Porque é que só há homens no rock? A questão foi-se intensificando na cabeça de Francisca Marvão, 35 anos, pela altura em que o bar e sala de espetáculos da Graça, o Damas, em Lisboa, abriu portas em 2015. Aqui trabalhou com a exceção: "Deu-me contacto mais próximo com as bandas, no geral. Até havia, todas as sextas, o Damachine, que era a noite dedicada às mulheres que fazem música. Foi aí que eu comecei a filmar."

De resto, pouco se falava de rock no feminino. Onde é que andavam as mulheres? Como se diz na gíria popular, elas andam aí. Entre conjuntos integralmente femininos e mistos, temos as Anarchicks, as Panelas de Pressão, as Decibélicas, The Dirty Coal Train, Savage Ohms, Clementine ou ainda Lena D’Água, uma das primeiras mulheres a integrar, nos anos 70, uma banda de rock portuguesa, os Beatnicks. São alguns nomes, mas pouco faltará para que a lista fique completa.

Em Portugal, o rock no feminino continua a ser pouco e a não ter muita representação. A realidade do País é e sempre foi assim, contrariamente à de Espanha, em que, apesar de uma paridade longe de ser perfeita, é um pouco menos coxa do que no cenário português.

O problema da visibilidade da mulher no mundo artístico é real, mas agrava-se quando falamos de um estilo musical que sempre foi visto no masculino. Porque é que é assim? Mais uma vez, não há respostas fechadas, mas falar em tradições culturais e estruturas sociais que têm séculos — por mais que se estejam a diluir, ainda há vestígios disto — poderá justificar parte desta verdade.

O rock é barulhento, tem um som distorcido. As mulheres não tinham como encaixar neste tipo de sonoridade. Era assim, pelo menos, no tempo de Maria Teresa Horta, 82 anos — uma das autoras do livro "Novas Cartas Portuguesas" — que lembra que, pela altura em que o género das guitarras amplificadas surgiu, este era visto como algo “pornográfico”, como um sinal de desobediência.

O pai, relata no documentário, proibiu-a terminantemente de ouvir este tipo de música, que, considerava, "desviava as mulheres". Mas ela queria ouvir. Afinal, esta que é uma das figuras mais reconhecidas do feminismo português, já estava empenhada na luta pela liberdade e pela igualdade.

Não foi à MAGG que Maria Teresa Horta falou sobre isto. Foi, sim, em “Ela é uma Música”, o documentário dedicado às mulheres de várias gerações do rock português. Nasceu da curiosidade de Francisca Marvão, que foi à procura de resposta para a sua pergunta. O resultado está neste filme de duas horas, construído no decorrer de quatro anos — com os devidos interregnos, porque nem sempre o dinheiro chegava, uma vez que não houve qualquer tipo de financiamento.

Teve a estreia a 10 de maio, no festival IndieLisboa, e vai correr o País numa digressão (com início marcado já para 16 de agosto, na comunidade O Moinho, junto de Espinho) em que se junta ao visionamento do filme, concertos de rock de bandas femininas e ainda a possibilidade de debates sobre todas as questões que o tema levanta. “Este filme é sobre música, mas não é só sobre música. Fala sobre questões sociais e de género. Portanto queremos discutir isso”, diz a realizadora, natural de Viseu, à MAGG.

No Dia Mundial do Rock, que se celebrou a 13 de julho, sentámo-nos com Francisca Marvão numa esplanada da Avenida da Igreja, em Lisboa, e festejámos este estilo musical, numa conversa que se focou no contributo feminino.

Um documentário que não é só sobre música

É preciso deixar claro. Em “Ela é uma Musica”, que vai ser exibido a 27 de julho, no festival MIMO, o objetivo de Francisca Marvão não foi o de levantar uma bandeira feminista. “Eu quis que fosse o mais neutro possível”, conta à MAGG. “O objetivo principal era mostrar o trabalho destas pessoas." Só que é como a realizadora referiu: separar o universo do rock feminino das questões relacionadas a mulher é difícil.

São alguns os entraves colocados à mulheres e bandas femininas do rock e esta foi uma descoberta que a realizadora foi fazendo no decorrer deste trabalho, que, com a ajuda de Helena Inverno (produtora associada e captação de som), Paula Marvão (produção e assistente de produção) e Rita Grácio (no papel de consultora de conteúdos — não fosse a sua tese de doutoramento dedicada precisamente às mulheres do rock português), acompanha cerca de dez bandas de rock constituídas por mulheres.

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Contando com o testemunho de mulheres de diferentes gerações, Francisca quis fugir ao formato documental standard e, por isso, além de imagens de concertos, momentos na estrada e ainda cenas mais performativas — criadas de propósito para o filme —, juntou várias personalidades deste universo e pô-las à conversa.

É possível ver Lena d’Água a debater o tema com Adelaide Ferreira; Sónia Cabrita, baterista da banda As Gaijas, com Cláudia Guerreiro, baixista dos Linda Martini; Helena, das Anarchicks, com a locutora Ana Markl; Xana (Alexandra Carmo) dos Rádio Macau com Ana Deus, dos Três Tigres Tristes; e ainda o trio Shelley Barradas, antigo membro dos The Dirty Coal Train e Vaiapraia e as Rainhas do Baile, atualmente parte da dupla Clementine, com Ana Farinha de Les Baton Rouge, e Ana da Silva, do conjunto dos anos 70, The Raincoats.

As Pega Monstro, Rock A’Lady, as Panelas de Pressão, as Decibélicas ou Teresa Castro, das Savage Ohms, são outros dos nomes femininos que surgem no documentário.

Tendo feito esta espécie de viagem no tempo, Francisca Marvão diz que o cenário do rock português feminino não mudou assim muito com o correr dos anos. Continua a haver poucas mulheres, mas não se pode negar “que é menos mal visto” e que é socialmente “mais aceite.”

Francisca Marvão, 35 anos, é formada em cinema. No decorrer do documentário, criou a sua própria banda

Francisca notou uma coisa engraçada: “Antes as mulheres apareciam a cantar ou no baixo. Nesta procura que fiz, percebi que, hoje, há imensas mulheres bateristas. Encontra-se mais facilmente uma mulher baterista do que uma mulher guitarrista."

Sobre os tais entraves, Ana Markl consegue dar um exemplo da forma como a música interpretada por mulheres é condicionada: um estudo sugeriu que, na criação de playlists, não se passassem, de forma seguida, três músicas interpretadas por mulheres, quase como se temas femininos formassem um género único, como o jazz ou o hip-hop.

Há ainda outra questão. Pode ser um mal do ser humano no geral ou resquícios de hábitos culturais e sociais: homens que não reconhecem competência à mulheres. No documentário fala-se também sobre isto: por exemplo, técnicos de som que entram em conflito com as escolhas das artistas, quase como se estas não tivessem conhecimento suficiente para tomar decisões referentes ao seu próprio trabalho.

Além disto, há a maternidade: “É frequente deixarem as bandas, porque é a mulher que cuida do filho. Com os homens não é assim. As coisas estão a mudar, mas isto ainda é uma questão, tanto que houve bandas a falaram sobre isto — como as Decibélicas e as Panelas de Pressão [ainda que houvesse também relatos de mulheres que, depois de serem mães, conseguiram conjugar a maternidade com a música, porque puderam contar com o apoio dos namorados].”

Mas há também o antigo chavão sobre o resultado de várias mulheres juntas. É este um dos temas sobre o qual Sónia Cabrita e Cláudia Guerreiro discutem. Ambas sabem como é trabalhar dos dois lados. As coisas tendem a correr de forma diferente numa banda mista ou numa banda integralmente formada por mulheres, onde podem tornar-se evidentes particularidades tidas como femininas, como “o choro” ou “o drama”.

Quase todas as mulheres do rock português têm carreiras profissionais fora da música. Beatriz, dos The Dirty Coal Train, é apicultora

Por outro lado, a realizadora notou ainda que quase todas as mulheres que colaboraram no documentário tinham carreiras profissionais fora da música. Foi uma das descobertas mais surpreendentes que fez. "Todas têm outras profissões, exceto três ou quatro que vivem apenas da música. Uma é veterinária, outra é palhaça, outra é apicultora. Trabalham imenso, mas têm uma relação enorme com a música. Por mais cansadas que estejam do trabalho, têm sempre tempo para tocar".  E muitas fazem-no, mesmo que o retorno financeiro seja nulo. "Ver este esforço... fiquei a admirá-las muito. São pessoas que dão muito."

O documentário “Ela é uma Música” termina como improviso num ringue de boxe. Francisca Marvão juntou 13 mulheres, de registos musicais diferentes, desde o clássico ao rock, e pô-las a tocarem em conjunto. O encerrar das filmagens é sempre marcante, mas, neste caso, o momento ficará cravado na sua memória por outros motivos. “Esse dia foi muito bonito”, diz. “Houve uma enorme entre-ajuda, uma ótima energia”. O resultado? “É como diz uma amiga minha: fizemos uma orquestra de rock.”

“'Ela é uma Música' em digressão”

“Ela é uma Música” — nome que tem duplo sentido, porque “música” tanto pode ser referente ao facto de ela tocar um instrumento, como, num sentido mais poético, ser uma alusão a ela ser a própria canção — vai iniciar uma digressão já em agosto.

Já há três datas marcadas, mas o objetivo é encher a agenda, no decorrer de um ano. Há diferentes propostas para a forma como esta tour vai decorrer: pode haver só o visionamento do documentário; pode somar-se a isto um conjunto de cerca de dez concertos, replicando aquilo que já aconteceu na Casa Independente, em Lisboa, em que várias artistas que aparecem no documentário atuaram; adicionar-se a isto atuações de DJ e ainda debates em torno do rock feminino, da mulher e papéis de género.

Shelley Barradas fez parte da banda Dirty Coal Train e Vaiapraia e as Rainhas do Baile, integrando agora a dupla Clementine

“A digressão vai arrancar no Moinho [Espinho] a 17 de agosto”, conta. Segue a 21 de setembro para Valada, no Cartaxo, e a 8 e 9 de setembro para o Sabotage, em Lisboa, onde decorrerá uma espécie de mini-festival de rock feminino. Havendo a componente dos concertos, no cartaz poderão estar nomes Lena D’Água, Anarchicks, Panelas Depressão, Decibélicas, The Dirty Coal Train, Aurora Pinho, Clementine, Ela é uma banda, Teresa Castro, Savage Ohms, Violeta Espectro e ainda Matriarca Paralítica, a banda “de rock com atitude de punk” formada por Francisca e amigas há cerca de oito meses.

Terminamos com um pouco de trivia, que tem tanto de relevante, como de irónico. Aqui vai: ainda que o aparecimento oficial do rock em Portugal esteja associado aos Os Conchas e Daniel Bacelar, nos anos 60, a verdade é que o seu berço é um pouco mais feminino. Como explica no documentário o arquivista Luís Futre, em conversa com Ondina Pires, antigo membro dos Pop Dell' Arte e da banda The Great Lesbian Show, a música dos amplificadores e da distorção, já cá tinha chegado, pela voz de Zurita de Oliveira, irmã do ator Camilo de Oliveira. À moda do jornalista Fernando Pessa, e esta, hein?