Trabalhar de dia e de noite. É assim que Ana Guerra, Ana Costa, Ivo Cabaço e Luís Reis descrevem um hobbie que, na verdade, deve ser encarado como um trabalho, com horários e obrigações fixas, se a ideia for continuar a evoluir no meio. Os quatro são streamers, ou seja, pessoas que, através de plataformas especializadas para o efeito, como a Twitch, transmitem vídeo em direto e através do qual se mostram a jogar os mais variados videojogos.

À partida, parece fácil: basta um computador (ou uma consola), equipamento que permita a transmissão e a reprodução de videojogos em direto, e a disponibilidade mental para ser visto por todo o tipo de pessoas que possam interagir com os streamers através do sistema de chat, em tempo real, que surge ao lado de casa transmissão — seja ela no YouTube, na Twitch ou em qualquer outra plataforma.

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E embora o mercado internacional esteja ligeiramente cimentado, não é certo que, por cá, as maiores estrelas do streaming português de hoje sejam as mesmas de amanhã. Talvez por isso, mas também pelo facto de atualmente se falar mais de jogos, há cada vez mais jovens e adultos com vontade de se iniciarem no meio.

Embora seja fácil começar, o difícil, dizem os quatro streamers com quem a MAGG falou, será manter a regularidade. Ana Costa, 30 anos, tem o projeto de streaming parado depois de o computador ter avariado, mas admite que a ideia é voltar. Só que isso implica ser capaz de conciliar o hobbie com uma pós-graduação e o trabalho diário enquanto designer gráfica e gestora de redes sociais.

O streaming por amor à camisola

"O trabalho e a pós-graduação limitam-me muito os horários e, nesse sentido, é preciso um jogo de cintura enorme para que tudo seja compatível ao ponto de não se entrar numa espiral em que essa gestão possa ser danosa", diz Ana. E embora considere que é necessária uma "disponibilidade física e mental" para estar, regular e consecutivamente online, olha com uma visão descomplicada para o meio.

"No fundo, é muito semelhante ao simples gesto de ligar a consola e jogar um bocadinho depois de um dia de trabalho." A única diferença é que, neste caso, "há pessoas a ver."

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Ana Costa, 30 anos, tem o projeto de streaming parado, mas quer voltar. Só que isso implicará um enorme jogo de cintura para conciliar com o trabalho e com a pós-graduação créditos: Ana Costa

E embora atualmente seja mais fácil atrair novos espectadores e até subscritores (aqueles que apoiam através de uma subscrição mensal), um dos obstáculos com que muitos dos streamers se deparam, principalmente ao início, é a dificuldade em construir uma comunidade vasta que, dia após dia, regresse à transmissão. Por isso, não tem dúvidas: é um meio que requer muito amor à camisola e que, para se apostar nele, tem "mesmo de se gostar."

Luís Reis, 34, é da mesma opinião. Embora tenha crescido com os videojogos na sua vida e, por isso, o horário noturno para jogar sempre tenha feito parte da sua rotina, só desde o início do surto da COVID-19 em Portugal é que passou a estar desenhado para o streaming na Twitch. Artista de rua e formador de artes circenses em São Miguel, nos Açores, Luís Reis foi um dos concorrentes que passou pelo "Got Talent Portugal" e que impressionou os jurados do programa de talentos.

A experiência com a artes performativas na rua fá-lo ter uma visão muito concreta sobre a forma como lida com as pessoas que o veem. "A minha experiência faz-me ter uma ligação um bocadinho mais crua com o público, no sentido em que sei que quem está a ver, o faz porque gosta e não porque está a pagar bilhete. A partir do momento em que deixar de gostar, sai."

Na Twitch, é igual. É que embora haja a possibilidade de se tornar subscritor de um canal, quem quiser pode ver a transmissão sem pagar, ficando, nos casos em que isso se aplique, sujeito a anúncios publicitários durante a transmissão. Por isso, diz não se focar no número de espectadores a cada transmissão, e que varia de dia para dia consoante o jogo e a sorte. Mas reconhece que atrair novo público é uma preocupação de todos os que se querem iniciar, ou já o fizeram, nesta atividade.

"Quem segue um criador de conteúdo procura, de alguma forma, identificar-se com quem vê. Naquela altura, ninguém se identificava comigo, o que ajudava a que a minha média de espectadores não aumentasse"

"É possível ser-se um streamer novo, com bom conteúdo e, mesmo assim, não ter ninguém a ver. Mas tento não me focar nisso por achar que não é uma meta saudável, mas claro que fico animado quando tenho mais espectadores e mais desanimado quando tenho menos", desabafa.

Apesar disso, diz que prefere olhar para o que faz com outra visão e com objetivos bem delineados: manter o chat ativo com "partilha fluída e constante entre quem está a ver", e divertir-se com o conteúdo que traz para o canal, que fica online diariamente e que assegura, pelo menos, quatro horas de transmissão — mas que podem ser mais ou menos consoante o cansaço e a disponibilidade.

Ivo Cabaço, 32, que na Twitch é uma drag queen de nome Eevolicious, é o único dos quatro streamers com quem a MAGG falou que, recentemente, passou a apostar no projeto a tempo inteiro. Quatro anos depois de se ter iniciado, hoje garante que a Twitch lhe chega para pagar as contas, mas reforça que não é fácil e que quem queira começar a dar os primeiros passos no meio não deve achar que é sinónimo de dinheiro fácil. Até porque, ao início, o caminho foi penoso, quando durante os dois primeiros anos a sua média diária de espectadores não subia para lá dos 20.

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Ivo Cabaço, 32 anos, assume o nome da sua drag queen, Eevolicious, quando está em direto na Twitch créditos: Ivo Cabaço

"Qualquer criador de conteúdo vai, a qualquer momento, sentir a frustração de não chegar a mais gente. Frustrava-me imenso porque estava a lutar por uma coisa que não estava a ter resultados. O streaming não é algo que resulte num estalar de dedos; é uma aventura que pode ser enorme e durar anos", diz. A sua aventura, tal como a caracteriza, ainda dura. Mas para que perdurasse, teve de tomar a decisão consciente de direcionar o seu conteúdo para o público internacional, falando em inglês.

"Não sou um rapaz heterossexual, não sou extremamente masculino, nem feminino, e também não sou uma rapariga heterossexual." Não corresponde à normativa, portanto, e todas "essas coisas importam para que a média de espectador de um criador de conteúdos, seja ele qual for, suba."

"Quem segue um criador de conteúdo procura, de alguma forma, identificar-se com quem vê. Naquela altura, em 2017, ninguém se identificava comigo, o que ajudava a que a minha média de espectadores não aumentasse. Foi por isso que decidi começar a transmitir em inglês, porque sabia que não havia audiência portuguesa para me ver. Amava, e amo, isto. Tive de fazer uma escolha", recorda Ivo.

Um streamer nunca é "só" um streamer

Mas quando a câmara não está ligada, há muito trabalho de bastidores que é feito para assegurar as transmissões futuras. Quem o diz é Ana Guerra, 26, que de dia trabalha enquanto gestora de comunicação e de comunidade, e de noite está de comando de consola na mão a jogar em direto para quem a quiser ver.

"Um streamer, tal como qualquer criador de conteúdo digital, tem de fazer muito trabalho por trás das câmaras. Se falarmos num youtuber, um termo que talvez as pessoas conheçam melhor, sabemos que, na verdade, ele é videógrafo, apresentador, guionista, influenciador, gestor de redes sociais e de comunidade e ainda pode ser um comercial se estiver a negociar eventuais parcerias com marcas", explica Ana. Nesse sentido, garante que um streamer é exatamente igual, na medida em que "assume uma data de papéis" que, noutra indústria, estariam divididos entre várias pessoas.

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Ana Guerra, 26 anos, é streamer há mais de dois anos créditos: Ana Guerra

Antes de cada sessão em direto, há um planeamento quase exaustivo do que será o conteúdo de cada transmissão. A ideia, diz Ana Guerra, é evitar a aleatoriedade, mas também dar a conhecer aos espectadores — cada um com os seus horários e as suas vidas — que tipo de jogos vão ser transmitidos, já que uns interessarão mais do que outros a várias pessoas.

"Ainda hoje não percebo muito bem o que motivou aquilo, mas houve alguém que decidiu atacar-me no chat. Só a mim. Fiz por ignorar e a pessoa em questão acabou por ser banida, mas durante três dias fiquei a duvidar de mim própria"

"Tem de ser tudo planeado para que as pessoas que nos veem saibam, exatamente, com o que contar. Além do planeamento que temos de fazer, há toda a promoção do canal em que temos de pensar. Depois vem o direto que também tem de ser prolongado, já que apenas 30 minutos não funcionam." O objetivo é sempre o mesmo: estender a pegada do canal e fazê-lo chegar a mais pessoas.

Enquanto Ivo Cabaço, que se dedica a tempo inteiro ao streaming, faz transmissões mais prolongadas, e Luís Reis se mantém numa média de quatro horas por dia, Ana Guerra divide as transmissões entre sábados, segundas-feiras e quintas-feiras."Se começar às 21h30, acabo à meia noite e não faço mais nada naquele dia porque a minha noite foi reservada para fazer streaming", diz Guerra sobre um regime que mantém há dois anos e quatro meses.

"Claro que é um desafio. Não são raras as vezes em que dou por mim a fazer o jantar à pressa. Noutras vezes, é o meu namorado que o faz para que tenha tempo de ir tomar banho antes de dar início à transmissão depois de um dia de trabalho. É difícil, sim, mas quando, por algum motivo, decido fazer ligeiras alterações ao horário e salto um dia em que estava previsto estar online, fico com saudades", explica.

Não tanto de jogar, porque isso fá-lo todos os dias, mas de conversar com quem a vê, partilhar a sua opinião sobre a indústria do entretenimento e conhecer pessoas novas.

E Ana Guerra não tem dúvidas de que, num contexto profundamente marcado pela pandemia, "o ano que passou teria sido muito mais difícil" se não tivesse o seu canal na Twitch. E embora garanta que, neste momento, o streaming não lhe paga as contas, não tem a ambição de o fazer a tempo inteiro. "O meu objetivo não é viver disto. Gostava de chegar, sim, a um patamar em que seria reconhecida como uma das maiores streamers em Portugal", diz. Mas fazê-lo a tempo inteiro, para já, não está nos planos. Até porque, admite, o mais provável seria aborrecer-se.

"Se deixasse o meu trabalho atual, iria manter a stream, mas continuaria a trabalhar noutras coisas. Poderia ter um podcast ou um trabalho em freelancing. Iria sempre querer fazer alguma coisa além de manter o canal na Twitch, porque não teria paciência para fazer transmissões a começar às 10 e a terminar às 16 horas."

Ana Costa, que atualmente tem o computador a aguardar a montagem de novos componentes, prevê voltar ao ativo com transmissões em direto e num regime de três dias por semana. Tentará conciliar o streaming com o trabalho, a pós-gradução e com todo o processo de alimentar "as redes sociais que um streamer tem de fazer para poder chegar a mais espectadores."

O bullying, o assédio e o ódio gratuito (e aleatório)

Mas porque estar em direto implica, invariavelmente, lidar com os outros, isso abre portas ao assédio, ao bullying e ao ataque gratuito de quem simplesmente só quer propagar ódio. Ana Costa, que se identifica como uma "pessoa muito tímida", já sentiu esse ódio gratuito — e, aparentemente, aleatório — na pele durante uma das vezes em que esteve a jogar em direto.

"Há uma ideia generalizada, e que não passa de uma falácia, de que uma streamer só tem sucesso ou só é popular porque é mulher. Ainda não se percebeu muito bem que há uma dificuldade acrescida em ser-se mulher neste meio"

"Ainda hoje não percebo muito bem o que motivou aquilo, mas houve alguém que decidiu atacar-me no chat. Só a mim. Fiz por ignorar e a pessoa em questão acabou por ser banida, mas durante três dias fiquei a duvidar de mim própria."

"Senti-me num limbo a achar que, talvez, tivesse dito alguma coisa que tivesse justificado aquela agressão", recorda. Mas não há justificação para o ódio e, Ana agora sabe-o bem, "tal só aconteceu por existir e a outra pessoa não ter gostado" de a ver.

Não há mistério envolvido. Em Portugal, as mulheres continuam, além de subrepresentadas num meio tipicamente masculino e branco, a ser o alvo mais fácil deste tipo de ataques.

Vanessa Dias
Vanessa Dias é fundadora da iniciativa Videojogo, Disse Ela, que visa juntar as mulheres que jogam e trabalham na área dos videojogos em Portugal créditos: Vanessa Dias

Vanessa Dias, gestora de redes sociais e fundadora da iniciativa Videojogo, Disse Ela — uma comunidade para mulheres que joguem ou trabalhem na indústria dos videojogos e que, desde que a pandemia atingiu Portugal, passou a promover encontros online —, diz que o paradigma está mudar e que hoje já é "muito natural para uma mulher pensar em ser streamer sem que isso seja olhado com estranheza", mas que ainda há muito caminho por percorrer.

"Há uma ideia generalizada, e que não passa de uma falácia, de que uma streamer só tem sucesso ou só é popular porque é mulher. Ainda não se percebeu muito bem que há uma dificuldade acrescida em ser-se mulher neste meio, que ainda tem laivos de toxicidade, estereótipos de género e discriminação", diz.

E isso, acredita, é palpável na análise que faz do tipo de interações que alguns membros da comunidade têm com mulheres jogadoras — especialmente quando comparadas com outras que envolvam jogadores homens, que estejam a jogar o mesmo jogo.

"Se tivermos um streamer e uma streamer a jogar o mesmo jogo, o mais provável é que as perguntas que lhes sejam postas sejam muito diferentes. O público até pode ser o mesmo, mas a abordagem não. Serão questões de natureza muito mais pessoal." As perguntas mais comuns de serem feitas? "Tens namorado?" ou "tens conta de Instagram?".

"Não tenho de fazer concessões ou sacrifícios por ninguém. As pessoas é que tem de estar no chat com a atitude certa. Quem não estiver, sai"

Ivo Cabaço, por apostar num conteúdo inclusivo e que representa a comunidade LGBTQ+, diz que todo os dias tem de lidar com quem só visita o seu canal para espalhar ódio. O truque para ligar com as pessoas que, na gíria da internet ganharam o nome trolls, é não lhes dar oportunidade.

"O meu canal é o meu santuário, é o meu espaço e qualquer pessoa que o invada com toxicidade não é bem-vinda. Se estas pessoas acham engraçado mandarem uns bitaites e terem os seus cinco minutos de fama, a minha postura passa precisamente por aí se os meus moderadores [as pessoas escolhidas pelo streamer para manterem o bom ambiente no chat] não as banirem de imediato: por gozar com eles e usá-los como objeto de humor, porque, no fundo, sou um entertainer", diz.

Luís Reis
Luís Reis é streamer desde que o surto da COVID-19 atingiu Portugal créditos: Luís Reis

Luís Reis é da mesma opinião e garante que "recebe menos ódio do que aquele que poderia estar à espera", muito porque o próprio não deixa que este se espalhe. Da mesma forma, Ana Guerra é assertiva: "Não tenho de fazer concessões ou sacrifícios por ninguém. As pessoas é que têm de estar no chat com a atitude certa. Quem não estiver, sai."

Até porque os canais dos streamers são, na verdade, quase como que as suas casas. E nas suas casas só fica quem eles quiserem.