Chamar-lhe fado não é ultraje porque Beatriz é fadista. Quase desde o berço. Nascida em Coimbra, mudou-se para Lisboa em 2019 para perseguir o sonho de uma carreira no mundo da música. Depois, como conta, de concluir a licenciatura em Economia, uma exigência do pai para poder abandonar a cidade natal.

Há pouco mais de um mês, a artista de 22 anos lançou o single, "Ficamos por Aqui", que já conta com mais de 100 mil visualizações e que é a primeira amostra do EP, construído em conjunto com dois nomes bem conhecidos da música pop portuguesa: Agir e Ivo Lucas.

À conversa com a MAGG, Beatriz Rosário fala da sua paixão incondicional pelo fado, da admiração por Amália Rodrigues. Começámos por provocar a jovem fadista com uma comparação a Rosalía, a cantautora espanhola que trouxe o flamengo para o século XXI com o álbum "El Mal Querer" e se tornou um fenómeno planetário.

Deixe-me começar com uma comparação odiosa: considera-se a Rosalía portuguesa?
(risos) Não me considero a Rosalía portuguesa no sentido em que cada pessoa é única e ela tem uma cultura diferente da minha. Acho que não podia fazer essa analogia. Eu sou a Beatriz Rosário, estou aqui para fazer o meu caminho. Neste momento não pretendo ir pelo fado tradicional, apesar de o fado ser a minha casa. Quero poder fazer um caminho diferente e, acima de tudo, arriscar. Na vida é preciso arriscar. Às vezes há medo mas quero deixar o medo para trás e já deixei.

Como definiria o seu primeiro single "Ficamos por Aqui"? 
Definiria como um novo fado. Tem uma voz de uma fadista, a minha, tem a guitarra portuguesa. Tem os elementos mais importantes do fado, no entanto tem uma roupagem nova, eletrónica, com alguns elementos modernos, pop. Diria que é um fado, em que se conseguem perceber os elementos tradicionais, mas que tem uma roupagem mais colorida e fresca. É um fado alternativo.

Considera que a letra tem uma mensagem de empoderamento?
O próximo tema que vamos lançar tem uma mensagem de empoderamento. Esta letra em específico fala do amor, no sentido em que a pessoa sente que deve deixar a outra mas, ao mesmo tempo, não tem força para dizer 'basta'. De alguma maneira, dá ao tempo essa responsabilidade de acabar com a relação.

Tem a ver com algo que todos passamos na vida, que é decidir se somos mais felizes sozinhos ou mal acompanhados. Acho que somos mais felizes sozinhos mas, às vezes, chegar a esse ponto de equilíbrio, vivemos aquele passo de 'será que vou acabar com a pessoa ou não?'. Então esperamos que o tempo dê essa resposta.

Foi inspirada em alguma experiência pessoal?
Foi. Falei com o Ivo [Lucas] sobre um relacionamento meu, e depois ele começou a escrever sobre isso. Esse poema faz muito sentido porque acho que não é uma realidade só minha. É uma realidade que muita gente vive nas relações. É muito difícil lidar com as pessoas e saber gerir uma relação.

Nós associamos o fado ao sofrimento e esta música tem uma dose disso. Mas é visto de uma perspetiva diferente, em que a protagonista sabe que está a sofrer mas sabe também que vai passar. Quase como se desse uma roupagem nova aos temas clássicos do fado.
Parece que a pessoa está triste com o seu estado, no entanto parece que está a cantar, sorrindo com a sua própria tristeza.

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Já canta fado há vários anos.
Comecei a cantar em casas de fado muito nova. Ia de Coimbra para Lisboa e estava com muitas fadistas, como a Maria da Fé, no Senhor Vinho, o Mário Pacheco, que é um excelente guitarrista, do Clube de Fado... e a partir daí fui conhecendo músicos de grandes fadistas, como Carlos do Carmo, Mariza... a partir daí fui conhecendo, em determinadas noites mais boémias, a Raquel Tavares, a Ana Moura... muitas pessoas do meio fadista foram-me ensinando coisas. Só que, antes de vir para Lisboa, em 2019, eu já tinha uma vontade dentro de mim... Eu ouvia muito Dino D'Santiago e achava muita piada à maneira como ele pegava na sua cultura e conseguia 'vestir' o seu género. E eu pensei 'bolas, será que eu não posso fazer o mesmo para o fado?'. Fiz uma viagem, fui até Cuba para me inspirar, cheguei a Portugal e fui confrontada com uma realidade totalmente diferente.

Fui viver sozinha, já não estava com os meus pais, estava a toda a hora com jovens. Íamos para imensos festivais, que é uma coisa que eu adoro em Lisboa. É uma cidade muito rica culturalmente. Ia para imensos bares ouvir música, para casas de fado a toda a hora, ia levando com muita música eletrónica e eu pensei, de uma forma natural, que gostava de fazer esta combinação. Ao mesmo tempo, falava com o Agir e com o Ivo, e eles disseram: 'Bia, acho que podemos experimentar fazer uma coisa diferente, sem compromisso'.

Temos vindo a trabalhar em cinco temas, todos um bocadinho diferentes. As músicas do Agir são mais sofridas, têm ali uma portugalidade pesada, enquanto que as do Ivo têm também, mas mais fresca, digamos. E eu pensei, 'ok, vamos lançar isto e vamos ver o que é que o público vai achar'. O primeiro single tem corrido bem, o feedback tem sido muito positivo. No fim de semana até me emocionei, chegámos ao top 25 da RFM. Sinceramente não estava à espera, quanto mais chegar à terceira. Está a correr bem.

Beatriz Rosário em 2018
Beatriz Rosário em 2018 créditos: DR

A sua mudança de estilo musical vem acompanhada de uma nova imagem. Em que momento tomou essa decisão e a quem recorreu para fazer essa transformação?
Acho que a música tem de estar ligada à imagem, de uma forma natural.  Eu pensei 'se agora estou a fazer um género diferente, a criar um estilo próprio, não faz sentido estar a cantar com um vestido preto, comprido e com xaile'. Até posso fazê-lo mas de uma forma diferente. Continuo a usar, por exemplo, brincos e colares de filigrana, porque amo, mas posso usar uma t-shirt mais moderna e fazer esse mix entre a tradição e a cena mais nova. Tenho um amigo stylist, o Diogo Pires, a quem pedi ajuda. Eu já sabia o que queria mas acho que precisamos sempre de nos aconselharmos com quem sabe e trabalha nesta área. Ele foi-me dando uns inputs e tem sido um processo muito natural. Acima de tudo, gosto muito de ver como é outros artistas, lá fora, fazem. E não é imitar. É poder ver várias coisas para também chegar à minha própria identidade.

"Às vezes mais vale ter uma voz pequena e cantar com a alma do que ter uma voz grande e estar ali aos berros"

Está a trabalhar com o Agir que, apesar de ter créditos firmados no mundo da música, quando começou, e também por ser filho de quem é [Paulo de Carvalho] foi alvo de críticas. Ele deu-lhe dicas sobre como lidar com os puristas?
É engraçado que, a cantar com ele, muitas vezes eu é que era a purista (risos)! No fado há regras, dá-se muita primazia à dicção, à maneira como se canta na sílaba tónica, tem de estar tudo certinho. Porque, se eu vou para uma casa de fados e acentuo na sílaba átona, já me dizem 'é pá, esta aqui não sabe o que está a fazer!'. Quando ele me escreve músicas, eu estou a cantar 'à fado', e ele me diz 'Bia, tens de cantar assim mais, 'tás a ver?', e eu 'não posso fazer isso!'. Então encontrámos ali um ponto de equilíbrio.

Mas sobre aquilo que outros poderiam dizer, às vezes também me saía com alguns pensamentos e ele dizia-me 'na arte não há limites. Tens de fazer aquilo que te apetece'. Tive um almoço com o Murta, que é um artista de quem gosto, e ele disse-me 'na arte, não podes ter barreiras. Podes começar assim e nada te vai proibir que o próximo EP, ou álbum, ou o que seja, seja a Beatriz Rosário a cantar fado, puro e duro'. Esse é o caminho do artista. O Agir também me disse que são importantes as vivências que estou a ter. Ainda bem que fui para Lisboa viver sozinha. Porque acho que um artista tem de explanar na música aquilo que vai vivendo. É por aí a arte, não haver restrições.

Em relação às críticas, já ouviu alguma menos agradáveis?
É engraçado porque, mesmo os puristas, os amalianos me mandam mensagens a dizer 'eu sou amaliano mas devo confessar que gosto da maneira como a Beatriz canta e vá com a sua verdade'. Eles dizem também 'eu só não gosto quando elas se põem a gritar. E a Beatriz não grita'. Essas pessoas dizem uma coisa que é verdade: às vezes mais vale ter uma voz pequena e cantar com a alma do que ter uma voz grande e estar ali aos berros. Por acaso não tenho uma voz pequena mas controlo-me.

Acha que Amália Rodrigues gostaria do seu single?
Acho que sim! Sinceramente, acho (risos)! A Amália sempre foi uma mulher visionária. Foi muito criticada na altura por cantar outros poetas que não os populares: cantou Luís Vaz de Camões, cantou bossa nova, cantou com orquestras, diziam que ela não era fadista, até que ela disse, numa entrevista, 'realmente isto não é fado, é Amália Rodrigues'. Acho que ela iria gostar disto. Se já na altura ela significou tanta evolução para o género, a evolução natural é aquilo que eu estou a tentar fazer. Ela não gostava era quando a imitavam.

Consegue encontrar uma explicação para o facto de serem as mulheres as mais vanguardistas no fado português?
Não consigo encontrar uma explicação para isso, mas é verdade. As mulheres parece que se dão mais a esse luxo, a esse cunho pessoal, digamos assim.

O seu primeiro contacto com o fado dá-se através da sua avó. Sendo natural de Coimbra, é com o fado dessa cidade ou com o de Lisboa?
Não sei porquê, apesar de ser de Coimbra, o que me apaixonou foi o fado de Lisboa. Em casa, de uma forma natural, ouvia muito fado de Amália Rodrigues. E isso, de alguma maneira, influenciou-me a ser aquilo que hoje sou e quero continuar a ser. Os meus avós sempre ouviram muita música popular portuguesa e muito fado. Eu ouvia rancho, ouvia tudo o que é típico português. E gosto! Sou mesmo portuguesa. Então, de uma forma natural, eles iam-me ensinando vários fados. Comecei a cantar, depois fui aprender piano e deixei porque só queria cantar, até que comecei a cantar os clássicos da Amália. Depois dos clássicos vieram os fados mais fortes, o fado tradicional, em que me davam listas e eu ia estudar, comprava livros para saber como é que o fado nasceu, como se constrói... e foi todo um conhecimento que comecei a fazer a partir daí. Dessa curiosidade.

Quando é que começa a cantar em casas de fado?
Aos 16, 17 anos, por volta dessa idade. Não foi muito cedo. Antes de chegar aí, fiz esse trajeto. Tive aulas de canto, cantei ópera, depois percebi que não era a ópera que eu queria porque tinha sempre aquele bicho dentro de mim. Não tinha como fugir a ele.

Apesar de ser comum, hoje em dia, gostar de fado, não é muito comum numa adolescente. Era motivo de curiosidade ou gozo na escola?
Era. Antes de o fado se ter tornado património imaterial da Humanidade, em 2011, quando cantava para os meus amigos era gozada. Não sei porquê, era como se estivesse a cantar pimba. E o pimba também não deve ser gozado. Mas a sensação era de que era exatamente a mesma coisa. E, por vergonha, na altura, comecei a cantar outras coisas que não fado, na tentativa de fugir a esse estigma, a essa criticazinha. Comecei a cantar Whitney Houston, Céline Dion, porque sempre gostei de cantoras com vozeirões. Tentei fugir. Meti-me em aulas de canto. Ópera. Depois, com o tempo percebi que não tinha como fugir à minha condição natural, que era cantar o fado. A partir de 2011, quando dizia que cantava fado, já era muito bonita (risos)! É engraçado como a mentalidade muda tanto.

"Por vergonha comecei a cantar outras coisas que não fado, na tentativa de fugir a esse estigma, a essa criticazinha"

Ter-se mudado para Lisboa foi uma decisão difícil?
Não (risos). Eu já queria ter vindo há mais tempo mas o meu pai é que tinha receio que isso me impedisse de acabar a licenciatura. Na altura respeitei, mas fiz um acordo com ele: 'Eu vou terminar a licenciatura mas depois vais deixar-me ir para Lisboa'. Tentei despachar o curso de Economia, gostei muito, foi muito fixe mas... ala que já se faz tarde (risos)! A partir do momento em que estou em Lisboa, surge um novo eu. Estou sozinha, com amigos, é toda uma atividade, Lisboa tem imensa oferta de tudo. Enquanto pessoa, estou a crescer muito. Deparo-me com características minhas que quero aprender, que quero melhorar e controlar isso.

Houve algum momento em que pensou que não devia ter tomado essa decisão?
No mundo da música, e das artes em geral, a pessoa tem de ter uma grande capacidade emocional perante as coisas. Não digo que o caminho até agora tem sido fácil. Já chorei muito, já tive alguns ataques de ansiedade porque nós queremos lançar as coisas num determinado tempo e há contratempos. Agora estou mais calma, e a saborear o momento, mas o caminho até agora não tem sido fácil. Comecei em setembro de 2019 e só agora, em 2021, é que estou a lançar os temas.

Vai lançar o EP no final do ano. O que tem planeado para os próximos tempos?
Já me convidaram para fazer algumas atuações, ainda este ano. Acima de tudo, a minha prioridade é lançar os singles, dá-los a conhecer às pessoas e terminar em beleza com um concerto de apresentação, no final deste ano.

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