Um dos modelos da novela portuguesa dita que, por mais problemática que seja uma das famílias da história, é quase certo que numa das cenas da narrativa, essa família acabe sentada à mesa para tomar o pequeno-almoço e conversar. É frequente que esse convívio seja marcado pela discórdia e pelos momentos de pura tensão enquanto as personagens barram a manteiga no pão, sorvem o seu sumo de laranja e aguardam, calmamente, para tomar a palavra. E nunca falando umas por cima das outras.
Mais do que um objeto banal, a mesa é um local de proximidade que serve como mecanismo de avanço narrativo para que as personagens dialoguem, exponham problemas, façam revelações, confissões ou transmitam informações que podem ir do supérfluo ao mais dramático.
Esta é, aliás, a ideia defendida por Pedro Boucherie Mendes, entusiasta de televisão e diretor da SIC Radical , no seu livro "Ainda Bem Que Ficou Desse Lado".
"Nas novelas, [as personagens] comem o pequeno-almoço sentadas à mesa porque a mesa serve como arena para que uns falem com outros, terceiros escutem e nós, espectadores, possamos assistir a tudo. As refeições são momentos preciosos como dispositivo de continuidade narrativa para os argumentistas", explica.
E continua: "Nos pequenos-almoços, há várias vantagens e que se dane se é inverosímil haver tanta gente calmamente sentada à mesa de manhã. A cadência de chegada e saída de personagens ao pequeno-almoço possibilita confidências, reparos, partilha de regressos ou outras informações com o espectador a testemunhar tudo, salivando por mais intriga."
Além da proximidade que potencia, é conveniente. Num meio em que há pouco dinheiro e o tempo é curto para as centenas de cenas que têm de ser gravadas, juntar todas as personagens numa mesa e fazê-las avançar a história apenas com base no texto é o segredo de ouro de qualquer argumentista. Mas quando a pandemia exige distância como medida de prevenção, como é que se circunda o problema?
A decisão da TVI passou por, apoiada nas recomendações da Direção-Geral da Saúde, fazer retomar a normalidade nos estúdios da Plural Entertainment apostando em kits de máscaras comunitárias e luvas para todos os profissionais (dos técnicos de câmara e som aos atores), reforçando a desinfeção das mãos e monitorizando, duas vezes ao dia, a temperatura corporal de todos os colaboradores — nunca descurando a distância de segurança, à frente e atrás das câmaras.
O "novo normal", um chavão que cada vez mais fará parte do vocabulário português, passa agora pelos dispensadores de gel desinfetante, rostos escondidos por máscara e medições regulares da temperatura não vá o diabo tecê-las. Mas muito antes de se pensar numa retoma da ficção, independentemente do formato, já o entretenimento dava passos no sentido de retomar alguma da normalidade.
Numa primeira fase, por exemplo, o "Big Brother 2020" estreou-se na TVI com todos os participantes separados e em isolamento e cuja interação estava limitada apenas às videoconferências. Enquanto isso, os restantes profissionais, encarregues de levar aquele formato à televisão, estavam em isolamento para garantir que não corriam o risco de ser infetados e de propagar o vírus assim que os concorrentes pudessem entrar na casa mais vigiada do país — o que acabou por acontecer duas semanas após a estreia.
Para Albano Jerónimo, que falou com a MAGG acerca do futuro da indústria, o retomar da normalidade na televisão e no cinema passará exatamente por aí: por remeter os colaboradores ao isolamento pré-gravações e, quiçá, a uma quarentena restrita durante a rodagem.
"A televisão, por ser a única indústria do audiovisual em Portugal, é quem vai ter de dar uma resposta mais rápida para este problema enquanto não surgir uma vacina. Sei por colegas meus, que estão a trabalhar em várias novelas de vários canais, que as estações estão a obrigar os seus atores e técnicos de câmara e produção a fazerem um teste antes das gravações arrancarem. E todos vão ser obrigados a um isolamento restrito durante o período de trabalho", revela.
É assim que funcionará em Portugal e, garante, será esse o modelo replicado pelas "Netflix e HBO da vida". O cinema terá de passar pelas mesmas regras, embora não com tanta urgência. A preocupação do ator recai sobre o teatro que, explica, deverá ser a arte que mais vai sofrer enquanto não se materializar uma vacina contra o novo coronavírus.
"A sala Garrett, por exemplo, leva cerca de 500 pessoas com uma lotação completamente esgotada. Tendo em conta as novas normas de segurança para o combate ao vírus, passará a levar apenas 75 pessoas. Estamos a falar de uma realidade completamente ao contrário, de pernas para o ar." E quantos técnicos, produtores e fazedores de arte sobreviverão à espera? Essa é a questão para um milhão de euros.
"Quantos não serão obrigados a mudar de profissão? Quem sobreviver, terá na televisão uma perspetiva segura porque o meio continuará a ser uma fonte de rendimentos fantástica e uma perspetiva de trabalho duradouro. Ainda que, para mim, se mantenha numa perspetiva de trabalho sempre a curto prazo", explica.
Mas como é que se escreve uma novela quando a proximidade tem de ser cortada de raiz? É que na conjuntura atual, cenas como a de um pequeno-almoço em família deixam de ser possíveis. Quem o diz é Rui Vilhena, argumentista e criador de "Na Corda Bamba", embora aponte a possíveis soluções.
"Se o objetivo dessa interação for pôr a personagem A a dizer à personagem B que está grávida e a personagem C a reagir à notícia, o que pode ser feito é criar um contexto de pequeno-almoço em que duas pessoas estão sentadas à mesa e uma delas está quase a terminar a comida. A terceira personagem só entra quando a que já tiver terminado se levantar da mesa, criando-se assim esse movimento em cena", explica.
E esse é um dinamismo que Rui Vilhena está habituado a usar porque, segundo conta, raramente recorre, nas suas novelas, a cenas fixas de pequeno-almoço. E agora a ideia é que venha a usar cada vez menos, pelo menos enquanto não houver vacina, já que não é permitido.
Mas os problemas adensam-se quando o argumento requere que duas personagens se envolvam fisicamente num beijo ou num abraço. Os engenhos para tentar ultrapassar o problema são vários, mas complicam a escrita. "Nessas situações, um dos mecanismos pode passar por ter a mulher a aproximar-se do homem, ou vice-versa, para dar a entender ao espectador de que algo vai acontecer entre aqueles dois."
E como se simula um beijo? Através da técnica mágica do corte em pós-produção. "Se após essa aproximação se conduzir a cena para que tenha um plano de câmara dos pés da mulher, esta só tem de levantar um pouco os pés, naquele gesto clássico de chegar aos lábios do homem, para ficar subentendido que aquela química culminou num beijo."
E continua: "Com as cenas de sexo, os mecanismos passam também pela simulação do ato sem que ele alguma vez seja fabricando em frente às câmaras: basta filmar-se uma cama, uma troca de olhares entre as personagens e depois o momento em que a camisa e os sapatos são jogados para uma parte do quarto. Não se vê, mas aconteceu."
Mas todo este processo é mais exigente até porque, explica Rui Vilhena, "obriga o argumentista a parar e a pensar de que forma é que poderá voltar a simular uma interação física sem que repita os mecanismos já usados anteriormente." A consequência de não o fazer, é parecer um escritor preguiçoso e deixar a ideia no espectador de que já viu aquela simulação num qualquer outro momento da história.
No entanto, o argumentista parte do princípio que, seja qual for a situação, é sempre possível dar a volta. Mas corre-se o risco de, numa cena em que não possa haver beijos, abraços ou muitas pessoas em ação, criar uma história "em que o colorido dos afetos vá todo embora" e isso resulte numa história monótona.
Carmo Afonso, argumentista de cinema e uma das mentes por detrás do filme "Linhas Tortas", reconhece os desafios que a pandemia trouxe aos argumentistas. Mas diz que, apesar de tudo, essas dificuldades não devem suplantar o sacrifício feito por todos durante a pandemia.
"Se pedimos a crianças que estão numa fase fundamental da formação da sua personalidade para estarem em casa com os pais, e se agora pedimos que o regresso à vida escolar seja feito com o devido distanciamento dos colegas e dos professores, era impensável que nós, argumentistas, não tivéssemos de passar pelo mesmo de diferentes formas", começa por explicar.
"Estamos a falar de um esforço coletivo que não pode ser ignorado. Na realização de uma série, novela, filme ou peça de teatro, falamos de uma equipa inteira que tem famílias. Falamos de um ator que pode ser saudável e não fazer parte de um grupo de risco, mas que se calhar vive com uma avó de 80 anos."
Mas não tem dúvidas de que as medidas de prevenção limitam, de forma drástica, a forma de se estruturar e idealizar uma narrativa.
"Claro que a pandemia tem consequências na criação de arte e adultera, por completo, uma história. Mas essa ideia só vai servir como um novo desafio para que, enquanto criadores, possamos usar a criatividade para contar uma história que não envolva contacto físico e proximidade."
E embora Carmo Afonso esteja, neste momento, a escrever um novo argumento, diz não estar a sentir essa dificuldade porque, na sua história, as personagens que idealizou estão a viver na mesma conjuntura com que nós, pessoas reais, lidamos desde o início de março. Mas há novos desafios, geralmente mais exigentes, para manter o processo criativo fresco para uma história que, no final, se deve manter coerente. Com mais ou menos afetos.