Para cada grande produção como “A Guerra dos Tronos”, há cinco ou mais séries que passam despercebidas e que não são conhecidas ao ponto de se tornarem assunto de conversa em jantares de amigos. “The Americans”, terminado em 2018 e considerado pela crítica como um dos melhores (e mais desconhecidos) títulos dos últimos anos, é só um exemplo.
Todas as semanas, a MAGG traz-lhe uma sugestão imperdível na nova rubrica “A série que ninguém está a ver”, com o objetivo de dar a conhecer algumas das produções com menos visibilidade — mas que merecem tantos ou mais elogios como outras populares.
E esta é daquelas que começaram e terminaram sem que tivesse tido o reconhecimento merecido como tantas outras do canal (a Showtime, que foi a casa de produções como "Dexter" ou "Segurança Nacional"). Falo-vos de "The Affair", aquela que deverá ser uma das séries mais adultas, densas e tremendamente complexas dos últimos anos e que terminou em novembro de 2019.
A história acompanha a figura de Noah, a personagem interpretada por Dominic West ("The Wire"), um romancista nos seus 40 anos.
Depois de uma vida que o próprio descreve como monótona, um casamento que não lhe traz felicidade e uma carreira que pouco ou nada o satisfaz, Noah vê-se envolvido com Allison (interpretada por Ruth Wilson, de "Luther"), uma empregada de balcão, depois de uma atração imediata e mútua.
O problema, porque há sempre um nas séries dramáticas, é que no meio do sexo louco e do escapismo que marca a relação entre os dois, um crime acontece e acaba por manchar a relação dos dois. Só que, quando confrontados pela polícia, que tenta a todo o custo explicar as ocorrências do assassinato, os dois recordam a tragédia de uma forma muito diferente e com várias contradições suspeitas.
A isto chama-se O Efeito Rashomon. O termo tem mais de 70 anos e nasceu com o filme "Rashomon", escrito e realizado por Akira Kurosawa, no qual uma vítima de violação, os suspeitos e as testemunhas efetivas do crime recordam e descrevem a tragédia de formas muito diferentes: com omissões, acrescentos e detalhes que contradizem todo e qualquer testemunho prévio.
E isto é relevante porque cada episódio de "The Affair" se divide na perspetiva de Noah e Alison, o que leva a que os espectadores vejam a recriação, por mais do que uma vez, de várias situações em que o que muda é a memória que ambos os protagonistas têm daquele evento.
E porque a memória é inconsistente e histórica, a verdade não é fiável — nem importante — e os pontos de vista são histórias. Histórias essas que contamos, protagonizamos e defendemos porque são uma uma construção da nossa identidade. São, no fundo, a nossa verdade — seja ela qual for.
Apesar da polémica que envolveu a criadora da série e Ruth Wilson, que a acusou de a obrigar a expor-se fisicamente mais do que se sentia confortável, obrigando a saída prematura da atriz, a série é uma das mais bem escritas dos últimos tempos. E que, só por isso mesmo, merece que se lhe perdoem todas as falhas de coerência narrativa e estrutural.
Embora sendo da Showtime, a série está disponível para streaming na Netflix até à quarta temporada. Não se sabe quando ou se alguma vez a quinta chegará ao catálogo da empresa.