Desde cedo que Patrizia Paterlini Bréchot sabia que queria cuidar das pessoas. Na Itália dos anos 60, onde o esperado de uma jovem rapariga era arranjar um “bom partido”, a agora oncologista e investigadora decidiu seguir o caminho da Medicina.
Depois de um acontecimento traumático com um jovem paciente, que faleceu em poucos dias na consequência de cancro do pâncreas, Patrizia decidiu, aos 24 anos, dedicar-se ao estudo do cancro, em busca de algo que pudesse aliviar o sofrimento das vítimas desta doença.
Depois de anos de investigação, a especialista italiana, juntamente com a sua equipa, elaborou o método ISET, um teste que permite identificar células cancerígenas no sangue e qual o tipo de cancro desde uma fase muito inicial, o que pode permitir um diagnóstico precoce e, consequentemente, aumenta em muito as hipóteses de cura e sobrevivência à doença.
A MAGG teve a oportunidade de falar com Patrizia Paterlini Bréchot numa visita da investigadora a Lisboa a propósito do lançamento de “Matar o cancro”, o livro onde a especialista relata a sua história de vida, os obstáculos na investigação do cancro e o que ainda se pode fazer para acabar com a doença.
Cresceu numa província italiana, durante a década de 60. Não era habitual, nessa época, uma rapariga escolher um campo tão rigoroso como a Medicina. O que a levou a optar por esse caminho?
Desde pequena que sempre quis curar, curar o sofrimento dos meus amigos se estavam tristes com alguma coisa, por exemplo. Foi muito natural para mim escolher a Medicina, embora o meu pai me tenha tentado dissuadir da ideia. Não considerava que este fosse um trabalho para uma mulher, mas confesso que acho que o fez para testar a minha determinação em seguir esse caminho.
E depois escolheu o estudo do cancro. Porquê?
O que orientou e mudou a minha vida, fazendo-me escolher o caminho da Oncologia, foi um encontro que tive com um paciente (chamo-lhe “paciente zero”, no meu livro), que morreu no espaço de poucos dias, vítima de cancro do pâncreas. Estava no departamento de medicina geral e era responsável por um quarto com seis camas, onde estava um homem jovem, muito magro e pálido, que tinha acabado de perder o pai com cancro do pâncreas e estava a descobrir nele os mesmos sintomas que levaram à morte do pai, o que é muito assustador. O homem estava em pânico. Eu estava habituada a controlar as minhas emoções mas, na verdade, confrontada com aquela situação, eu também estava em pânico — não queria que ele sofresse daquela maneira. A história desse paciente, que faleceu poucos dias depois, foi um marco na minha vida. Devido ao estado avançado da doença, à impossibilidade de fazermos algo e à morte iminente, tentei acalmá-lo e disse-lhe que ele sofria de uma infeção. Mas no momento em que ele estava a morrer, olhou para mim e o olhar dele dizia que eu o tinha traído, que lhe tinha mentido. Estive muito perto de desistir da carreira de médica depois desse momento, mas acabei por escolher lutar.
Infelizmente, ouvimos falar de cancro quase todos os dias. Mas o que é o cancro, o que o causa?
Em primeiro lugar, o cancro desenvolve-se porque algumas das nossas células ficam fora de controlo. Temos 30 biliões de células no nosso corpo e algumas dessas morrem diariamente. As que estão perto das células que morrem, proliferam-se para substituir as mortas. E quando as substituem, param de se reproduzir. O cancro acontece quando as células se reproduzem e não param de o fazer. Ficam fora de controlo, deixam de ser susceptíveis às mensagens de controlo do corpo que as ordenam a parar e sofrem mutações. Continuam a crescer, a multiplicarem-se e criam as massas (tumores). No entanto, a massa por si só não mata, dado que as podemos remover através de cirurgia, a não ser que esteja no cérebro. Mas em mais de 90 por cento dos casos, o cancro mata não devido às massas, mas sim porque se torna capaz de espalhar células para outros órgãos do corpo. Essas células invadem o sangue e, através do sangue, viajam para outros órgãos e conseguem reproduzir-se.
Diz no seu livro que damos tempo suficiente ao cancro para nos matar. Isso também mostra a grande importância da prevenção, de exames de rotina?
Sim, sem dúvida. O cancro mata-nos porque lhe damos tempo para o fazer. Ao estudar o cancro, dei-me conta de que o processo de formação de metástases, que é o que realmente mata na grande maioria dos casos, não é um processo rápido. É lento e muito ineficaz.
Não é essa a ideia que grande parte das pessoas têm. Aliás, o cancro é visto, muitas vezes, como fulminante...
Isto também foi uma grande surpresa para mim, principalmente devido ao que os pacientes sentem quando são diagnosticados com cancro com metástases. Eles não tinham qualquer sintoma antes, logo, quando têm o diagnóstico, sentem que levaram com uma bala mortífera nas costas. Mas não é bem assim.O que acontece, nesses casos, é que o tumor começa a espalhar células cancerígenas desde o início, desde que o tumor é mesmo muito pequeno. E é essa a razão porque não existem sintomas e nenhuma massa consegue ser encontrada. Mas a partir do momento em que as células se começam a espalhar, é um processo muito pouco eficaz. Essas células morrem por si próprias no início, são muito frágeis, podem ser mortas pelo sistema imunitário. É apenas após anos (porque muitas mais células se espalharam pelo sangue e com mais mutações no DNA) que as células cancerígenas se tornam capazes de alcançar órgãos distantes e reproduzirem-se nos mesmos, quando as metástases começam a desenvolver-se.
Para os cancros mais mortais, temos uma janela de oportunidade para agir que nunca foi usada na medicina."
Existe, então, tempo para lutar contra o cancro?
Para os cancros mais mortais, temos uma janela de oportunidade para agir que nunca foi usada na Medicina. Esta janela começa quando as células do tumor começam a invadir o sangue. E é por isto que dedicamos tanta energia a detetar essas células, mesmo quando as mesmas são muito, muito raras, de uma forma confiável — podemos dizer se existem ou não células do tumor no sangue.
Acabou de descrever o teste ISET, correto? Pode falar-me um pouco mais sobre isso?
Sim, claro. O teste ISET é um método que nos permite extrair do sangue as células oriundas de órgãos, deixando-as intactas para as analisarmos. E como estão intactas é-nos possível analisar a morfologia, o que nos permite fazer um “papa-nicolau” ao sangue. O método é semelhante — ver as células ao microscópio, que nos pode dizer se existem ou não células cancerígenas. É muito especifico e é o teste mais sensível que é conhecido até à data. Já foi, inclusive, publicado que se existir apenas uma célula cancerígena no sangue, conseguimos identificá-la. Foi para isto que trabalhámos, que nos esforçámos. O avanço na Medicina é feito através de muitos estudos clínicos e, no caso do ISET, já existem 76 estudos públicos que mostram a validade do teste para detetar praticamente todos os tipos de cancro, como próstata, cólon, mama, melanoma, cancro do pâncreas, etc.
Este teste não é comparticipado pelo Estado e ainda é desconhecido por grande parte da comunidade médica. O livro também é uma forma de o divulgar?
Sim, é verdade, ainda existe muito desconhecimento em relação ao ISET. No campo da medicina preventiva e dos testes não-invasivos, sempre foi um objetivo chegar-se a um simples teste capaz de detetar cancro antes da imagiologia. E em 2014, o "New York Times" publicou uma lista de todos os testes de sangue existentes, incluindo o nosso, e escreveu que o ISET havia sido capaz de detetar cancro, neste caso específico cancro do pulmão, antes de imagiologia.
Qual é o seu principal objetivo para o ISET?
Em primeiro lugar, queremos fazer com que as pessoas e os intervenientes diretos neste campo da saúde entendam que a forma mais eficaz de ganhar a guerra contra o cancro é desenvolver métodos para detetar prematuramente o cancro. Isto não é uma tendência ou nada que se pareça, é sim caminhar na direção certa. Precisamos de gastar mais dinheiro neste campo de pesquisa. Gostávamos de ver este teste que desenvolvemos, o ISET, industrializado para que o preço seja diminuído. Aliás, o nosso sonho é que possa estar disponível numa simples análise de sangue, que fazemos muitas vezes de forma rotineira, em consequência de check-ups, por exemplo.
Mas ainda há mais para estudar, para fazer?
Sim, e precisamos de fundos para fazer mais pesquisa. Gostávamos de levar este teste para um patamar em que conseguíssemos identificar de que órgãos vieram essas células cancerígenas, que tipo de mutações sofreram para que encontremos o tratamento ideal para as eliminar. Atualmente, o teste é usado para controlar os doentes de cancro, para os seguir. Queremos chegar a um ponto em que é usado como prevenção, que é uma janela ainda por abrir. Mas não existe qualquer outro teste capaz de detetar o cancro antes da imagiologia (desde que invada o sangue), embora os dois métodos se complementem, dado que nós não vemos a massa (tumores), mas sim a invasão das células no sangue.
O cancro, quando detetado atempadamente, pode ser eliminado. As terapias e estratégias que existem atualmente são capazes de curar esta doença quando o diagnóstico é feito cedo."
Acredita então que os exames de rotina são o primeiro passo para lutar contra o cancro, que a prevenção é realmente algo que deveria estar muito presente na sociedade?
Absolutamente. Temos de evitar as desculpas. As mulheres, por exemplo, são exímias nas desculpas, que são no fundo verdadeiras. É o trabalho, são os filhos mas a vida delas é o mais importante. Temos de evitar o nosso medo do cancro e não podemos deixar de vigiar o nosso corpo — essa estratégia não funciona. O cancro, quando detetado atempadamente, pode ser eliminado. As terapias e estratégias que existem atualmente são capazes de curar esta doença quando o diagnóstico é feito cedo. Para complementar esta atenção à nossa saúde, devemos adotar um estilo de vida saudável e tentar ser felizes.
Como surgiu o convite para escrever o livro?
O método ISET foi algo inédito, um avanço incrível e fui entrevistada por muitos jornais e televisões. Uma editora viu uma dessas entrevistas por altura do Natal de 2014 e acabou por me perguntar se eu não queria escrever um livro sobre a minha história e trabalho. É curioso porque sempre disse que nunca o faria, mas respondi imediatamente que sim. Não quis dizer que não porque fiz todo este esforço e trabalho pelas pessoas e, para mim, esta era uma possibilidade de contar às pessoas o que estamos a fazer, o porquê de o fazermos e o que a ciência está a fazer neste campo. E achei que era importante demais para recusar.
Chegou a acreditar-se que o cancro era uma doença contagiosa. Hoje sabemos que não se trata disso mas, na sua opinião, considera que esta é uma doença que ainda causa alguma discriminação?
Cada vez menos, mas ainda acontece. Acho que depende do nível de educação das pessoas. O cancro coloca as pessoas num estado de fraqueza e é muito importante que os médicos, família e amigos expressem amor, compreensão e humanidade aos pacientes de cancro, pois estes precisam de muita força para lutar. E não lutamos apenas com a Medicina, mas também com a nossa força interna. E a parte mental, o psicológico, desempenha um grande papel.
No livro fala da sua colega Giovanna, que viria a falecer de cancro do cólon. “Giovanna, não sei quanto tempo durará ainda a minha vida, mas, se ela durar mais do que a tua, prometo-te que viverás em mim como uma chama e que nunca deixarei de me bater para prolongar e melhorar a vida dos pacientes. Travaremos juntas esse combate. E nada nos fará parar”, escreveu, recordando uma conversa. Esta promessa deu-lhe forças para continuar?
Sim. Confesso que tenho de tentar não me emocionar, estas memórias vivem muito em mim, com muita força. Foi horrível ver uma amiga tão querida morrer de cancro ao mesmo tempo que tentávamos lutar contra esta doença [Giovanna fazia parte da equipa de investigação de Patrizia]. A Giovanna tinha apenas 34 anos e o diagnóstico foi tão tardio. Mas sim, a morte da minha amiga foi mais um acontecimento que me ligou a esta missão de combater o cancro. Não só a Giovanna, mas todas as pessoas que vi morrerem por causa do cancro. Não esqueço os olhos dessas pessoas e, para mim, é quase como se eu lhes tivesse feito uma promessa, a promessa de que não morriam em vão, que a sua morte iria ter significado.
Todos os pacientes que vi a morrerem de cancro deixaram-me com algo, acho que uma espécie de raiva até. Mas, acima de tudo, com muita vontade de lutar."
Escreve também no seu livro que existem pessoas, especialmente mulheres, que escolhem ser corajosas mesmo quando enfrentam a morte. São uma inspiração para si, para continuar a tentar encontrar uma forma de matar o cancro?
Todos os pacientes que vi a morrerem de cancro deixaram-me com algo, acho que uma espécie de raiva até. Mas, acima de tudo, com muita vontade de lutar. Mas as mulheres, especialmente, tenho-lhes uma admiração incrível. Vi tantas delas a serem tão corajosas, a tentarem não colocar o fardo do cancro na sua família, a tentarem enfrentar toda situação da doença e morte com um sorriso, e a tentarem que todos à sua volta não sofressem apesar do seu próprio sofrimento. E isso é incrível e fantástico. Penso que todos temos muito a aprender e a retirar da história dessas mulheres, que conto no livro. De qualquer forma, é claro que todos sabemos que não somos eternos e que temos de ir embora eventualmente. E a maneira como escolhemos fazê-lo, se for possível, é importante. Essas mulheres deram-me grandes lições. E nunca esquecerei os olhos dessas mulheres, e dos homens também, que vi a morrerem devido ao cancro, dão-me força para lutar. Porque lutar diariamente não é fácil.