Uma família portuguesa vive algures em Inglaterra e enfrenta sérias dificuldades. São cinco os elementos que compõem este agregado familiar e nenhum escapa às adversidades: Lu, a filha do meio, é surda e o seu aparelho auditivo partiu-se; o filho mais velho, com 12 anos, está doente com febre; o pai não vive com a certeza de um trabalho que pague a tempo e horas; a mãe, desdobra-se em várias e enquanto cumpre as suas tarefas de mulher a dias, tem de prestar apoio simultâneo, ao terceiro filho, ainda bebé e a amamentar. À espera de uma visita dos Serviços Sociais, o que esta família de emigrantes não esperava era que os três menores lhes fossem arrancados de um momento para o outro, injustamente por suspeita de maus-tratos, para serem entregues ao sistemas e, posteriormente, a uma família de adoção.

Mas neste duro retrato não há heróis e vilões. Com estreia marcada para 22 de outubro nas salas de cinema portuguesas,  "Listen", co-produção lusobritânica, a primeira longa metragem da atriz e realizadora Ana Rocha de Sousa, vencedora de quatro prémios na 77.ª edição do Festival de Veneza — incluindo o  prémio ‘Leão de Futuro’ e o especial do júri ‘Horizontes’ —, navega-se na solidão das zonas cinzentas, onde não há bons ou maus, apenas vítimas de um sistema que está podre, nos dois lados da barricada.

Este olhar que não se deixa extremar é fruto do crescimento e do amadurecimento, dois fatores que, sem avisar, desviam trajetórias e trocam as voltas aos planos de vida. É assim que Ana Rocha de Sousa vai sofrendo a sua metamorfose, passando, em duas décadas, de miúda da televisão (protagonista do fenómeno juvenil "Riscos", nos anos 90) a realizadora de cinema de um filme reconhecido e premiado. Pelo meio, foi empurrada para a London Film School, etapa que a fez romper com o passado. Literalmente: a atriz vendeu tudo o que tinha e partiu. Até hoje, ficam as saudades da sua casa na Bica.

listen
Rúben Garcia e Lúcia Moniz são os grande protagonistas de "Listen"

Teve os holofotes apontados para si no início da sua carreira e agora. Primeiro com a série “Riscos”, em 1997, e agora com o filme “Listen”.
Engraçado. Faço essa ligação depois de receber os prémios oficiais mais importantes: quando saio do jantar dos premiados e vou naquele percurso sozinha, para o hotel, volto a esse tempo. Volto ao que é ser uma menina de 17 anos, que é escolhida para uma série de televisão e que, num dia, anda na rua de uma forma normal, e que, no dia seguinte, quando sai, as pessoas sabem quem ela que é. E quando eu digo isto, parece uma comparação pouco rica, mais é muito mais rica do que aquilo que parece. Sendo coisas, momentos, absolutamente distintos, são exatamente a mesma coisa: é ter um sonho, é ir atrás dele e é viver aquele momento em que nos deparamos com o princípio da concretização de qualquer coisa.

O que é que aconteceu entre estes dois distantes momentos?
O que aconteceu foi crescimento. Foi crescer. Não senti em momento algum que tivesse de mudar, mas senti a minha mudança. E isto é diferente. Quando tudo começou, eu era muito menina, tinha aqueles sonhos e fui atrás deles enquanto eles me preenchiam. A seguir ao "Riscos", entrei em variadíssimas séries, que me preencheram e em que fui absolutamente feliz, sempre acompanhada com uma sensação de sucesso, que, naquela idade, correspondia àquilo. A minha transformação de menina para mulher, entretanto, começa a ser grande. As transformações e o crescer, fazem-me começar a desviar o caminho, como se tivesse um plano e começasse a perceber que, talvez, o meu plano não fosse aquele. Ou se calhar, era aquele, mas deixou de fazer o mesmo sentido. Então, começo a mudar a trajetória, a fazer outros caminhos, a mudar.

"Sinto que é preciso, durante a vida, sabermos agarrar nessas adversidades e sabermos vivê-las de uma maneira em que se transformem numa mais-valia. É transformá-las em oportunidades."

O que é que a empurrou nesta mudança de trajetória?
As Belas Artes tiveram um papel muito importante. Foi essencial para eu ir descobrindo tudo o resto, desde a pintura, à fotografia, à instalação de vídeo. Isso fez com que eu começasse a realizar videoclips, depois dos videoclips comecei a pensar que, se calhar, queria realizar um documentário e, quando percebo que no cinema eu posso juntar tudo aquilo que fui aprendendo ao longo desses anos — e depois de uma historia pessoal complicada — decido vender tudo e ir.

Fez um reset?
Sim. Foi exatamente isso. É engraçado: eu digo muitas vezes que este filme vem do sentido de justiça do meu pai, que foi juiz a vida toda, mas devia também lembrar-me, como me estou a lembrar agora, que esses resets e esses reboots, são precisamente a força que a minha mãe me ensinou sobre as adversidades ou sobre os momentos de tristeza. E, portanto, é agarrar em momentos de dificuldade e transformá-los. Não é que eu tenha tido uma vida difícil. Sou uma privilegiada, sinto-me uma privilegiada, com todas as portas e janelas que tenho tido abertas ao longo do caminho. Mas também sinto que é preciso, durante a vida, sabermos agarrar nessas adversidades e sabermos vivê-las de uma maneira em que se transformem numa mais-valia. É transformá-las em oportunidades.

Como se fossem uma mola.
Exatamente.

ana rocha

Alguma vez sentiu, enquanto fazia televisão, que não era levada a sério?
Na transição de um sítio para o outro [da televisão para o cinema] sim. Mas, enquanto fiz televisão, fui sempre muito levada a sério e sempre me senti muito respeitada. Sempre me senti muito gostada e acarinhada pelo meio. Aquilo com que começou a ser mais difícil de lidar foram coisas exteriores — não tinham que ver com a profissão em si. Coisas colaterais: o aparecer demais, o estar constantemente nas revistas. Foi uma coisa que se tornou invasiva. No início, achava muito bem e, depois, com o passar dos anos, com o crescer, fui mudando a minha forma de crer e de estar. E isso começou a ser um conflito e começou a criar umas mossas. Já não era só chegar e fazer o meu trabalho. Era mais do que isso. E eu tinha culpa, porque isto era o resultado de escolhas anteriores. As pessoas podem fazer televisão e não são obrigadas a aparecer. Mas as minhas escolhas foram estar sempre muito disponível para isso. A partir de um determinado momento, a pessoa muda, transforma e cresce.

Isso é consequência de ter começado tão nova. No início há o encanto de aparecer e depois chega a vontade do recolhimento?
Exatamente. Esse recolhimento depois já não nos é permitido da mesma maneira. É como se deixássemos de ter direito a isso. E isso provocou-me muita mossa. E eu quis mesmo fazer um reboot a isso. A decisão de passar para trás das câmaras também tem que ver com isso.

Em que medida é que a fama começou a tornar-se demasiado invasiva?
Eu estudava nas Belas Artes do Chiado, era a miúda da televisão. Saia diariamente no Rossio, subia e descia o Chiado e, todos os dias, o Chiado tinha dois a três papparazzi plantados nos mesmos sítios, não para me seguirem a mim especificamente, mas porque era o Chiado. Como vivia ali, passava sempre naquele sítio e, por mais que fizesse voltas por trás ou por não sei onde, acontecia-me ter de lidas todas as semanas as semanas, constantemente, com esse tipo de fotografias. Hoje em dia, creio que é um sistema que não tem o mesmo impacto, porque com o Instagram ou com o Facebook, são as próprias pessoas que se expõe a si mesmas — em vez de serem fotografadas por alguém que lhes rouba a alma. E eu não me importo nada de tirar fotografias, de partilhar a minha vida e faço imenso isso. Agora, são escolhas minhas. Não são outras pessoas que se escondem atrás da câmara. Aquilo deixou de me fazer sentido. Chegou a um momento em que eu já não queria aparecer, em que eu já não queria trabalhar enquanto atriz. E isso continua a acontecer.

Criou uma aversão?
Sim, mas não foi por isso que eu decidi que queria ser realizadora. Foi uma coisa que surgiu mesmo da dinâmica de ir descobrindo a junção de várias artes. Comecei desde miúda a pintar, a desenhar, gostava de escrever e a conjugação de tudo — também com a interpretação, com os vídeos e a descoberta das instalações e do trabalho de fotografia, em conjunto com o trabalho enquanto atriz — fez-me um dia ver que aquilo que eu gostava se chamava cinema. Era no cinema que isso se fazia. E aí decido que para fazer cinema tinha de ir para fora. Tinha de ir experimentar.

lucia moniz

Como é que foi o primeiro dia de aulas em Londres? Chegar à faculdade outra vez.
Eu sou muito envergonhada. Não parece, mas sou. E esse primeiro dia de aulas é aquele confronto com o salto de pára-quedas. Há aquele momento em que temos, pura e simplesmente, de ir. Esse impulso para o salto é que é difícil. É a coragem de nos conformarmos com um momento em que tem de ser.

O que é que lhe custou mais vender?
A minha casa na Bica. É uma casa e um bairro que me fazem falta.

"Essa hostilidade que eu possa sentir às vezes acho que vem do facto de vir da televisão. Mas acho que, neste momento, o mais importante não é focar-me em qualquer tipo de hostilidade e desconforto. Aprendi que o importante, quando existe hostilidade, é saber atravessar a sala. E é seguir e perceber que, se existem questões, que essas questões não estão em nós e que, por isso, não temos de nos questionar sobre isso."

Porquê?
Porque ali foi onde eu, efetivamente, encontrei a minha casa.

Esta partida não significou só ir viver para fora. Significou desfazer-se de tudo o que tinha. Deve ter custado muito.
Sim. Mas também tem essa magia, até quase cinematográfica, de "eu e uns caixotes". E tem o lado daquilo que é mais importante em tudo, que é a liberdade.

Entrou no meio predominantemente de homens. É difícil ser realizadora num universo tão masculino?
Não sei. Como nunca fui homem, não sei como é que seria tratada se fosse homem. Mas tenho tendência para acreditar que, talvez, fosse mais fácil.

Em que aspetos?
É difícil. Nós não temos como saber, porque estamos a falar de uma pessoa que tem outras condicionantes. Eu tenho condicionantes que estão relacionadas com o facto de vir de um meio [o da televisão] que é posto em causa com facilidade. O impacto que eu sinto será sempre esse. Existe muito essa diferenciação entre o cinema e a televisão. São meios completamente diferentes e acho muito bem que exista essa diferença. São trabalhos distintos. Acho é que não há necessidade de haver hostilidade entre os meios — e às vezes existe. E essa hostilidade que eu possa sentir às vezes acho que vem do facto de vir da televisão. Mas acho que, neste momento, o mais importante não é focar-me em qualquer tipo de hostilidade e desconforto. Aprendi que o importante, quando existe hostilidade, é saber atravessar a sala. E é seguir e perceber que, se existem questões, que essas questões não estão em nós e que, por isso, não temos de nos questionar sobre isso.

O mais irónico é que atravessou a sala do Festival de Veneza várias vezes. Foi uma chapada de luva branca.
Eu não quero nunca, em momento nenhum, sentir que isto que eu consegui e que tenho vindo a conseguir que seja visto como uma chapada de luva branca.

É outro dano colateral.
Eu sei. Mas esse ideia de chapada de luva branca seria, talvez, o pensamento daquela miúda dos 18, 19 ou 20 anos, com a rebeldia ou irreverência que ela tinha. Acho que isso tem um lado indomável ótimo, mas eu já não sou essa pessoa. Eu transformei-me verdadeiramente. Este filme transformou-me muito. A vida transformou-me muito. Não sou mesmo pessoa de chapada de luva branca. Não sou. Tenho vindo a aprender que tudo na vida se resolve de outra maneira. Resolve-se com compreensão, com amor e sem chapadas.

É desfazer-se do ego?
Exatamente. Eu aceito todas as pessoas posições completamente contrárias à minha e que acham que é um disparate eu poder existir ou respirar. Para mim está tudo bem, porque eu não sinto isso em relação a ninguém. E isso é que é importante: seguir o meu caminho sem sentir nada disso em relação a ninguém. Não quero sentir. É uma opção minha.

"Eu transformei-me verdadeiramente. Este filme transformou-me muito. A vida transformou-me muito. Não sou mesmo pessoa de chapada de luva branca. Não sou. Tenho vindo a aprender que tudo na vida se resolve de outra maneira. Resolve-se com compreensão, com amor e sem chapadas."

Mas nunca sentiu, ou evoluiu para um sítio em que deixou de sentir?
Evolui. Eu era muito essa menina da revolta, com a graça que uma revolta pode ter.  Vivia com essa curiosidade e intensidade que essas coisas têm. E descobri um lugar, ao longo da vida, que para mim é muito mais sereno e tranquilo. E, honestamente, é atingir aquele momento em que pensamos: “Eu só quero que as pessoas vão em paz”. Porque assim eu também estou em paz. E, quanto não estão, eu lamento imenso por elas. Mas sigo o meu caminho.

Foram momentos específicos da vida que a ensinaram a ser mais serena?
Acho que sim. Acho que acontecem quando quando sentimos que somos um barco sozinho na maré, quando existe um caminho de introspecção que nos faz conhecer mo-nos melhor. Isso acontece em separações difíceis, quando se passa por amizades conturbadas, em momentos de dor, momentos de perda, inclusive a perda de familiares — a morte do meu tio, da minha avó, são momentos marcantes e que nos trazem a noção da finitude. Este ano, a pandemia, o isolamento. Tudo isto são coisas que nos transformam. E naturalmente, a maternidade.

maternidade

Como é que foi investigar um filme que tem que ver, precisamente, com o amor aos filhos, com a falta deles, com a sua ausência?
Acho que não há terror maior do que perder um filho. E acho que este filme nos confronta diretamente com isso. Fui confrontada com essa possibilidade ao ver, ao aperceber-me destas realidades e isso foi um processo muito duro, mas que me fez agarrar para isto. Foi uma mola que me impulsionou para, de repente, perceber que isto era urgente, que tinha de ser feito, como é que é possível que não haja gente a falar sobre isto todos os dias. Todos os dias há gente a falar sobre os mortos de COVID, mas não há pessoas todos os dias a falarem sobre as crianças que são retiradas aos pais e dadas para adoção. Mesmo quando fica provado que um erro ocorreu na avaliação, eles não retrocedem o processo. Ainda é assim.

Como é que é dirigir crianças?
Há vários truques que se podem usar, mas eu não gosto de truques. Prefiro cinema sem truques. Às vezes não é possível, porque surgiu o problema e não há tempo, por exemplo. Há determinadas coisas que, efetivamente, temos de fazer como ilusão e não com a maior das honestadas e sinceridades, no que se refere ao que se faz em frente às câmaras. Eu gosto de enveredar pela verdade da interpretação. Às vezes, se for preciso fazer de outra forma, faço, mas prefiro sempre a verdade.

"É difícil o caminho da paz. Normalmente, é um entendimento entre um polo e o outro. E tenho profundamente tentado esse caminho onde se aproximam os polos. E tenho vindo a perceber que quanto mais paixão e envolvimento as pessoas têm em relação ao que acreditam — posições políticas, pessoais, ideias — mais polarizadas são."

Disse no podcast “Maluco Beleza” que se sente no meio e que esse sítio é solitário. Podia explicar esta ideia?
Quando digo que estou no meio é numa perceptiva de nunca ter uma posição extremada, polarizada. E, depois, tenho sempre ideias muito próprias, com características muito específicas. É difícil o caminho da paz. Normalmente, é um entendimento entre um polo e o outro. E tenho profundamente tentado esse caminho onde se aproximam os polos. E tenho vindo a perceber que quanto mais paixão e envolvimento as pessoas têm em relação ao que acreditam — posições políticas, pessoais, ideias — mais polarizadas são. E eu tentei neste filme que isso não acontecesse. E existe, claramente, uma posição minha e olhar meu. Mas tento que esse equilíbrio exista.

Objetividade?
As pessoas podem estar em pólos completamente opostos e serem completamente objetivas. E terem a absoluta crença de que aquilo que é o certo e não ter a capacidade de se colocar no papel do outro. É mais do que objetividade ou imparcialidade: é chegar à compaixão de perceber o lugar do outro. É aí que a vida ganha magia. É nesse entendimento da paixão.

Há uma falta de compreensão geral para esse sítio híbrido. A sociedade tende a exigir que se escolha um lado da barricada. É por isso que se sente sozinha?
Sim. É isso mesmo.