Rui Vilhena, argumentista e criador de "Na Corda Bamba", foi um dos que fizeram com que o formato novela começasse a fazer parte da cultura pop portuguesa. Estávamos em abril de 2005 quando a novela "Ninguém Como Tu" surgia em televisão e ainda hoje é conhecida pelo cliffhanger (ou final pendurado). Na novela, Nuno Homem de Sá (que interpretava a personagem António), morre no quarto depois de tomar uma bebida envenenada. A dúvida que ficou na cabeça de milhares de portuguesas foi só uma: "Quem matou o António?".
O mistério foi tema de conversa de café, gerou manchetes em jornais e levou a TVI a fazer uma reportagem especial na qual acompanhava o transporte da cassete do último episódio da novela — onde iria ser revelado o assassino de António — desde o local onde estava armazenada até aos estúdios da estação. E tudo isto com uma aparatosa escolta policial.
Depois de vários projetos, e uma ausência das novelas portuguesas desde 2011, Rui Vilhena regressou com "Na Corda Bamba", onde se juntou a um elenco de luxo composto por nomes como Paula Neves, Pêpê Rapazote, Dalila Carmo e Margarida Vila-Nova.
A MAGG viu o primeiro episódio em dose dupla. O publisher Ricardo Martins Pereira e o jornalista Fábio Martins viram a estreia e mostram duas visões sobre a história.
Como Ricardo Martins Pereira viu a estreia
Há dias, Rui Vilhena, autor da novela “Na Corda Bamba”, deu uma entrevista em que disse qualquer coisa como: “Se é para fazer mais do mesmo não contem comigo”. Mais do mesmo é exatamente a expressão que encaixa naquilo que temos visto nas últimas estreias da televisão nacional, sobretudo em matéria de novelas, como foi o caso da recente “Nazaré”, da SIC, que está no ar há uma semana.
Rui Vilhena não ia deixar o Brasil para vir para Portugal criar uma história igual a mil outras que já vimos ao longo dos últimos 20 ou 30 anos. A estreia de “Na Corda Bamba” parece confirmar o que ele diz. O primeiro episódio da nova novela da TVI está muito mais próximo da dinâmica de uma série norte-americana, ou do registo de uma novela brasileira disruptiva, como “Avenida Brasil” foi, do que de uma tradicional novela portuguesa dentro daquilo que temos visto na SIC e na TVI ao longo dos últimos anos. Mas afinal em que é que a estreia de “Na Corda Bamba” foi diferente? Em quase tudo. E a estreia só teve coisas boas? Não, mas quase. Vamos por partes.
A sequência de abertura e a cena manhosa do drone
A sequência de abertura da novela foi forte, enigmática, mas trouxe também aquele que foi provavelmente o momento mais inverosímil da história. Vimos, então, um homem a conduzir um carro por umas montanhas, e uma legenda indicou-nos que estávamos na Madeira e que corria o ano de 2009. Muito bem.
Este homem, que mais tarde se saberá que se chama Filipe Alves, chegou ao que parecia ser uma vila e montou um drone daqueles enormes. Dúvida (é dúvida mesmo, porque não disponho de conhecimento técnico para responder): em 2009 já existiam drones domésticos daqueles? Sinceramente, não me parece. Talvez. Ainda que existissem, quanto custaria um brinquedo daqueles? Se hoje vão para cima dos 5 mil euros, em 2009 upa, upa. Filipe era um milionário para ter um bicho daqueles? Não. Mas adiante.
Filipe montou então o drone e começou a pilotá-lo em direção à janela de uma casa, que ficava num primeiro andar. Pela câmara do drone percebemos que a casa é de um casal (Pipo e Lúcia, Pepê Rapazote e Dalila Carmo — fantástica, como sempre), já que se via uma foto de família na parede em que apareciam juntos. Agora, a tal parte inverosímil: quem já pilotou um drone sabe que o aparelho perde sinal quando está numa zona fechada, já que as paredes bloqueiam o sinal. Ora, Filipe conduziu o drone por uma janela para dentro da casa e andou com o bicho a sobrevoar pelas várias divisões, a partir da rua. Pronto, é ficção, passa, mas se hoje não é assim, em 2009 não o era seguramente. O facto de esta ser a única coisa que podemos apontar já diz qualquer coisa da qualidade da história.
A complexidade das personagens
Ao contrário das histórias tradicionais a que estamos habituados nas telenovelas, em “A Corda Bamba” não há aquele vilão mau como as cobras, nem o herói bonzinho, humilde e corajoso que lutará contra o mundo para fazer vingar o bem. Não. Aqui há pessoas reais, com histórias de vida que as moldam e as levam a serem boas quando têm de ser boas e a serem más quando têm de ser más. Pipo (Pepê Rapazonte) aparece pela primeira vez a prender um bandido, logo, é um dos bons, um polícia, um justiceiro. Percebemos depois que, afinal, ele também esteve envolvido num esquema de roubo de bebés, e é também ele que oculta o homicídio cometido pela mulher, e é ainda ele que enterra o corpo da vítima. Afinal, é dos bons? É dos maus? É só uma personagem complexa, enigmática.
Sara Pimentel (Margarida Vila-Nova, brilhante neste primeiro episódio) é amante de Filipe Alves, o morto. Amante, repito. Má, portanto. É também a filha da mamã, menina rica, que não parece ter grande ocupação na vida, que rouba o marido a uma mulher humilde e que luta por um emprego e uma vida melhor, e que tem um filho a cargo. Tudo indica que temos aqui uma vilã das boas. Só que a história mostra-nos que, afinal, Sara é uma mulher marcada por uma dor, a dor de não saber de uma filha, Alice, que continua desesperadamente a procurar. Afinal, não é uma vilã fútil, é uma mulher que luta para encontrar uma filha.
A complexidade das personagens é o que dá dimensão às histórias, é o que nos dá vontade de as querer conhecer mais, de lhes seguir os passos, de lhe conhecer a vida. O mau que é sempre mau é só previsível, e ao fim de 200 episódios é só um chato do caraças. Pior que ele só mesmo o bom que é sempre bom. Enjoo.
Estes são só dois exemplos. Há mais na história. Lúcia (Dalila Carmo — já disse que é das melhores atrizes de televisão em Portugal?) luta pelo amor dos filhos, mas, afinal, é também ela uma vilã, porque os tais filhos são afinal roubados, e ainda acaba por roubar mais um.
A estreia centrou-se, e bem, no núcleo central, não desenvolveu demasiado as tramas paralelas, mas, pela amostra, deu para perceber que as restantes personagens da trama não serão muito diferentes: continuarão a ser boas e más, humanas e sacanas, humildes ou pespinetas quando a vida o pedir.
O núcleo brasileiro
É seguramente propositado, mas não é muito claro o papel do núcleo brasileiro da novela, composto por Marília Montenegro (Lucélia Santos) e Gilberto Montenegro (Edwin Luisi), casados, residentes em São Paulo, pais de Carol (Cristina Lago), que tem um problema com drogas e um filho na barriga, que acaba por nascer e ficar nas mãos de Lúcia, mesmo no final do episódio — amanhã perceberemos melhor isto, seguramente. As cenas de Carol, sempre muito sofrida, sempre muito queixosa, sempre muito nervosa, talvez também sob efeitos da droga, repetem-se e acabam por ser um pouco enfadonhas, sobretudo as cenas musicadas, demasiado longas. A personagem Olívia Galvão (Maria João Bastos), tia de Carol, e que fala num brasileiro meio manhoso, é talvez a mais estereotipada, mas acredito que o salto na ação de 2009 para os dias de hoje a farão perder o sotaque e evoluir noutro caminho. Para já, é uma tia empertigada, que está de olho no dinheiro de Marília e Gilberto, e que nem se importa de ver a sobrinha Carol morrer, porque era menos uma a herdar a fortuna. Cá está, uma vilã-vilã, mas que ainda poderá crescer, e irá seguramente crescer.
Pontas soltas, pistas
O mais interessante de todo o episódio é mesmo o facto de nos deixar curiosos para saber o que vai acontecer em muitas situações diferentes. Lúcia disse aos vizinhos que tinha perdido o bebé e de repente aparece com um bebé nos braços. Que história vai inventar? Lúcia disse à vizinha que não tinha entrado ninguém em sua casa, mas a vizinha viu Filipe a entrar e, quando foi a casa dela, apanhou a aliança que Filipe deixou cair quando foi assassinado por Lúcia. Irá contar tudo à polícia? Como é que Lúcia ficou com o bebé de Carol? Como será que Sara vai reagir quando perceber que o amante desapareceu? E Leonor (Paula Neves, um pouco exagerada na interpretação de mulher traída) será que vai tentar saber o paradeiro do marido, mesmo sabendo que estava a ser traída? E Pipo e Lúcia vão fugir depois de terem assassinado e enterrado Filipe? O que aconteceu a Carol? É muita coisa, são muitas dúvidas, muitos ganchos para nos prender ao segundo episódio.
E o que ainda não foi mostrado?
A estreia de “Na Corda Bamba” tem outro mérito: conseguiu captar a atenção, agarrar, prender ao sofá, e ainda nem sequer mostrou os trunfos todos. Pesos pesados como Alexandra Lencastre, Sílvia Rizzo, Lídia Franco, Nuno Homem de Sá, Pedro Granger ou até Júlia Palha (por razões diferentes) ainda nem sequer apareceram. Seguramente que Rui Vilhena está a guardar trunfos para os próximos dias, até porque uma novela de 200 episódios quer-se intensa durante 200 episódios, e não durante os primeiros 10 e os últimos 2, o que obriga a que os restantes 188 sejam só a encher chouriços.
Como Fábio Martins viu a estreia
A estreia do primeiro episódio aconteceu este domingo, 15 de setembro, com a história a inicar-se em meados de 2009 e a introduzir uma família envolta em mistério e crime.
Uma das cenas iniciais mostra Filipe (Pedro Lacerda) a espiar a casa de alguém com um drone que tinha acabado de conduzir pela janela.
"Mas como é que ninguém ouve um drone dentro de casa?", é a pergunta que depressa pode saltar à cabeça dos espectadores. A resposta é simples: não havia ninguém em casa. "Mas como é que ele sabia disso?", poderá rematar. Temos de confiar que a personagem estudou a casa e os padrões daquela família.
A casa pertence a Lúcia (Dalila Carmo) e Pipo (Pêpe Rapazote), um casal que rouba os filhos de prostitutas e toxicodependentes com o objetivo de as salvar daquele ambiente e dar-lhes um lar. O primeiro episódio da novela parece dar a entender que aquilo que Filipe procura é, na verdade, a filha de Sara (Margarida Vila-Nova), com quem mantém um caso extraconjugal e que terá sido afastada da filha após o parto.
Filipe confronta Lúcia na sua sala de estar e esta reage violentamente. Os dois lutam e Filipe acaba esfaqueado, morrendo pouco tempo depois.
Como é hábito das histórias de Rui Vilhena, o primeiro episódio fica sempre marcado por uma morte que depois serve como fio condutor de toda a trama — e este parece o crime perfeito. Filipe é enterrado por Pipo e Lúcia, que lhe retiram a roupa e os seus pertences.
Mas o facto de a aliança de Filipe ter caído na sala de Lúcia, e depois ter sido descoberta por uma vizinha, assinala o óbvio: que o crime perfeito e sem testemunhas depressa começa a ter buracos na história. Enquanto isto, o filho de Filipe celebra o seu aniversário sem o pai e a mulher traída (Paula Neves) confronta a amante, a quem Filipe prometeu encontrar a filha, em Lisboa.
"Na Corda Bamba" teve todos os ingredientes necessários para apelar aos espectadores: houve mistério, dilemas, crime e uma história que, apesar de corresponder às diretrizes do formato novela, não toma o espectador por parvo. Quanto muito, leva-o a tomar partido e querer saber mais do que o episódio mostra, só para o surpreender nas cenas seguintes.
As personagens são complexas onde os vilões são apenas pessoas que foram perdendo a bússola ética e moral que as guia e que acreditam estar a fazer o que é certo. E os bons são também eles humanos, com um lado negro que muitas vezes não controlam.
Tanto o é que, só no final do episódio é que temos a certeza absoluta de que a personagem de Dalila Carmo é mesmo uma antagonista que rouba bebés a prostitutas.
A cena em específico acontece à beira da estrada, num local onde várias prostitutas costumam estar, e Carol (Carolina Montenegro) entra em trabalho de parto. Lúcia, que por acaso também é enfermeira, está de passagem e ajuda-a. Quando o bebe nasce, foge com ele no carro.
Se achar que não percebeu muito bem o propósito das personagens brasileiras na história, não despere. A ideia desta novela é dar-lhe material para que sinta a necessidade de investir tempo na história e, por isso, são muitos os pontos a explorar (e a explicar) nos próximos episódios.
Ao contrário de "Nazaré", a novela da SIC, "Na Corda Bamba" não tem pressa de desenvolver a sua história e as personagens. Prova disso é o facto de quem tenha visto a estreia da novela da TVI tenha ficado a saber o mesmo do que quando começou.
Mas os traços de Rui Vilhena estão lá, com os mistérios, os dilemas e as interrogações do costume que só vão ser respondidas no final da história. Não sei como vai ser o percurso, mas o primeiro episódio passou o teste. Quanto mais não seja, por ter focado grande parte do seu enfoque nos antagonistas que, convenhamos, são sempre os mais interessantes.