assim no presente”.
E a cunha é aceite por toda a gente. Por exemplo, quando eu fiz obras nesta casa, o mestre de obras trouxe-me um cartão de uma arquiteta da câmara com uma morada na rua de S. Bento, um antiquário, porque a senhora arquiteta para dar licença para eu acabar as obras queria uma espingarda antiga.

Isso é mais do que cunha.
Mas para eles é tão natural! O mestre de obras perguntava-me: “Mas porque é que não dá? Assim termina-se este inferno de estar há três anos à espera da licença!“ A cunha está entranhada na sociedade e na cultura. Aliás, há pessoas na minha família que me criticam por eu não meter mais cunhas para os meus filhos, por exemplo.

O traçado da ponte 25 de Abril foi desviado por uma cunha

Esta cultura vem do tempo do Salazar?
Muitos pensam que o Salazar era impoluto e avesso às cunhas, o que não é verdade. A sociedade era é diferente. 80% das pessoas vivia no campo e estava a esgravatar na terra para tirar duas batatas e não morrer de fome. Portanto a cunha aí estava reduzida a uma clique muito pequenina. Havia menos cunhas porque havia muitos portugueses a morrer de fome e não tinham acesso ao poder político. Mas existiam.

Em tempos escrevi um livro sobre o tabaco e fui entrevistar o ex-ministro de Salazar, Pinto Barbosa. E ele contou-me que o Salazar no início era contra a ponte mas depois acedeu. E esta tinha um traçado determinado em Alcântara, que passava num jardim de uma família antiga, a Sabugosa, que meteu uma cunha ao Salazar para desviar o traçado da ponte, o que não é fácil, mas ele aceitou. E foi assim que a linha está ali um bocadinho desviada em Alcântara para não prejudicar o jardim dessa família.

A cultura católica e o confessionário desempenham um papel fundamental em lavar coisas que não são necessariamente boas.”

Mas nós como povo somos mais predispostos à cunha do que os nórdicos, por exemplo?
Somos. Penso que os latinos têm esta cultura da cunha.

Porquê?
A resposta que normalmente é dada, e que é válida, embora não explique tudo, é o tipo de religião que nós temos. Ou seja, os nórdicos não têm a confissão. Se fazem qualquer coisa de mau e se são crentes, irão para o inferno, o que os faz ser mais puritanos, mas em geral são incorruptíveis. Aqui, como temos o confessionário, eu vou lá e digo: “Ai eu corrompi o fiscal da câmara”. E o padre diz-me: “'Tá bem filha, não voltes a fazê-lo. Arrependeste?” E eu: “Sim, arrependo”. Ele dá-me a absolvição e eu venho-me embora toda contente. A cultura católica e o confessionário desempenham um papel fundamental em lavar coisas que não são necessariamente boas.

Por outro lado somos muito tribais, a família era alargada, protegíamos o nosso clã, e isso também leva à cunha. Os nórdicos, para o bem e para o mal, passaram desse conceito de família e valorizam muito a transparência. Na Suécia as contas bancárias podem ser vistas por qualquer cidadão, estão na internet, aqui isso era impensável.

O pertencer a uma tribo faz com que não tomemos como indivíduos decisões que prejudiquem a tribo. Dizem-nos: “Àquele aluno não dês 11 mas 18 porque é primo do primo do primo”.

Essa é uma frase um bocado provocatória, provavelmente a minha família vai ficar furiosa mas eu estou-me nas tintas, ficam sempre furiosos…”

Maria Filomena Mónica com o cunhado, o pintor Luís Pinto Coelho, irmão do primeiro marido, num jantar no Hotel Eduardo VII, em 1961

É rica? Diz no livro que como ganha cinco vezes o salário mínimo se pode considerar rica…
Essa é uma frase um bocado provocatória, provavelmente a minha família vai ficar furiosa mas eu estou-me nas tintas, ficam sempre furiosos…

Em relação ao salário mínimo, eu sou rica. Mas não sou rica. Vivo completamente do trabalho, nunca herdei absolutamente nada (aliás, sou contra a lei portuguesa das heranças, acho que os pais devem ter total liberdade de testar e se quiserem deixar o dinheiro todo ao gato ou ao cão é com eles). E até penso que receber uma herança faz mal às pessoas, tira-lhes o poder de combater e a ambição de fazer qualquer coisa na vida.

Comparando com os ricos, não sou rica, o único património que eu tenho é esta casa, que me caiu no colo sem eu querer, porque a secretária da universidade tratou dos papéis e eu comprei a prestações durante 30 anos. E já não tinha dinheiro para comprar o jardim. Se eu fosse rica, tinha comprado o jardim, que é um dos desgostos da minha vida. Foi em 2006, também foi o ano em que a minha mãe morreu e eu estava muito traumatizada porque ela morreu ao fim de 11 anos com Alzheimer. Acho que nessa altura tive uma depressão. Mas como sou muito contra os psiquiatras e psicanalistas…

Porquê?
Porque desculpabilizam as pessoas.

Como assim? Eles procuram que nós nos entendamos, não?
Mas eu entendo-me sozinha, (risos) sou capaz de ler o Freud. Claro que há doenças psiquiátricas, como a esquizofrenia ou a bipolaridade, que precisam de psiquiatras. Posso parecer maluca mas não sofro de uma doença psiquiátrica. Eu tomo 18 comprimidos por dia (e já tomei 25) e alguns são anti-depressivos ou ansiolíticos como o Valium, que eu de resto tomo há muito tempo, mas são receitados por um oncologista. Bem, na verdade a minha irritação é mais com os psicanalistas.

Ah, pensei que era com os psicólogos também…
Sim, também. Tiramos desta equação a psiquiatria, porque há doenças psiquiatras e hospitais psiquiátricos, muito necessários. Agora ir ao psicanalista dizer “eu traí a minha mulher mas sabe o meu pai fez-me não sei que mais” e o psicanalista dar-lhe os améns… A pessoa está ali a falar uma hora e a sensação que eu tenho é que é um bocado como o confessionário: as pessoas deixam de ser responsáveis pelos seus atos. Eles incutem a desculpa, e eu acho que a pessoa deve ser responsável pelos seus atos e se faz alguma coisa repetidamente mal, se é suficientemente adulta, olha ao espelho e diz “isto não se faz”.

Mas provavelmente se eu tivesse ido a um psiquiatra, não a um psicólogo, na altura da doença da minha mãe, ter-me-ia ajudado. Agora eu vejo retrospetivamente que fiz mal e o que me salvou foi ter feito um diário, com 600 páginas, que não é publicável.

Em vez de estar a contar tudo ao psicanalista saiu-me mais barato, comprei uns papéis, peguei numa caneta e comecei a redigir”

Mas pensou em publicá-lo?
Ainda pensei nisso mas tive tantos sarilhos com os meus três irmãos, e não só, por causa do “Bilhete de Identidade” [autobiografia publicada em 2006], que decidi: “Já chega de confusões, não vou publicar”. É uma coisa muito íntima que eu fiz sabendo que precisava de escrever qualquer coisa. Teve uma função catártica. Em vez de estar a contar tudo ao psicanalista saiu-me mais barato, comprei uns papéis, peguei numa caneta e comecei a redigir e depois passei tudo para o computador que é onde está. Os meus filhos e o meu marido decidirão o que fazer-lhe após a minha morte.

Maria Filomena Mónica andou 14 anos num colégio de freiras. 'Pensam que eu era muito boa aluna mas era errática. Tão depressa tirava 6 a Matemática como 18, ou 7 a Português como 17'.

Resguarda-se pouco, não é? Na sua autobiografia revela muitos aspetos pessoais que a maioria das pessoas teria pudor em contar, nestes dois livros, “Os Pobres” e “Os Ricos”, fala abertamente da sua doença…
Não tenho nada a esconder, sabe? A minha imagem não me interessa. O que me interessa é que esteja bem escrito, que fique bem feito.

Fez agora outro diário, recentemente, não foi?
Fiz o diário do primeiro ano do cancro, que também não é publicável, porque é também muito íntimo. Mas tem aspetos divertidos, porque no meio das tragédias, como uma pessoa ter um cancro — ainda por cima um cancro que eu pensava que não era muito grave, mas é gravíssimo (como está no sangue, na medula, não é operável) — passamos por momentos que nos fazem rir. Se calhar eu teria morrido se não tivesse escrito esse livro. Ou então tive sorte.

O PC não quer problemas com a Igreja

Desde que está doente, já publicou três livros.
É esquisito, não é? Sabe o que é? Eu já não tinha muita vida social e agora acabou. O médico disse-me: “O seu sistema imunológico desapareceu”. Não tenho defesas nenhumas. Deu-me a entender que é provável que não morra do cancro mas morra de uma pneumonia, por exemplo. Eu tive uma vida social muito intensa e muitos namoros, como se pode ver no “Bilhete de Identidade” os namoros eram 40 mil, mas esgotou-se, foi um ciclo da minha vida, em que eu adorava fazer compras, sair, era muito rebelde. Agora vivo em quase clausura. A solidão não me pesa desde que eu possa ler, escrever e ouvir música.

Schubert, não é?
Sim, principalmente. Porque eu era uma maníaca da ópera e esta é tão alegre que não me consolava ao passo que o Schubert é mais melancólico. Agora estou num intervalo da quimioterapia.

Está com bom aspeto.
É engraçado que diga isso. Uma amiga de uma amiga minha, no último Natal, virou-se para mim e disse: “Mas tu estás com ótimo aspeto, tens a certeza que tens um cancro?”. Ao que eu respondi: “Não, sou eu que me estou a armar”. (risos) Como não perdi o cabelo, a doença teve menos impacto no meu aspeto. Sabe, eu não sei se a beleza física me ajudou ou prejudicou (e não ia pôr-me feia para fazer o teste) mas acho que me ajudou e isso é uma coisa estranha.

Ajudou-a na doença?
Sim. Não sendo hipócrita, e sabendo eu que sou bonita, nos dias em que estava muito em baixo, olhava-me ao espelho e se não me via tão esverdeada com a quimio, sentia-me melhor.

Tive uma vida cheia, fiz o que quis, paguei o preço, e a morte não me assusta.”

Parece lidar bem com a doença.
Não há outro remédio. Não é coragem, não vejo é como é que poderia fazer de outra maneira. Quer dizer, podia-me pôr num canto a chorar. Mas eu não quero, por dignidade. Tive uma vida cheia, fiz o que quis, paguei o preço, e a morte não me assusta.

Não?
A morte "per se" não me assusta. Se eu tivesse 20 anos acho que seria uma tragédia. Tenho 75. No outro dia descobri uma crónica que escrevi  há uns 30 anos a dizer “quero morrer aos 78, não quero ficar muito velha” (risos). A ideia de eu ficar muito envelhecida e sem capacidade de escrever perturba-me. Se eu chegar aos 80 anos já terei uma vitalidade muito diminuída (já tenho agora algumas limitações, já estou dependente de alguém para poder sair à rua porque tenho problemas de equilíbrio) para que a minha vida seja apetecível, eu não quero ficar muito velha, não.

Helena Sacadura Cabral: "A minha vida começou aos 50 anos"
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É por isso que defende a eutanásia?
Q.b.. Sou certamente defensora do suicídio assistido. Que eu diga “eu quero morrer” e que alguém que por amor a mim seja ele o meu marido, os meus filhos ou o médico, me deem uma pastilha para eu morrer. O suicídio assistido não tem nenhuns problemas éticos para mim.

Não é uma tragédia se eu morrer aos 75 anos, o que eu não quero é: ter dores e ficar incapaz de escrever ou de ler. Quanto ao cancro tenho tido alguma sorte porque há meses, descobriram um fármaco nos Estados Unidos (caríssimo, mas como sou da ADSE não pago praticamente nada), que me está a ser administrado e estou a sentir-me melhor.

A lei sobre a eutanásia não foi aprovada. Ficou triste?
Não. O processo foi mal conduzido, foi tudo muito partidário. E acredito que mais cedo ou mais tarde vai passar no Parlamento. A lei deve despenalizar mas deve ser muito bem feita. Espero que não votem ao mesmo tempo a eutanásia e o suicídio assistido porque não são a mesma coisa. No suicídio é a liberdade e a autonomia de uma pessoa que quer pôr fim à sua vida, porque está a sofrer, que está em causa. Aliás, em Portugal o suicídio já não é crime. Na eutanásia é alguém que mata outra pessoa. Temos que pensar muito bem se matar alguém, e é de matar alguém que se trata, é uma coisa necessariamente pura. Não é. O suicídio assistido é diferente, é o próprio que se mata. Nesta questão e na pena de morte sou contra o referendo.

Entendeu a posição do PC?
Ninguém entendeu muito bem. Mas que motivos escondidos é que estarão por trás do PC? A maior parte das pessoas pensaria que a esquerda seria favorável e a direita contra. Eu acho é que o PC não quer sarilhos com a Igreja, nunca quis, desde 1974.

Sou temperalmente rebelde, mas se eu fosse camponesa e ou operária ou se dependesse de um patrão, não podia dizer as coisas que eu digo.”

Voltando ao livro. Na última página diz “Claro que gosto de ser ‘rica’ (…) porque o dinheiro me dá liberdade.” A liberdade de dizer exatamente aquilo que pensa, é-lhe dada pelo dinheiro?
Sou um temperamento livre. Desde pequenina que sou rebelde. No meu livro de bebé a minha mãe escreveu que a primeira palavra que eu disse foi “não”. Sou temperalmente rebelde, mas se eu fosse camponesa e ou operária ou se dependesse de um patrão, não podia dizer as coisas que eu digo. O que me deu uma espécie de segurança para eu dizer exatamente o que penso é eu saber que na universidade não há ninguém para me castigar. A não ser na minha carreira.

A universidade é uma espécie de capoeira

A universidade é muito corporativa, podia ser prejudicada.
Sim, e tem muitos caciques universitários. Ainda hoje me interrogo como é que eu cheguei ao topo. Os assistentes e as pessoas que estão a fazer doutoramentos cá, em Portugal, têm que ter uma enorme reverência pelas ideias dos catedráticos e isso é péssimo. E doutoram-se todos pelas universidades onde eles estão, é uma espécie de capoeira, contrariamente ao que acontece nos EUA. Vim para Portugal em 1978 com o primeiro doutoramento em Sociologia e penso que ter chegado ao topo da carreira se deve muito a eu ter trabalhado com um homem decente.

O professor Sedas Nunes.
Se eu não tivesse trabalhado com ele mas com um cacique medíocre que tivesse medo que eu soubesse mais do que ele e que lhe pudesse fazer sombra, não tinha chegado aonde cheguei. O que teve prós e contras.

Ser decana implicava presidir a todos os júris e isso eu odiei, porque me metiam cunhas e porque eram colegas muito próximos. Este é um País muito pequeno e se as teses de doutoramento eram más e eu dizia “esta tese não vale nem um caracol”, era complicado. Eu não queria ser decana, de resto eu pedi reforma antecipada.

Veio-se embora por causa da pressão?
Para não fazer coisas de que eu não gosto. Não gostava de estar a discutir no conselho científico umas palermices, e além do mais tudo quanto eu propunha era sempre chumbado…

Então escreve e fala livremente porque é universitária?
Eu poder escrever para os jornais tudo o que me apetece, vem-me também de eu ser universitária. Se eu fosse administradora de um banco, por exemplo, chegando ao topo não podia escrever tudo o que me apetecesse.

Mesmo o professor Sedas Nunes um dia chamou-me à pedra, quando fiz uma recensão crítica para o “Diário de Notícias” a dizer mal de um colega meu, porque o livro era uma porcaria: “Não torna a fazer isto porque nós não dizemos mal dos colegas do Instituto”. Eu respondi-lhe: “Tenha paciência, eu digo aquilo que penso dos livros que eles publicam”.

Há tanta gente com doutoramentos que mais de metade devem ser de medíocre qualidade. Já sei que toda a gente vai dizer, se isto sair, que eu sou uma snob.”

Há uma elite académica em Portugal?
Ao contrário. Deixou de haver uma elite. Há uma proletarização. Há tanta gente com doutoramentos que mais de metade devem ser de medíocre qualidade. Já sei que toda a gente vai dizer, se isto sair, que eu sou uma snob. Eu gosto de ver o mérito premiado e custa-me ver pessoas que escreveram disparates totais serem doutoradas.

Por outro lado, incomoda-me o politicamente correto. Há muitos caciques, sobretudo nas Humanidades que o impõem e impedem a liberdade de pensamento — as pessoas já não podem usar certos termos ou assumir certas posições. Como, por exemplo, os académicos que estão agora nesta luta estúpida, de saber se se faz o museu das Descobertas ou se o termo não pode ser utilizado mas sim o Colonialismo e a Escravatura e há uns que querem dois museus, o da Escravatura e o do Colonialismo quando nem sequer se discute o que é essencial. Ai sim, queremos o museu das Descobertas? E o que é que vamos lá meter? Uma corda? (risos)

Diz, citando Raúl Brandão que a alta sociedade portuguesa no século XIX era em geral pelintra.  E dá um exemplo muito divertido, o do marquês de Angeja, que se vestia à saloio mesmo tendo como antepassados os vice-reis da Índia.
A revolução liberal dividiu as famílias nobres a meio, uns apoiaram D. Miguel, outros D. Pedro. E muitas famílias que ficaram sem poder político, sem assento nas câmaras dos Pares, emigraram, que foi o caso dos Cadavais e dos Lafões. Outros ficaram, como o Angeja, por exemplo, ou os Ribeira Grande dos Açores (os meus filhos são descendentes dos Ribeira Grande) e muitos deles ficaram mesmo pelintras. Mas agora também os há.

Ainda há dias visitei uma amiga de infância, das antigas famílias aristocratas, que vive numa casa que eu nem queria acreditar [no que estava a ver]! Uma assoalhada mínima numa rua da Lisboa antiga. Eu até disse “Mas tu estás a brincar? Tens o palácio [a alguns quilómetros de Lisboa] e estás a viver aqui?” Ela lá explicou que tiveram que vender o palácio e etc.

Há uma coisa horrível nestas mulheres de classes muito altas, é que nunca tiveram educação. Quando se divorciam ou enviuvam, ficam sem maneira de ganhar dinheiro. Não as estou a criticar, eram destinadas para outra vida. Esta amiga é de uma grande família titulada, mas é o café que fica por baixo do sítio onde vive que lhe manda uma sopa todos os dias. E eu perguntei-lhe “Mas estás feita pobre?” E ela repondeu-me:  “Mas eu sou pobre! Não tenho dinheiro para todos os dias, divorciei-me e o meu ex-marido não me dá nada!”. Ela é da minha idade.

Houve pessoas que não tendo sido capazes de administrar as terras, e não tendo emigrado como os dois que eu citei, ficaram com os títulos mas não tinham rendimentos.

E hoje acha que os nossos ricos são pelintras culturais?
São. São muito incultos. Em 1962, em Londres, fiquei amiga dos Domecqs, da aristocracia espanhola e já nessa altura os pais tinham percebido a importância de os mandar estudar no estrangeiro. Cá não. Eu até falei nisso ao Jorge Mello quando o entrevistei. Nenhum dos 12 filhos dele foi lá para fora estudar.

Mas Belmiro de Azevedo mandou os dele.
O Belmiro e o [Américo] Amorim mandaram. Mas esses são outra gente. São os que fizeram fortuna à custa de si próprios. Os outros ricos pensavam que os filhos iam herdar e que se amanhavam com os negócios. A aristocracia tem o valor no sangue, a classe média como não tem sangue azul, a única coisa que tinha a oferecer era a cultura, por isso interessava-lhe que os filhos soubessem escrever bem e etc.; já os pobres não tinham nem sangue azul, nem dinheiro nem possibilidade de ter acesso à cultura.

Um miúdo, mesmo pobre, se for inteligente e bastante trabalhador, hoje pode ascender— tem é que trabalhar o dobro dos ricos e ser duplamente inteligente”

Há uns anos dizia que as fortunas portuguesas não eram de grandes empresários que corressem riscos mas de pessoas que tinham uma renda através do Estado ou que tinham herdado. Mas mudou de opinião depois de ter falado com grandes empresários como Américo Amorim e Belmiro de Azevedo, e de ter estudado a vida de António Champalimaud, não?
Ligeiramente. O Champalimaud tinha um temperamento que atrai, comparando com os antecessores, mas era um bully. Ele podia berrar contra o Salazar mas ele queria o mesmo que queriam os antigos, ou seja, proteccionismo. Já o Amorim e o Belmiro são independentes do Estado. Mas estes são excepções.

Diz no livro que em Portugal, “para se enriquecer, nem sempre é preciso faro empresarial, inteligência ou trabalho, basta conhecer alguém no governo, nos partidos e agora menos, na Igreja”. Isto ainda é assim?
É. Pense nos casos que estão agora em tribunal. Não posso citar nomes, porque tenho medo de processos de difamação. Mas penso nalguns políticos que estão a ser julgados mas ainda não foram condenados, que estão nas primeiras páginas dos jornais e enriqueceram à custa de corrupção entre eles e à custa de favores de Estado.

Também diz que eram ricos porque recebiam rendas do Estado ou porque tinham herdado, mas no final do livro parece ter mudado de ideias, diz que há riqueza resultante do trabalho, como é o caso de Américo Amorim e de Belmiro de Azevedo.
São excepções. Não me estou a contradizer. Fizeram obras de mérito. No caso do Belmiro então, não foi nada à custa do Estado, pelo contrário, perdeu a OPA à PT da maneira mais incrível.

Mas em geral, a maior parte dos portugueses não arrisca. É uma coisa de pobres: “Eu tenho aqui este bocadinho de pão, não vou arriscar, depois posso mesmo passar fome”. Um país, ou uma pessoa um pouco mais rica pode arriscar porque se perder também não fica na miséria.

A ascensão social faz-se pelos partidos

Os ricos das últimas décadas são menos independentes do poder do que aquilo que se pensa?
Uns sim, outros não. Pense no caso do António Mexia e no caso do Belmiro de Azevedo. Um depende do poder, o outro não. Os que são voltados para a exportação dos produtos e conseguem afirmar-se lá fora no mercado internacional, não dependem do Estado. Os outros dependem

A mobilidade social, quer a descendente quer a ascendente, aumentou?
Um bocadinho. Pensando na sociedade como uma escada, há uns que vão a subir, ora se o cimo da escada é o mesmo — agora está a crescer um pouco com a expansão económica, mas em Portugal nunca se alarga muito — alguns que lá estão têm de descer. É o caso da minha amiga que referi.

Conheço gente entre os 20 e os 40 anos que há 50 anos teriam empregos garantidos porque os pais tinham influência ou riqueza e que hoje estão no desemprego. Portanto, há alguma mobilidade descendente e ascendente.

Um miúdo, mesmo pobre, se for inteligente e bastante trabalhador, hoje pode ascender — tem é que trabalhar o dobro dos ricos e ser duplamente inteligente — e se vivesse no campo em 1930 não chegaria a sítio nenhum, a não ser o Belmiro que teve sorte e fez aquela carreira espantosa.

A primeira ideia que lhe veio para subir na vida foi inscrever-se numa juventude partidária. Há uma influência desmesurada dos partidos na ascensão social.”

Escreve que a ascensão social se fazia através das carreiras burocrática, militar e política. E hoje?
Partidária.

Mais do que política?
É quase a mesma coisa mas não é bem a mesma coisa. No outro dia o meu filho perguntou a uma miúda esperta de 17 ou 18 anos, filha de amigos, o que é que ela ia fazer quando acabasse o 12º ano. E ela disse que se tinha inscrito na juventude, já não me lembro se do CDS ou do PSD. E quando ele lhe ele respondeu “Mas estás maluca? Vais para uma juventude partidária?”, ela disse: “Mas o que é que julga? É assim que se sobe na vida!”. A primeira ideia que lhe veio para subir na vida foi inscrever-se numa juventude partidária. Há uma influência desmesurada dos partidos na ascensão social.

Entrevista dura a Pedro Chagas Freitas. "Não perco um segundo a ler o que quer que seja que digam sobre mim"
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Também se sobe através do estudo e do trabalho.
Sim, também. Algumas das pessoas com quem contactei na universidade não vinham de classes altas. Tinham acabado a primária durante a revolução e subiram e são hoje professores catedráticos.

O criado que lhe engraxava as botas

Surpreende-se no livro com a percentagem das receitas que alguns ricos como José Maria Eugénio de Almeida e de José do Canto gastavam. As despesas deles não passavam de 20% e 19% do seu rendimento. Qual é a sua relação no seu orçamento?
Tem variado no tempo. Até sair de casa dos meus pais estava habituada a ter uma boa casa na [rua] Rodrigo da Fonseca e nunca me preocupei com o dinheiro, pensava que era rica. Não é que houvesse grandes luxos mas nunca notei que houvesse falta de dinheiro, tínhamos duas criadas, a minha mãe, que detestava cozinhar e etc., tinha uma governanta, tínhamos uma costureira, o que indicia que era um nível de vida bom. O meu [primeiro] marido estava na tropa quando eu me casei, aos 19 anos, era soldado raso, ganhava o que seriam hoje uns 5 euros e estava nas vésperas de ir para a guerra colonial e portanto tive que me empregar.

Contava muito os tostões, não comia carne de vaca, comia carne de cavalo. Ao princípio metia-me nojo, mas era tão mais barata…”

É nessa altura que vai para o ministério da Saúde como intérprete?
Sim.
É quando faz a colcha em croché?
Sim. Eu só tinha que escrever uma carta por semana! Tinha que fazer alguma coisa! Mas era relativamente bem paga.

Com os dois filhos, Filipe e Sofia, em 1967

Voltemos ao dinheiro.
Nessa época, com dois filhos, eu é que praticamente sustentava a casa, vivíamos apertados mas não pobremente, até porque de início, como o meu sogro, Pinto Coelho, era embaixador em Madrid, nós ficámos a viver na casa dele. Depois vendeu a casa e nós tivemos que arrendar uma casa e aí a coisa já começou a ficar mais difícil para mim, portanto contava muito os tostões. Por exemplo, não comia carne de vaca, comia carne de cavalo.

Era mais barata?
Muito mais, e a empregada dizia-me: “Não esteja tão preocupada, a carne de cavalo também é boa”. Ao princípio metia-me nojo, mas era tão mais barata… O meu lema foi sempre viver de acordo com o dinheiro que tinha. Quando acabei o curso e me divorciei, fui como estagiária para a Gulbenkian, não ganhava muito bem mas ganhava folgadamente já. Depois fui para Oxford e a bolsa não era muito boa (apesar de ser melhor do que a dos ingleses), mas vivia num quarto miserável.

A universidade proporcionava-nos uma cama nojenta, meia partida, uma cadeira e uma mesa. No mobiliário baixei muito de nível, não estava habituada a viver num quarto assim, cada casinha tinha seis alunos e uma casa de banho e eu era a única rapariga e os rapazes eram todos peludos, não sei porquê, a banheira estava sempre um nojo.

Comia no refeitório, não cozinhava e tinha um criado, um homem que era estranhíssimo, que me engraxava as botas (eu andava sempre de minissaia e de botas, devia ser uma bonita figura…). (risos)

E como foi quando voltou para Portugal?
Já doutorada, fui logo trabalhar para a Universidade e aí ganhava razoavelmente. E depois fui subindo na escala universitária, nunca se ganha muito, mas dava perfeitamente para aquilo que eu necessitava.

Quando escrevia artigos para jornais, comecei basicamente no “Público”, punha esse dinheiro de lado, porque queria ter a liberdade de se me dissessem “olhe não pode escrever isto porque não está de acordo com a política do jornal” eu vir-me embora. Nunca aconteceu. Era um dinheiro com o qual não contava porque poderia limitar as minhas opções.

O dinheiro dos livros [publicou 18] guardava para os meus netos poderem ir estudar para o estrangeiro. São poupanças para o meu prazer. Não entram no meu orçamento, eu vivo com a minha reforma, como vivi com o dinheiro de professora e de intérprete. Eu tenho a sorte de não ter gostos caros, só tenho um: todas as semanas recebo uma encomenda da Amazon, um livro ou um disco. Não é uma despesa exorbitante. Tenho uma reserva para a velhice.

A zanga com Vasco Pulido Valente e com os irmãos

A velhice assusta-a?
Imenso. A morte nada. O Philip Roth que morreu há dias dizia que a velhice era um pesadelo. Eu sinto isso. A velhice assusta-me e pode ser prolongada por demasiado tempo e isso eu não quero.

Diz na última página do livro que é livre para escrever o que lhe apetece mas tem uma nota de rodapé no início em que parece não ser assim tão livre: “Para evitar maçadas, optei por apenas escrever sobre pessoas que já não estavam vivas”.
Isso também deriva do que sofri quando publiquei o “Bilhete de Identidade”.

Porque é que os homens dão uma importância tão grande à pilinha que não tem importância tamanha? O problema dos homens é a pilinha".

Ficou mesmo marcada com esse livro.
Sim, o que me fez mais sofrer foi a zanga do Vasco [Pulido Valente]. Um dos apresentadores, o João Bénard da Costa, que era muito amigo do Vasco, telefonou-lhe a dizer que ele saía muito mal no livro. E ele telefonou-me no dia do lançamento a dizer que tinha ficado zangado. E eu era, e sou, muito amiga do Vasco, desde os meus 18 anos, e fiquei muito triste na altura. Mas como o Vasco é muito impulsivo e se zangou toda a vida com toda a gente, eu pensei que íamos fazer as pazes. E não liguei. Eu não tomo a iniciativa de fazer as pazes com ele, mesmo estando ele também doente, porque eu acho que ele não tem razão, eu acho que ele sai lindamente do livro, acho isto tudo ridículo.

Falou de aspetos íntimos dele…
É a porcaria do sexo. Porque é que os homens dão uma importância tão grande à pilinha que não tem importância tamanha? O problema dos homens é a pilinha. As mulheres não passam pela vida a dizer se são boas na cama ou não. É uma coisa que a mim não me ocorria… Só a frase de dizer sou boa na cama é completamente equívoca, porque se calhar é-se boa na cama com um e não com outro! Por orgulho ou qualquer coisa, afastámo-nos, e até agora sofro com isso.

Não sofreu só por isso com o “Bilhete de Identidade”, que foi aliás reeditado pela 10.ª vez no ano passado…
Não. Houve umas cenas inacreditáveis de ameaças de tribunais dos meus irmãos. Nenhum deles foi à apresentação do livro porque saiu um extrato dois dias antes no “Diário de Notícias” e eles acharam que aquilo ia dar cabo da nossa família, mais por snobeira, por dizer que não pertencíamos à alta aristocracia. Nós não pertencemos. O que é que eles queriam que eu dissesse? Que o nosso avô era o Duque de Loulé? Não era!

Dois deles (não a Isabel) passaram a telefonar-me de meia em meia hora a insultar-me, o meu irmão que é advogado quis pôr-me um processo por difamação, a Teresa, com quem eu me dava melhor, ficou com uma relação tempestuosa comigo, passava a vida a mandar-me emails… E ainda hoje estes dois não estão bem reconciliados comigo. Mas eu dou-me bem com os meus filhos e os meus netos e isso chega-me do ponto de vista afetivo. Gostava mais que eles fossem como a Isabel que continua a detestar o livro e a dizer que a mãe não era assim, mas como gosta de mim, conseguiu ultrapassar isto.

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Então é para se defender do que passou com esse livro que…
O “Bilhete de Identidade” que eu pensei que não me ia trazer sarilhos nenhuns…

Como é que podia pensar isso se revelava pormenores tão pessoais de tanta gente?
Pensei. Se calhar sou estúpida. Mas repare, eu escrevi-o em Inglaterra. Quis usar os meus conhecimentos de Sociologia e escrever um livro bem escrito que retratasse o que era nascer e viver sob o salazarismo, contando a minha história.

Na boa tradição anglosaxónica.
Sim, em que se usa muito o truque do “eu” para apanhar o leitor. Que não é exibicionismo egocêntrico.

É um testemunho?
Sim. O resultado foi muito imprevisível. Por exemplo, a madre que era a freira mais importante no meu sétimo ano nas Doroteias escreveu-me dois dias depois a dizer: “Minha querida reconheço-te tal e qual como tu eras, és tu, adoro o teu livro”. Uma freira católica escreve isto e os meus irmãos fazem aquela cena?! Foi marcante a reação.

Por isso agora está mais cautelosa?
Agora penso nas consequências, naquela altura não pensei.

As séries e o amor de António Barreto

Porque é que disse que na amizade entre um homem e uma mulher há sempre uma ambiguidade?
Porque há sempre a chatice do sexo.

Tem tantos amigos homens…
Pois tenho, mas a primeira coisa que lhes vinha à cabeça era ir para a cama comigo!

Eu estava muito bem a conversar sobre Camus, por exemplo, e de repente percebia que eles estavam a olhar para mim a pensar 'eu quero ir para a cama com esta gaja'”.

Isso ainda é mesmo assim hoje?
Agora é completamente diferente. Já não vejo isso com as minhas netas. Na minha geração eu era olhada como um objeto sexual. Mas era verdade, eu estava muito bem a conversar sobre Camus, por exemplo, e de repente percebia que eles estavam a olhar para mim a pensar “eu quero ir para a cama com esta gaja”. E depois eu dizia que não, o que eu queria era continuar a amizade. Eu não sou promíscua, apesar de as pessoas se calhar acharem que eu sou. Tive muitas poucas relações sexuais. (risos)

Não foi essa a imagem que ficou depois do “Bilhete de Identidade”…
Mas não é verdade! Contam-se pelos dedos de uma mão... bom, e se calhar mais alguns da outra… (risos)

'Os Ricos'(16,90€) é apresentado esta quinta-feira numa sessão que conta com a presença de Marcelo Rebelo de Sousa, Presidente da República

Sendo uma mulher de esquerda, deixou-se fascinar por estes empresários do século XX…
Eu reconheço o trabalho, e o mérito. Sou uma meritocrata.  Acho que quem trabalha e se esforça deve ser premiado. E acho que a esquerda deve adotar para si este princípio, deve incorporar o mérito como um valor por oposição à corrupção, ao nepotismo, etc..

Desde que depois não haja extremos de desigualdades sociais como há em Portugal, o salário mínimo não pode ser mil vezes inferior ao salário [de um elemento] do conselho de administração. É evidente que o administrador de um banco ou de uma grande empresa tem que ganhar mais. Eu não sou pela igualdade, essa existia na China do Mao e não concebo que aquilo seja uma coisa boa. Mas tem que haver alguma coesão social, os membros dessa comunidade têm que sentir que há justiça na forma como a riqueza é distribuída.

A sua posição em relação à “geringonça” continua favorável?
Não ligo muito à peripécia política. Agora deixei pura e simplesmente de ver televisão, não vejo nada. Todas as noites vejo uma série. O António [Barreto, o marido] tem sido impecável.

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Qual é a série que está a ver agora?
Vi cinco ou seis séries das chamadas nordic noir, todas fantásticas. Depois disse ao António: “Já não aguento mais, estamos há seis meses a ver polícias e mortos e mortos e polícias, e assassinatos horríveis e pedófilos que rasgam as mulheres aos pedaços, agora quero uma coisa assim mesmo pirosa, doce, em que os episódios têm happy endings…” Precisava de uma série sentimental, conservadora e piegas. Daí estar a ver uma série americana intitulada “Parenthood”. Inicialmente considerei-a tonta, mas noto que melhorou com o tempo. E o facto de um dos miúdos da série, o Max – um ator admirável — sofrer da doença de Asperger retira dos episódios, que são muitos, o lado lamecha que corria o risco de adquirir. Pelo meio vi o “Breaking Bad” que adorei, tinha 80 episódios, mas como nunca saio à noite, todas a noites às 22 horas pomo-nos ali como se fosse o cinema e vemos. O António detesta que eu diga que ele me salvou a vida, mas de certa maneira salvou.

Quando o médico me disse 'tem um cancro', eu respondi-lhe: 'Ah, obrigada dr'”.

Tanto em "Os Pobres" como neste livro, faz-lhe uma declaração de amor muito bonita. No primeiro diz: “Sei agora o que é precisar de alguém, como sei o que é o amor. Foi o António quem me ensinou.” E neste escreve: “A certa altura, percebi que ele usava a primeira pessoa do plural nos verbos em que abordava a minha doença. (…) Sei que me comoveu. Em vez de me dizer ‘Se souberes…’, dizia ‘Se soubermos…’. Desde o início que o meu cancro foi vivido a dois.”
Eu não sei se ele gostou da dedicatória. Ele é muito reservado, é o contrário de mim, eu estou mais ou menos proibida de falar dele (também não digo nada de extraordinário), ele acha que eu sou uma desbocada mas também não me chateia.

Eu acho extraordinário, que um homem que adora viajar — ele é um ativo, não é um académico puro como eu, que só gosta de estar em casa — tenha ido a todas as sessões de quimio duas vezes por semana, durante três anos. Algumas duravam seis a oito horas. Levava o “The Economist” e lia-o de trás para a frente. Isto, na verdade, tirou-lhe um ano de vida útil. E à noite, ele que é mais social do que eu, não saía porque achava indecente deixar-me aqui sozinha. Então criámos a rotina de ver séries em DVD. O António é da minha idade mas como é um otimista achava que não ia envelhecer, ao passo que eu sabia o que me esperava. O que não sabia era que iria ter um cancro. Mas, pensando bem, ter um cancro é melhor do que ter Alzheimer.

Porque é que diz isso?
Porque o cancro é uma doença física que não afeta a nossa personalidade, ao passo que com Alzheimer a identidade, aquilo que nos define como pessoa, desaparece. Estou consciente de que quem sofre de Alzheimer talvez sofra menos fisicamente do que quem tenha sido atingido por um cancro — e dentro desta palavra há coisas muito diferentes — mas o que eu não poderia jamais suportar seria perder a razão. Ver a minha mãe enlouquecer foi terrível.

Por isso, quando o médico me disse “tem um cancro”, eu respondi-lhe: “Ah, obrigada doutor”. E ele disse-me que nunca vira alguém receber um diagnóstico desta forma. E não disse mais nada porque é muito reservado. Ao menos, pensei, não era Alzheimer, o meu mais fundo receio.

O pequeno jardim do prédio pombalino onde vive é um dos espaços preferidos de Maria Filomena Mónica

Porque é que diz que o seu marido lhe salvou a vida?
Porque cuida de mim. Por exemplo eu não consigo conduzir, tenho cãibras, eu não percebo o que o médico diz, é ele que toma nota, que prepara os meus comprimidos, etc. (no meu diário do cancro há passagens cómicas, numa delas conto como eu deixei cair uma pastilha para o chão que foi tuc, tuc, tuc, pelas escadas abaixo e eu fui a correr degrau após degrau atrás do comprimido). Ele toma conta da rotina da doença.

A Sofia olhou melhor e disse: ‘Ó mãe, a validade deste pacote de arroz terminou há 14 anos!’”.

Também tem a ajuda dos seus filhos.
Nós tentamos dividir as tarefas também pelos dois filhos. A Sofia é uma mandona (é também uma maneira de lidar com a doença). Chegou cá no dia a seguir a eu ter recebido o diagnóstico e começou logo a dizer: “O que é isto? A mãe não tem despensa? Eu venho para cá e vou organizar tudo!” Eu e o meu marido não cozinhamos. Ela abriu o armário e viu um pacote de arroz e disse “Vamos fazer arroz para o jantar”.  Olhou melhor e disse: “Ó mãe, a validade deste pacote de arroz terminou há 14 anos!” (risos) E eu disse: “Pois é, vai dar muito trabalho e tu não vens cá para casa mandar em mim”.

E agora o que se segue?
Agora estou a dar esta entrevista. Depois vou descansar. E depois… sei que tenho que arranjar outro livro para escrever. Eu não posso ficar sem um projeto qualquer que me faça levantar da cama.