Quando a SIC se decidiu aventurar no streaming, sabia de antemão que era na ficção que teria de mostrar trabalho para, talvez, tentar aliciar subscritores à sua plataforma, a OPTO SIC, num mercado já dominado por outras semelhantes. Talvez porque os dados recentes revelam que, em plena pandemia, os portugueses viraram-se para o streaming e para as dezenas de séries e filmes disponíveis nos vários catálogos. Para isso, deixou às mãos das argumentistas Patrícia Müller e Vera Sacramento a responsabilidade de se inspirarem numa história real para criar "A Generala", sobre uma mulher — Maria Luísa — que não se sente confortável no seu corpo e que, por isso, forja a sua morte para poder viver como um homem, adotando uma nova identidade e o nome de Otávio.
Agora que a série está feita e estreada, Patrícia Müller diz, em entrevista à MAGG, que escrevê-la tratou-se de um "profundo processo de aprendizagem" sobre quem, de facto, sente a dor de não lhe ser concebido o direito de ser quem é.
"Depois deste projeto, há uma coisa que nunca serei capaz de esquecer: a noção absoluta do que é uma pessoa sentir-se completamente deslocada dentro do seu corpo", explica. E isso é sublinhado quando, ao longo da série, Maria Luísa — numa primeira fase interpretada por Carolina Carvalho e depois por Soraia Chaves — diz, por diversas vezes, que é um homem.
Essa aprendizagem, diz Müller, decorre também de muitas conversas com Vera Sacramento, que estudou o tema da disforia de género e deu corpo à luta pela liberdade da personagem nesta série.
Uma história sobre disforia de género
"Essa questão, a da disforia de género e da transexualidade, vai evoluindo ao longo da história. A maioria das pessoas que veja o primeiro episódio não percebe muito bem o que vai crescer ali e isso também foi intencional porque não quisemos explorar, logo ao início, essa temática. Há, em Maria Luísa, uma inadaptação que é sentida desde muito cedo, mas só no decorrer da história é que essa perceção é tornada clara de que estamos a seguir os passos de uma mulher que se sente desconfortável e aprisionada dentro de um corpo com o qual ela não se identifica", explica Vera Sacramento.
É essa noção de uma "certeza interior que vai contra o mundo" que dá, nas palavras de Patrícia Müller, toda uma "violência à história". "Aquela mulher tinha um segredo só dela que era muito violento e lhe trouxe angústias, culpa e interrogações várias. O perigo, neste caso, é a sua identidade que vai sendo construída em cima de um tabu profundo", conta.
Sobre se a transição de Maria Luísa para Otávio representa, de alguma forma, uma emancipação pessoal, Sacramento diz que o termo pertence a outro plano e prefere antes falar numa "necessidade premente e desesperada" de a personagem conseguir, por fim, a liberdade que sempre lhe foi negada durante a infância e a adolescência.
"O facto de Maria Luísa ser criada por uma mãe completamente austera e que não lhe permitia qualquer liberdade, levam-na a ter essa ânsia de se libertar". Não é por acaso que, no segundo episódio, há um deslumbramento da personagem que, chegada a Lisboa, vê as montras e as roupas de homem num momento de "libertação total".
"Não falaria em emancipação, mas sim numa necessidade premente e desesperada de conquistar liberdade para, aos poucos, poder ser capaz de perceber quem é. Porque no meio do ambiente hostil em que cresceu, e devido à violência que a envolvia, provocada por uma mãe castradora, não era possível perceber a origem do seu desconforto", continua.
A tragédia de toda esta história está no julgamento a que Otávio é sujeito: em primeiro lugar, nos tribunais por pequenas burlas; e na praça pública por ser quem é. "É por isso que todo o julgamento é muito quente e o próprio Otávio reforça isso quando diz que não está a ser julgado pelas burlas que cometeu, mas por ser uma mulher vestida de homem, considerada uma aberração por muitos dos presentes", refere Müller.
O apelo à empatia e ao "direito à diferença"
E não tem dúvidas de que essa é só uma "das prova da luta eterna que esta mulher teve de travar ao longo da sua vida, desde que nasceu até que morreu, para ser aceite como ela queria ser." Mas embora se inspire em factos reais, Vera Sacramento sublinha que há uma "diferença muito grande entre adaptação e inspiração".
Isto porque, defende, "A Generala" é, acima de tudo, um produto inspirado na realidade, na medida em que "há uma percentagem de criação altíssima" e em que o grande desafio foi "perceber o rumo da história" através da seleção de temáticas que, enquanto pessoas, lhes interessavam contar. E foi um "desafio", nas palavras de Patrícia Müller, não só porque podia não ter corrido bem, mas também por se tratar de um "caso de sorte".
"Foi um trabalho muito curioso porque se não tivéssemos tido os ingredientes todos, e tiro o chapéu a toda a equipa que foi capaz de realizar, filmar e produzir esta série em plena pandemia com muitos constrangimentos, facilmente poderia ter dado para o torto. No meio desta tentativa de querermos mostrar uma realidade muito estranha — aos olhos de quem não a entende — podia ter corrido super mal porque as pessoas não se vão identificar com esta história no sentido mais óbvio."
No entanto, Patrícia Müller e Vera Sacramento esperam que qualquer pessoa que se sinta "deslocada da sociedade" possa, pelo menos, sentir-se representada e comovida com os obstáculos interpostos à personagem principal. "Nesse sentido, é um trabalho que apela à empatia e ao direito à diferença", conclui Müller.
"A Generala", realizada por Sérgio Graciano, conta no elenco com nomes como Victoria Guerra, José Fidalgo, Ricardo Pereira, Soraia Chaves, Anabela Moreira, António Capelo, Carolina Carvalho, Vítor Norte e Isabel Ruth. O primeiro episódio da série estreou-se a 24 de novembro, altura em que o serviço da OPTO SIC foi disponibilizado a todos o utilizadores. No total, a série é composta por seis.