Do outro lado da linha, num contacto que a pandemia ainda obriga que seja à distância, Rui Sinel de Cordes atende o telefone. Quem lhe ouvir a voz, não reconhece mazelas de maior deixadas por um estado de saúde débil devido a duas hérnias nas costas que, durante algumas semanas, o paralisaram. Pelo meio, uma pandemia, salas de espetáculos a meio gás e muitas dores durante os espetáculos que foi fazendo. Na tentativa de procurar alternativas a estar parado, virou-se para o streaming através do lançamento do CordesFlix — uma espécie de Netflix, mas com conteúdo produzido pelo próprio e distribuído sem intermediários.

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A ideia, no entanto, não é nova e o surto do vírus só antecipou o lançamento de um projeto que estava planeado "há, pelo menos, dois anos", e que terá ganho força quando o seu sétimo espetáculo a solo, "Memento Mori", foi exibido na TVI em agosto de 2019. "Foi fixe, claro, mas custou-me um bocado ver aquilo a ser transmitido na TVI cheio de intervalos pelo meio", explica à MAGG.

Além dos intervalos, também a qualidade de transmissão não tinha sido preservada e a experiência estava longe de se aproximar daquela que se tinha verificado em sala. "Não sei de quem é que foi a responsabilidade, mas, na altura, foi feita uma conversão estranha do ficheiro que nós enviámos e cortou-se ainda dois dos ecrãs laterais [presentes na sala] que lixaram piadas."

Foi a partir desse momento, conta, que começou a pensar numa solução para partilhar os seus próximos solos, até mesmo para dar acesso a quem vivia no estrangeiro e que, até então, não tinha forma de ver o trabalho do humorista. "Estava mais ou menos previsto arrancarmos com isto em janeiro ou fevereiro de 2021, mas acabou por acontecer mais cedo para que não ficasse o ano inteiro parado. Foi um ano muito custoso para todos, mas também para mim."

A pandemia, a dor que o paralisou e a alternativa a estar parado

No início do surto do novo coronavírus em Portugal, as salas de espetáculo fecharam e, quando voltaram a abrir, as recomendações das autoridades de saúde exigiam a metade da lotação. Fazer espetáculos nesse contexto é, nas palavras de Sinel de Cordes, "muito duro". A essa dificuldade aliou-se uma dor lombar, decorrente de duas hérnias, que durante algumas semanas o paralisaram e obrigaram a estar em repouso em casa. Mais tarde, ainda com dores, Rui Sinel de Cordes subiu aos palcos com uma cinta de ferros verticais vestida e sem nunca cancelar espetáculos.

Rui Sinel de Cordes

"Foi isso que me safou, que me aguentou durante uns tempos", explica. O suficiente para conseguir terminar os espetáculos ao vivo de "O Início", o seu novo solo, em novembro. Terminada a tourné, o País tinha agora os olhos postos num novo confinamento, ainda que parcial. E o CordesFlix surge como uma alternativa a uma "proposta que estava a ser feita" e que, para Sinel de Cordes, "não era assim tão boa".

"Não sou de consumir transmissões em direto ou concertos nas redes sociais. Numa altura em que as pessoas estão em casa, não me parecia que esse tipo de conteúdo, como concertos ou entrevistas, fosse uma grande oferta de entretenimento. Ficou claro que o ideal seria construir uma plataforma que nos permitisse trabalhar à vontade e fugir dos likes, dos comentários e das visualizações. Isso não interessa nada e era importante para mim tomar algum tempo para construir algo que considerasse bom e que não entrasse nessa guerra", explica.

Por isso, os conteúdos a fazer parte da plataforma digital do humorista incluem todos os seus espetáculos a solo e outros dois formatos pensados e idealizados pelo próprio. É o caso de "Duetos", uma série de conversas com figuras como Hugo Sousa, Rui Cruz, Salvador Martinha ou Pedro Tochas; e "Prisma" — um formato em que o humorista dá a sua perspetiva sobre temas como a legalização da canábis, monogamia, o sistema prisional português ou a indústria do sexo.

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A 25 de dezembro, no dia de Natal, são lançados os quatro primeiros episódios de "Prisma" e "Duetos", e a 15 de janeiro os restantes quatro de cada. Fica apenas a faltar o "Memento Mori", cujos direitos de transmissão pertencem à TVI até agosto de 2021.

Apesar de se assemelhar a uma plataforma de streaming como as que já estão em funcionamento no mercado, o CordesFlix não exige subscrição e funciona em regime de pay-per-view. Isto significa que o utilizador paga apenas aquilo que quer ver, e há três planos disponíveis: o X (10€, para quem quer ver "Prisma" e "Duetos"), o XX (14€, "Prisma" e "Duetos" mais solos) e, por fim, o XXX (16€, com o mesmo tipo de conteúdos dos anteriores e extras, como conversas de bastidores ou bloopers).

A pandemia e valorização da cultura

Sobre se o facto de o CordesFlix surgir em pandemia ser um reflexo de uma aparente valorização do público pela cultura portuguesa, Sinel de Cordes tem dúvidas. "Há muitas maneiras de olhar para isto. Os espetáculos que fiz após o início da pandemia, com as salas a 50%, mostraram-me que as pessoas estavam, de facto, muito gratas por estar a fazer aquilo. Senti que era uma hora e tal que era muito importante na vida das pessoas e muitas delas diziam-me que nem sabiam o quanto precisavam daquela hora para sair de casa e espairecer."

Mas tenho a certeza de que o farão a artistas que comecem a produzir o seu conteúdo ou a divulgá-lo desta forma", um pouco à semelhança do que Bruno Nogueira, por exemplo, fez com o espetáculo "Depois do Medo" — que esteve disponível para aluguer em dezembro.

"As pessoas estavam habituadas a conteúdos online de graça e ainda estão, mas hoje sinto que é diferente. Ainda não tive uma única pessoa do meu universo de seguidores a fazer um qualquer comentário depreciativo sobre o lançamento do CordesFlix", continua.

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Sobre o que esperar para o futuro da plataforma, Rui Sinel de Cordes não sente pressão. "A minha grande prioridade é fazer espetáculos. 'O Início' foi um espetáculo grandioso e quero que o próximo ["É o Fim"] seja igualmente bom. Mas já no próximo ano terei esses dois solos para pôr na plataforma. Quem sabe se não poderão surgir mais conteúdos e mais 'Duetos', por exemplo."

O humorista encara o seu novo site como "um canal" no qual lhe é permitido interagir diretamente com quem lhe acompanha o trabalho e perceber, por isso, "a vontade das pessoas". Mas ressalva que a sua "grande prioridade é escrever espetáculos" e é a isso que se dedicará e que, posteriormente, poderão acabar a ser publicados no CordesFlix.