Vem de uma família de jornalistas, por isso parecia quase certo que seria esse o caminho de Sara Blaedel. A dislexia trocou-lhe as voltas em miúda e afastou-a da escrita, apesar de se ter apaixonado pela literatura desde os tempos das aventuras de “Os Cinco”. Depois de servir às mesas nos melhores restaurantes de Copenhaga, na Dinamarca, uma doença obrigou-a a ficar hospitalizada durante três anos.

E foi aí que mudou tudo outra vez. Ainda a recuperar, decidiu montar uma editora especializada em policiais e thrillers, e do nada atirou-se para o jornalismo apesar de a dislexia ainda ser um problema. E quando parecia que a sua vida não podia dar mais voltas, foi numa produtora de televisão que começou a inventar histórias na sua cabeça. Um dia apareceu-lhe Louise Rick, a protagonista da sua coleção, e nunca mais se foi embora. A história tornou-se de tal forma complexa e envolvente que a dinamarquesa teve de a passar para o papel. Tinha de saber o que é que iria acontecer a seguir.

Sara Blaedel tem obras publicadas em 37 países (por cá são quatro editados pela Topseller), ganhou muitos prémios e é conhecida pelos fãs e pela imprensa como a "Rainha dinamarquesa do thriller". Este fim de semana, 26 (15h-18h) e 27 (15h-17h) de maio, vai estar na Feira do Livro para dar uma palestra sobre como escrever um thriller nórdico. Um dia antes, sentou-se à conversa com a MAGG no Holiday Inn Lisboa Continental, em Lisboa.

É difícil não ficar fascinado por Sara Blaedel. Impecavelmente vestida e maquilhada, com a mala Gucci ao lado, agradece a nossa presença com os seus penetrantes olhos verdes: “Muito obrigada por ter vindo”, diz-nos depois de um efusivo olá. “A sério, muito obrigada”.

Não percebemos porque é que a "rainha" nos está a agradecer com tanta humildade e simpatia. Conhecida em todo o mundo pela série Louise Rick, está mais do que habituada a ser requisitada para entrevistas. Entenderemos mais tarde: apesar da fama, do dinheiro e do reconhecimento, aos 53 anos, a rapariga disléxica que residia numa cidade pequena nos arredores de Copenhaga ainda vive dentro dela. E talvez nunca chegue a sair de lá.

Podemos dizer que os thrillers nórdicos são já uma tradição?
Sim, sem dúvida. Começou nos anos 70, e aquilo que se tornou uma tradição foi o facto de muitos dos thrillers nórdicos abordarem questões sociais. Podemos não ter super-heróis, ou super-heroínas, mas temos pessoas normais a resolverem crimes, que contam a história do que se passa nesses países.

Mas os países nórdicos são conhecidos por serem os mais felizes do mundo. Não há aqui alguma contradição?
Se eu crescesse numa cidade muito violenta, provavelmente escreveria histórias de amor. Ou romances eróticos, algo desse género. Acho que isto acontece precisamente porque podemos dar um passo atrás e olhar para o panorama geral. Apesar de tudo, eu, por exemplo, tenho escrito muito sobre prostituição e tráfico. Naquela altura, era um problema muito diminuto na Dinamarca. Mas cresceu imenso. Em vez de ignorá-lo, vamos encará-lo de frente. E é verdade que temos uma baixa taxa de criminalidade comparada com outros países, mas temos criminalidade.

'Mulheres da Noite' é o mais recente livro da autora a chegar a Portugal. Está à venda desde maio e custa 18,79€

Está a ficar pior?
Se me perguntasse há cinco anos, eu dir-lhe-ia que Copenhaga nunca poderia sofrer um ataque terrorista. Mas sofremos um. Ainda agora tivemos aquele que foi provavelmente um dos mais loucos e violentos homicídios da nossa história, uma jornalista sueca que foi morta num submarino.

A história correu na imprensa portuguesa.
Nunca ninguém pensaria que isso podia acontecer em Copenhaga. Mas a verdade é que pode acontecer em toda a parte. Não quero afirmar que as coisas estão a ficar mais violentas ou piores. Aquilo que interessa é que temos estes problemas e não podemos ignorá-los. Não escrevo os meus livros porque quero mudar as coisas, não é esse o meu objetivo. Escrevo para a entreter a si. Mas se isso lhe despertar alguma curiosidade, e quiser saber mais sobre o assunto, então é bom. É um bónus. E essa é a tradição nórdica.

Alguma vez se imaginou a escrever sobre outra coisa além de thrillers nórdicos?
Toda a minha vida fui apaixonada por livros de mistério. Adoro. Não sei se vocês tinham estes livros cá, mas em criança eu adorava a coleção infantil “Os Cinco”, de uma autora inglesa.

Tínhamos sim.
Em miúda, eu só queria fazer parte daquele grupo, nem que fosse o cão. Queria pertencer àquele grupo de miúdos que resolvia casos misteriosos. Eu gosto muito desse género. Há 25 anos criei a minha própria editora de policiais e thrillers. Nessa altura os thrillers nórdicos ainda não eram populares, mas eu adorava.

E nessa altura já escrevia?
Não, de todo. No início da minha carreira escrevi uma biografia sobre Ana Maria da Dinamarca, irmã da rainha da Dinamarca [Margarida II] e rainha da Grécia [até a abolição da monarquia em 1973]. Portanto, é claro que eu podia fazer outra coisa. Mas são os mistérios e os thrillers que me apaixonam.

Venho de uma família de jornalistas — o meu pai era jornalista, o meu avô era jornalista, o meu tio era jornalista, eram todos jornalistas. Toda a gente dizia que eu também ia ser, e eu respondia: 'Não, nem pensar'."

Vamos recuar à sua infância. Costumava escrever em miúda?
Não, eu sofro de dislexia. Eu odiava. Era muito difícil para mim, apesar da minha dislexia não ser tão grave como poderia ser. Ainda lido com isso hoje, mas em criança era bastante mais complicado. Os livros de mistério foram uma enorme ajuda. Na coleção "Os Cinco", por exemplo, o mistério faz-nos querer descobrir o que é que acontece a seguir, portanto continuamos a ler. Tens de saber mais, e mais, e mais. Mas eu odiava escrever em miúda. Lembra-se de quando o professor apontava para si e dizia: “Continua a ler”?

Lembro-me perfeitamente.
Eu tinha dores de estômago. Era horrível, odiava cada segundo. E quando me chamavam ao quadro para escrever, em frente à turma inteira... não sei se consegue entender o quão horrível isso é para uma criança que sofre de dislexia. Não era muito divertido ser eu naquela altura. E sabe, eu venho de uma família de jornalistas — o meu pai era jornalista, o meu avô era jornalista, o meu tio era jornalista, eram todos jornalistas. Toda a gente dizia que eu também ia ser, e eu respondia: “Não, nem pensar”.

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Chegou a ser diagnosticada com dislexia?
Sim, tive ajuda e tinha uma professora incrível que conseguia decifrar a minha escrita. Porque na dislexia é sobretudo uma questão de conseguir decifrar o que está escrito.

Há um padrão.
Sim, sim. Graças a isso não foi um problema terrível, mas ainda assim foi uma luta. E fez-me pensar que não iria escrever, que não gostava. Mas gostava de contar histórias. Houve uma altura em que tive de escrever uma história para a escola e o meu professor disse-me: “Sara, és tão desleixada com os finais das frases”. O meu pai foi à escola e disse ao professor: “Nunca mais se atreva a pôr em causa o amor da minha filha pela escrita”.

Isso foi incrível da parte do seu pai.
Bem, na altura eu não vi as coisas dessa maneira, mas para ele era muito importante que eu continuasse a contar histórias. E ele disse-lhe: “Não se atreva a pôr em causa o amor da minha filha pela escrita só porque ela tem dislexia.” É claro que é importante escrever bem, tu tens de treinar e esforçar-te, mas a história está na tua cabeça. Se consegues contar histórias, isso é o mais importante.

Em que é que trabalhou quando terminou a escola?
Servi às mesas dos melhores restaurantes em Copenhaga.

Houve um momento em que me propuseram que me reformasse. Eu tinha 28 anos, e respondi: 'Nem pensar'."

Completamente diferente da escrita.
Sim, se bem que o meu pai era crítico gastronómico, portanto havia uma ligação. Ainda assim, era bastante diferente. Nessa altura tirei também um curso de design gráfico, que me ajudou mais tarde quando criei a minha própria editora. Agora que já escrevi tantos livros e publiquei em tantos países, consigo perceber que há um círculo que se fecha desde a pequena Sara até quem sou hoje, mas na altura eu seguia na direção que a vida me levava. Não sou lá grande coisa nessa parte da “estratégia de carreira”.

Mas porque é que decidiu deixar de servir às mesas para criar a sua própria editora?
Eu tive um problema na altura em que servia às mesas, que não esteve relacionado com o trabalho. Eu tenho um osso a mais, e na altura praticava imenso equitação, a nível competitivo. Em determinada altura os meus músculos cresceram de tal forma para aquele osso a mais que me cortou os nervos. Estive hospitalizada durante três anos, não conseguiam entender o que se passava. Foi dos meus 27 aos 30 anos, uma altura bastante importante na nossa vida. Houve um momento em que me propuseram que me reformasse. Eu tinha 28 anos e respondi: “Nem pensar”. Mas porque na altura eu não era capaz de continuar a trabalhar, um amigo do meu pai, que tinha uma grande editora na Dinamarca, disse-me: “Sara, sempre foste apaixonada por thrillers. Porque é que não começas a publicar os teus próprios livros?”. Como tinha o curso de designer gráfica, era algo que de facto podia fazer. Na altura aquilo devolveu-me um objetivo. Fez-me focar em algo mais além da minha doença.

E saiu do hospital.
Sim, e foi isso que me fez sair do hospital, tenho a certeza disso hoje. Estava tão empenhada, tão determinada. Eu sabia ler thrillers, e sabia reconhecer um bom thriller. Só tinha de escolher os melhores. Depois da editora comecei a trabalhar em jornalismo.

Acabou mesmo por ser jornalista.
Sim, fazia entrevistas para uma revista. Foi um pouco estranho porque não tinha formação na área, mas pediram-me para fazer entrevistas a autores. Eu, com os meus problemas com os finais das frases, com a dislexia, com dificuldade com as vírgulas. Disse-lhes isto tudo e ele responderam-me: “Sara, vamos ajudar-te. Porque tu és boa a falar com as pessoas”. E assim foi. Gostei muito, portanto durante dois ou três anos tinha a editora e trabalhava como jornalista. Depois acabei por fechar a editora, porque estava a ser demais para mim. Ou dedicava-me à editora ou dedicava-me ao jornalismo. Escolhi o jornalismo.

Quando é que começou a escrever os seus próprios livros?
Depois da revista comecei a trabalhar em televisão. Deve saber tão bem como eu como são stressantes os deadlines, a pressão, os gritos. Acho que foi para combater o stresse que comecei a contar histórias a mim própria. “E se uma jornalista morresse…”. Não planeei nada, não imaginei que pudesse sair dali um livro. Era apenas uma história para onde eu podia fugir quando as pessoas começavam aos gritos. Em determinada altura conheci Louise Rick [protagonista dos seus livros], apareceu-me do nada. E depois Camilla Lind [melhor amiga de Louise Rick], também me apareceu do nada, e então sim, percebi que tinha de fazer qualquer coisa com aquilo. Tal como em tudo na minha vida, não foi planeado. Simplesmente aconteceu.

O seu primeiro livro foi “Green Dust”. Quanto tempo é que demorou a escrevê-lo?
Demorei cerca de um ano, porque na altura ainda trabalhava em televisão e era mãe solteira. Ele tinha sete anos, seis ou sete, portanto demorou um bocadinho. Comecei a escrever em 2003 e no ano a seguir surgiu o segundo. Não planeei quantos livros ia escrever. Acho sempre estranho quando alguém me diz que vai escrever uma coleção com dez livros. E se a história não for boa o suficiente? Como é que pode saber se é boa o suficiente? Eu prefiro esperar e ver o que acontece.

Pensei: 'Ok, estou na décima página do meu livro e a protagonista tem um esgotamento nervoso. Isto é mau'. Eu podia apagar, mas não o fiz. Se é assim que ela é, vamos trabalhar com isso."

Todos os seus livros têm Louise Rick como protagonista. Como é que a descreve?
É uma personagem forte, mas não é uma heroína, de todo. No início idealizei uma personagem muito mais forte do que ela era na realidade. Visitei o departamento de homicídios de Copenhaga, e não há muitas mulheres a trabalhar lá. Entrevistei duas ou três, isto há 15 anos, para o livro — faço muita investigação —, e achei-as todas muito fortes. E sabe, nunca tinha escrito ficção antes. Enquanto jornalistas, nós tentamos manter-nos o mais fiéis possível à realidade. Depois das primeiras dez páginas do livro, mais ou menos, Louise Rick tem um flashback da primeira vez que está perante uma jovem, e tem de contar-lhe que o namorado morreu num ataque violento. Não sei de onde veio aquela cena, mas nela Louise Rick tem uma espécie de breakdown. E isso surpreendeu-me imenso, porque era tão forte, tão dura. Mas com todos os sentimentos de estar perante aquela jovem a contar-lhe que o namorado morreu…

Ela tem um momento em que não consegue ser assim tão durona.
Pensei: “Ok, estou na décima página do meu livro e a protagonista tem um esgotamento nervoso. Isto é mau”. Eu podia apagar, mas não o fiz. Se é assim que ela é, vamos trabalhar com isso. Quando terminei o livro, perguntei ao chefe do departamento de homicídios de Copenhaga o que é que ele faria se tivesse alguém no seu departamento que reagisse assim. Ele olhou para mim e disse-me: “Mas Sara, se ela não reagisse assim, nunca poderia trabalhar para mim.”

Não seria humana.
Não seria humana, não teria empatia. E se não tivesse empatia, nunca poderia fazer aquele trabalho. Foi muito interessante.

O que é que aconteceu após a publicação do primeiro livro? Mudou tudo?
Não [risos]. De todo. Como tive a editora, sabia que não ia ser fácil. O primeiro livro não foi de todo um sucesso. Adoraria dizer que foi, mas não foi. Mas ganhei o The Danish Crime Academy’s Debutant Award. Atraiu um pouco mais de atenção. Mas foi o meu segundo livro, “Call Me Princess”, que foi um sucesso. É sobre namorar online, o que começava a acontecer em 2005 — uma das minhas melhores amigas conheceu o marido online, é bastante comum hoje em dia. Esse livro foi um grande sucesso, e nesse momento percebi que não podia continuar a trabalhar em televisão. Não sou boa a fazer muitas coisas ao mesmo tempo.

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Continuou a escrever, claro, mas ganhou muitos prémios também.
Ainda me vejo como a menina disléxica que vivia nos arredores de Copenhaga, sabe? Nunca me imaginei uma autora. Nunca achei que pudesse chegar aqui. Mas aconteceu. O meu segundo prémio foi o de Autora Mais Popular na Dinamarca, ganhei-o quatro vezes. A imprensa começou a chamar-me "Rainha dinamarquesa do thriller". Depois ganhei o Gyldne Laurbaer, o mais importante prémio literário na Dinamarca. Não é muito comum ser atribuído ao género de crime. Foi mesmo uma grande honra.

Qual é a sensação de estar na lista dos autores nórdicos mais reconhecidos da atualidade?
Não me vejo assim. Vivo nos Estados Unidos da América (EUA) há um ano e meio, e lá sou apenas uma autora. Prefiro assim. Não olho para os meus livros como especificamente nórdicos, eles ajustam-se a qualquer parte do mundo. É óbvio que tenho orgulho em ser dinamarquesa, mas tem mais que ver com estar ao lado de grandes autores do que especificamente ser uma autora nórdica.

É perigoso dizer isto enquanto autores, mas às vezes as séries de televisão roubam-me o tempo que tenho para ler. Tenho de me portar bem e obrigar-me a não ver tantas séries."

Além dos livros, estamos numa época em que há imensas séries de televisão de crime. Tem uma favorita?
Oh! Quem me dera ter-me preparado para isto, porque tenho tantas séries favoritas. Estou a ver tanta coisa neste momento. Acabei de ver “Killing Eve”, é nova na Netflix. Há tantas séries boas. Adoro fazer binge-watching. Já viu “Happy Valley”?

Ainda não.
Oh, é tão boa! Há outra que adoro mas não me recordo agora do nome. Mas adoro, adoro séries de televisão. E sabe, é perigoso dizer isto enquanto autores, mas às vezes as séries de televisão roubam-me o tempo que tenho para ler [risos]. Tenho de me portar bem e obrigar-me a não ver tantas séries.

Gostava de ver Louise Rick numa série de televisão?
Foi uma opção desde o primeiro livro, vai não vai, e agora parece que pode acontecer. Tenho de ser honesta, li argumentos que não eram mesmo bons. Houve uma altura em que se pensou fazer uma série passada em Nova Iorque, mas estava a ser tudo tirado do contexto. “Para quê usar Louise Rick se é tudo tão diferente? Porque é que não criam o vosso próprio material?”. Mas agora o plano é rodar na Dinamarca e depois transmitir em todo o mundo.

Faz muito mais sentido ser rodado na Dinamarca.
Exato. A produtora que detém agora os direitos começou por dizer para rodarmos no Canadá ou na Irlanda, para ser mais parecido com o ambiente nórdico. E o realizador respondeu: “Está bem, então e porque é que não simplificamos e vamos para a Dinamarca?”. O plano é que deve ser transmitido em 2020. Mas vamos ver o que acontece.