Rui Maria Pêgo já não é o menino da rádio. O comunicador, que se estreou há 14 anos nas ondas hertzianas, está de volta a Portugal e à rádio, mais maduro, com um novo programa. Na nova rádio, o podcast, mas na mesma casa de sempre, a Comercial. "Debaixo da Língua" marca o seu regresso, quase dois anos depois do fim de "Era o Que Faltava".

Em entrevista à MAGG, o comunicador de 34 anos faz um balanço do período em que viveu no Reino Unido, onde esteve a estudar representação na Bristol Old Vic Theatre School.  Decidido a apostar na carreira de ator, já gravou uma série para a RTP, "Prisma" e encontra-se na fase de gravações de outra. Desde os 19 anos, desde os tempos da SIC Radical e do "Curto Circuito" até agora, Rui Maria Pêgo já fez de tudo: passou por duas rádios, pelos três canais generalistas, foi apresentador, ator e até autor de uma série "Filho da Mãe", onde satirizou o facto de ser filho de uma celebridade (os pais são Júlia Pinheiro e Rui Pêgo). O que falta fazer agora?

Estava com medo de regressar à rádio, desta vez a solo?
Não exatamente com medo mas com a noção de que a responsabilidade é diferente. Fazer um programa diário de entrevistas numa rádio nacional, em direto, tem uma responsabilidade gigante acrescida de teres que medir as coisas que decides fazer, que têm um impacto no público que está a ouvir. Outra coisa é fazer um podcast que, à partida, tem um peso diferente, sobretudo porque é, no limite dos limites, uma emanação artística minha. Eu posso decidir que é assim, desta forma. Talvez não me dê medo mas dá-me uma sensação de ‘ah, isto sou mesmo eu’. Tenho total liberdade autoral para entrevistar quem me apetecer. Medo não será a palavra mas enorme respeito.

Como é que aconteceu este “Debaixo da Língua”?
Eu fui-me embora não exatamente porque não quisesse estar na rádio. Um dos meus sonhos de carreira era trabalhar na Rádio Comercial. Consegui isso e tive a sorte de fazer este percurso mas depois apercebi-me de que queria fazer outras coisas. Depois foi também um timing de idade. Eu tinha 32 anos quando entrei na escola e quis-me ir embora. Enquanto estive lá mantive sempre contacto com as pessoas da rádio e cheguei pontualmente a entrar em antena. A conversa com o Pedro [Ribeiro, diretor da rádio Comercial] foi sempre constante. Nós fomos vendo, ao longo do tempo, como é que podia fazer sentido eu estar ligado à rádio. Não só adoro fazer rádio como acho que, em 2023, as maneiras de fazer rádio são muito diferentes. Não faria sentido cortar um vínculo que é feliz. Eu sabia que vinha a Portugal, as coisas começaram todas a juntar-se e foi uma espécie de bebé in vitro, demorou imenso tempo a chegar às pessoas.

Das quatro conversas já disponíveis [nr: a entrevista foi feita antes da publicação da entrevista a Marco Martins], qual foi a mais desafiante?
São quatro universos muito diferentes e parte da ideia do programa é eu entrevistar pessoas por quem tenho uma enorme curiosidade. O Fábio Porchat é uma espécie de cavalo selvagem, é o convidado perfeito. Precisa de muita energia. Tu dizes ‘olá’ e ele já te fez o programa. Tinha muita curiosidade em conhecê-lo melhor e, quando gravei a conversa, ainda estávamos a tentar descobrir qual era o formato. Os programas de rádio demoram a transformar-se, a chegar a um ponto de rebuçado em que percebes exatamente ao que vais. Os programas são um organismo vivo, impactado pelo contexto que estamos a viver, pela maneira como aquela pessoa chegou ao estúdio e pela minha, pelo que agora me desafia ou não. Entrevistar o professor Daniel Sampaio sobre os relatos muito difíceis e muito violentos sobre os abusos sexuais na Igreja Católica também não foi fácil mas, ao mesmo tempo, conversas em que eu tenho uma ideia clara do que quero retirar delas, às vezes são mais fáceis, no sentido em que eu sabia muito bem porque é que o tinha convidado.

Como é que sente que está diferente enquanto comunicador?
Oiço mais. Eu percebi algures, no início do "Era o que Faltava" e, se calhar, antes, quando estava na Mega Hits, que a pergunta seguinte vem sempre no silêncio do entrevistado e do que não está a ser dito. Eu passei um ano e meio a aprimorar uma série de coisas dessa natureza. Estive a fazer muito trabalho que tinha não só que ver com a importância das palavras mas também com quem eu era no universo artístico, que era uma coisa que eu não sabia. Ainda estou a descobrir, estou na infância desse processo. Eu venho diferente no sentido em que há uma lógica de persona, que é natural existir num programa de rádio ou de televisão, que eu tenho cada vez menos vontade de alimentar. Uma das coisas que me diziam na escola era "you have a presenter self and we have to kill him" ["tens um 'eu' apresentador e temos de matá-lo"].

O que eles queriam dizer com isto era que o espaço de tu seres um ator ou um apresentador que não está preocupado com as consequências é uma coisa que é complicada para quem está treinado desde os 19 anos a preocupar-me com o impacto que um programa de entretenimento ou mais informativo pode ter. Eu venho diferente e o exercício para mim é como é que eu posso conciliar estas duas coisas. Não tenho muita vontade de ficcionar nada porque a verdadeira ficção é verdade, está a acontecer em palco. Estou diferente no sentido em que agora não estou com muita vontade de puxar por uma persona que é mais ou menos likeable. Estou numa fase de ser o mais honesto possível e de fazer as perguntas que me interessam e que, muitas vezes, também interessam a quem está a ouvir.

"A rádio e os podcasts têm uma coisa que a televisão não tem: só começas a ter preconceitos passado algum tempo"

Ouvimos, muitas vezes ad nauseam, a expressão "isto não é uma entrevista, é uma conversa", às vezes para justificar a falta de preparação do entrevistador. O Rui está sempre muito bem preparado e mostra, mesmo sem dizer nada, que sabe quem é aquela pessoa e o que é que ela fez.
Não me passa pela cabeça ter à minha frente uma pessoa e eu não saber nada sobre ela. Acho que um dos problemas, hoje em dia, é um certo facilitismo na maneira como as coisas estão construídas. Quanto mais eu souber e quanto mais eu mantiver viva a minha curiosidade, melhor vai ser o meu trabalho no sentido de ajudar aquela pessoa a comunicar alguma coisa que nós não saibamos. Estas pessoas já foram entrevistadas milhares de vezes mas há um sítio sobre o meu encontro com a Carminho, que tem que ver com as minhas preocupações que, espero eu, traga alguma coisa de diferente. Eu concordo com o que disse, que essa expressão é, muitas vezes, levada à náusea, mas percebo o que está por detrás dessa frase.

Existiu durante muito tempo um formalismo que era um bocado chato. Acho que aquilo que acontece hoje em dia - e porque as pessoas têm muito mais vocabulário e sabem verbalizar muito melhor o que sentem e aquilo em que acreditam - acaba por ser muito mais interessante não imprimir uma lógica jornalística o tempo todo. Isto também tem que ver com experiência. Eu tenho muitas horas de entrevistas, de diretos e faço isto há muito tempo. Há ali um amadurecimento do que é a minha visão. Mas confesso que, quando comecei a fazer este programa, o meu problema era "qual é a minha visão?" e eu ainda não sei exatamente. Estou à procura ainda, nas entrevistas, de descobrir alguma coisa que interesse porque, hoje em dia, há um mar tal de podcasts e de programas de televisão que tens de oferecer alguma coisa que seja diferenciadora.

O seu podcast chegou ao top 10 dos mais ouvidos, um top dominado por formatos de humor. Isso dá-lhe uma satisfação extra?
Chegar ao top 10 é muito bom, fico muito contente, mas sei que também tem que ver com o facto de estar na Rádio Comercial, que é a rádio mais ouvida. Também houve uma confluência de fatores: eu não faço nada há muito tempo, estive fora e há uma curiosidade adicional. Dá-me prazer saber que as pessoas querem ouvir conversas e ouvir pessoas a revelar quem são. Há um perigo, neste tempo, que é o do cinismo, o da falta de ligação às coisas. Já sabemos todos tudo, temos muito mais informação do que tínhamos há 10, 20 anos. É bom saber que as pessoas pararam para ouvir uma entrevista e se surpreenderam. Eu não tenho a veleidade de achar que os programas de rádio ou de televisão transformam. Acho que ajudam a haver algumas mudanças. A rádio e os podcasts têm uma coisa que a televisão não tem: só começas a ter preconceitos passado algum tempo. Tu não tens uma ideia pré-concebida sobre quem estás a ouvir, o que permite que as pessoas sejam muito mais autênticas e que tenhas mais capacidade de absorver o que está a ser dito. Daí a importância de haver rádios com força e de haver rádios só de palavra em Portugal.

"É inevitável que haja preconceitos sobre mim ou sobre alguém que tenha visibilidade"

Porque é que decidiu voltar de Inglaterra?
Primeiro, porque ficar em Inglaterra sem estar a trabalhar custa os olhos da cara (risos)! Eu poupei os últimos anos para pagar o curso e a minha vida lá, que não foi nada barato. Os estrangeiros pagam o dobro do que os ingleses pagam nestes cursos. É uma escola ótima, é tudo fantástico, adoro o Reino Unido mas o Brexit é uma coisa muito complicada de gerir e tem umas coisas insidiosas do dia a dia e que tem que ver com a maneira como se lida com a imigração. Eu adoro o Reino Unido, tenho agente lá, acabei a escola e fiquei muito feliz porque a Bristol Old Vic Theatre School é uma escola com uma reputação extraordinária. Os únicos portugueses que lá andaram foram o Luís Miguel Cintra e a Glória de Matos, não há assim uma tradição e é uma escola onde me senti muito acarinhado. Mas depois, quando acabei, tive de orientar a minha vida.

Tinha a noção que precisava de voltar para casa, para reorganizar a minha vida e perceber quais seriam os meus próximos passos. Estou agora a gravar uma série para a RTP e, agora, a ideia é estar nos dos sítios. Tenho o visto, tenho que o usar e também faz parte daquilo que eu quero que seja a minha vida. Quero que a minha vida seja surpreendente. Isso parece uma coisa um bocadinho indulgente e que só algumas pessoas que têm muito privilégio podem fazer  - e não é absolutamente mentira. É preciso privilégio para poder mudar de vida. Mas também, ao mesmo tempo, é importante percebermos que quem tem as escolhas, muitas vezes, somos nós, e às vezes, temos medo de ir. Estou a tentar fazer essa dupla vida, não com um segredo mas à frente de toda a gente, e acho que está a ser fixe.

"Eu queria poder estar à vontade para me desgrenhar numa sessão em que estou a fazer de texugo e não estar preocupado, como me acontecia quando eu estava em História na faculdade, onde me filmavam nas aulas."

Como é que foi, aos 32 anos, viver sozinho e num país que não é o seu?
Eu senti uma coisa muito estranha. Eu tenho pânico de estagnar, tenho pânico das águas paradas. Podia alegremente continuar a fazer o meu programa aqui, onde era feliz, ou podia desafiar-me verdadeiramente. Tive uma experiência muito feliz no Old Vic mas nunca tinha feito parte de uma companhia de atores. Foi muito assustador de início. Acho que sou moderno e progressista mas às vezes, não. Foi bom ter os confrontos com outras realidades e maneiras de viver. Foi importante perceber o Reino Unido e, mais importante do que tudo era eu dar-me tempo para poder transformar-me no que eu quisesse. E foi um bocado um presente para mim mesmo. Poupei durante muito tempo. Já tinha tentado entrar noutras faculdades norte-americanas e ainda bem que não entrei porque são impagáveis, não temos capacidade financeira em Portugal para pagar Juliard, NYU ou Yale (que por acaso agora é de borla) mas são cursos muito caros e muito longos. Acho que acabou tudo por fazer sentido. Foi assustador no sentido em que eu parti de um sítio em que trabalho há não sei quantos anos e chego, de repente, a um planeta onde ninguém quer saber sobre mim. Eu sou o outro, nem sequer sou inglês, e isso foi uma aprendizagem que foi muito importante.

Como foi a experiência de afastar-se do nosso star system, em que as pessoas sabem quem é, e ser um anónimo no meio de anónimos?
Foi tudo o que eu queria! Sou filho de pessoas que têm carreiras há muito tempo em Portugal. Eu podia ter tentado entrar no conservatório em Portugal e podia fazer o percurso por cá, mas sabia que só podia ser visto de forma completamente justa se estivesse fora do País. É inevitável que haja preconceitos sobre mim ou sobre alguém que tenha visibilidade. Eu queria muito estar longe do pequeno star system português. Queria não ter a pressão de ter que executar alguma coisa, de ter cuidado com o que estou a dizer e poder estar à vontade para me desgrenhar numa sessão em que estou a fazer de texugo e não estar preocupado, como me acontecia quando eu estava em História na faculdade, onde me filmavam nas aulas. Não tenho muita paciência para esse lado das coisas. Aliás, o "Filho da Mãe", a série que eu fiz, era a gozar com todo esse universo tão absurdo.

Acho que não saber sair da festa é um problema. É importante saber quando é que já chega. Não há nada pior do que as pessoas ficarem agarradas, não se poderem libertar de um trabalho que odeiam. É muito difícil as pessoas não poderem libertar-se das circunstâncias da vida para poderem transformar-se noutra coisa. Eu poder ter tido essa possibilidade longe de olhares e da pressão de ser vagamente conhecido faz com que eu tenha tido uma experiência muito feliz.

Descobriu alguma coisa que não sabia sobre si por causa desse cuidado com o olhar do outro?
Acho que pude ser eu sem grande preocupação se era demasiado loud [ruidoso], se era demasiado exuberante porque não só ninguém quer saber mas porque o Reino Unido está 20 anos à frente no que são os direitos LGBT e os direitos humanos. 17 milhões de pessoas no Reino Unido identificam-se como sendo parte da comunidade LGBTQI, estamos a falar de milhões de maneiras de ser. Eu não sou nada diferente. De repente, em Portugal, eu usar verniz nas unhas ou estar não sei onde com uma roupa mais espampanante chama a atenção, lá ninguém olha porque eu sou a pessoa menos espampanante da sala. Mas, ao mesmo tempo, do ponto de vista que era o trabalho, tinha uma ideia de que tinha algum potencial para ser ator e que devia apostar nisso. Depois, é bom estares numa escola conceituada e que te legitima e te ensina coisas que te fazem querer 'ah, espera, isto também é para mim'. Eu percebi que Shakespeare também é para mim, que não me está vedado, e muito menos em inglês. Fui-me vendo de fora, às vezes, e pensado 'ah, eu não estava enganado, se calhar só precisava de estar noutro contexto'. E claro que agora estou com uma visão super romântica de tudo o que é teatro e cinema, para grande humor dos meus amigos, que trabalham nisto há 200 anos e ficam... 'ah, ok' (risos).

Se calhar, estão demasiado céticos. Às vezes um bocadinho de romantismo também é bom. 
Acho que às vezes, não é só ser cético. Acho que conservo algum romantismo e vontade de trabalhar mas também conheço demasiado bem o universo das rádios e das televisões para achar que isto é um mar de rosas. É tudo menos um mar de rosas. Em Portugal, acho que a rádio é, muitas vezes, mais inovadora do que a televisão. E eu adoro fazer televisão. Olho para a televisão e não está muito diferente do que estava há 20 anos e isso preocupa-me. Não só o meio está a tentar sobreviver e tenta fazer o que pode com os recursos que tem, da publicidade e etc, mas acho que há tantas maneiras de fazer televisão, tantas maneiras de fazer rádio, tantas maneiras de fazer teatro. Acho que também por termos medo de descobrirmos quem somos de outras maneiras, e às vezes isso é o que faz com que as pessoas sejam agressivas ou resistentes à mudança, replicamos fórmulas que são desinteressantes na maior parte das vezes.

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Olhando para o panorama atual da televisão portuguesa, excetuando a ficção, via-se a fazer alguma coisa?
A ficção está num bom momento e é interessante perceber que há evolução. Há a OPTO, cada vez mais a Netflix e a HBO estão a produzir conteúdos em português. O cinema português, embora faça poucos filmes por ano, consegue ir ao festivais e ganhar, e consegue nomeações para os Óscares. Há uma produção que prova que, quando as pessoas trabalham no seu olhar, há coisas interessantes que podem surgir daí. Mas respondendo à sua pergunta: neste momento, como apresentador, não há nada de especial que me apeteça fazer. Adorava fazer um concurso, adora fazer "O Elo Mais Fraco" e há muito mais programas na BBC que eu adorava fazer. Obviamente que o programa do Ricardo Araújo Pereira é ótimo e eu adoro aquele formato. O meu sonho, durante muito tempo, era fazer um caminho como o do Jon Stewart, e agora que estou a ver o programa dele na Apple Tv +, penso 'quem me dera fazer isto!'. Mas esse tipo de televisão é tão cara e vai sempre para os mesmos que tenho alguma dificuldade em acreditar que me vá acontecer nos últimos 10 anos. Se calhar estou enganado. Em Portugal arrisca-se pouco e investe-se menos na mudança o que, a longo prazo, é prejudicial.

"Acho que nos fazia falta irmos para rua mais vezes e também exigirmos coisas dos nossos governantes"

Onde se traça a fronteira entre o 'sou um adulto' e o 'sou bué jovem'? Porque, durante muito tempo, o público associou-o a essa ideia, associada ao "Curto Circuito". Já fez o funeral dessa persona?
Por acaso, acho importante irmos fazendo funerais às nossas versões e tentar ficar em paz com elas. Por exemplo, eu não gosto de dar entrevistas televisivas porque fica ali uma espécie de emanação para o resto da vida de um momento em relação ao qual eu vou mudar de ideias. Ainda por cima eu sou um bocadinho contundente, como se tivesse a certeza sobre as coisas e não tenho nada. Vou fazendo. Eu fiz um percurso longo em rádios e canais para jovens. Comecei na SIC Radical aos 19 anos, saí da Mega Hits com 30. Tive 11 anos de festivais, de fazer perguntas como 'com quem andas a namorar? com quem vais sair logo à noite?'. Essas coisas que, embora a Mega seja um produto altamente competitivo, tenho a noção de que também eu fui mudando.

No "Era o que Faltava" eu já era cada vez mais essa pessoa, esse comunicador mais adulto. Vejo estar no ar como uma grande responsabilidade. E isto não é levar-me a sério, é levar o que faço muito a sério. Tenho a perfeita noção do impacto que é eu trazer alguém que não tem visibilidade nenhuma e que vai dizer coisas que são contundentes e que rasgam as perceções das pessoas que ligam a Rádio Comercial à espera de ouvir Rihanna e ouvem um debate sobre pós-colonialismo. Esse caminho da minha sofisticação enquanto comunicador também vai muito no início. A grande tragédia destas últimas gerações é que não tem hipótese de fazer. Como não tem hipótese de fazer, não se encontram nos sítios, não sabem quem são, não se podem sofisticar. Eu só me pude transformar numa coisa diferente do que era porque me mantive no ar e porque tive hipótese de continuar a experimentar e a descobrir.

Nós temos esta ideia de que Portugal é um país pacífico, que não há racismo e que lá fora é que estão todos os males do mundo. Tendo tido a experiência de viver num país que, apesar de ter sido fundador da democracia moderna, vive uma realidade muito extremada, a nossa realidade é assim tão fofinha?
Eu diria que sempre houve clivagem, sempre houve desigualdade, sempre houve violência, sempre houve racismo. É impossível não haver racismo num País que teve um império colonial que durou 500 anos. Não acreditar que o racismo estrutural existe é não estar a ver bem as coisas. E também é um reflexo do nosso privilégio acharmos que não existe. O Reino Unido é um país muito difícil e não é por ser um dos países mais ricos do mundo que é um oásis. Há uma enorme dificuldade de ascensão social, tem racismo latente mas, ao mesmo tempo, tenta resolver esses problemas e há muitos mecanismos para resolver esses problemas.

Em Portugal, o que é mais insidioso é que não há mecanismos para resolver essa desigualdade que, muitas vezes, é completamente transversal. Em Portugal há muitos pobres e há muitas pessoas próximas da pobreza. Com os aumentos dos preços, com a crise na habitação, é uma realidade tudo menos fofinha. Nós temos sempre esta teoria: se eu não verbalizar que isto está difícil. 'Ó pá, mas temos o sol e a comida'. Sem dúvida e acho que nós não temos a agressividade latente que os franceses têm, que pegam fogo a coisas se não há um aumento no salário. Mas acho também que nos fazia falta irmos para rua mais vezes e também exigirmos coisas dos nossos governantes. Em Inglaterra, existe uma ideia de comunidade, que cá há menos, e de uma comunidade que se entreajuda. Somos mais passivos... até ao dia. Acho que a realidade portuguesa é ainda mais triste porque sabes que, como as pessoas ganham muito mal, as casas estão cada vez mais caras e é muitas vezes nesta tristeza de tu sentires que não consegues mudar a tua vida que nasce um descontentamento que começa a invadir outras esferas da vida. Ainda não vimos nada tremendamente horrível, e espero que não cheguemos aí, porque Portugal é um país incrível com pessoas extraordinárias.