Meghan Markle marcou a diferença ainda nem sequer estava de aliança no dedo. Ex-atriz, pele escura e divorciada. E, desde 2018, membro da família real.
Está longe do estereótipo da princesa que todas as rainhas imaginam para continuar o legado real, mas também a pessoa que escolheu como sua, o príncipe Harry, nunca foi muito de seguir as normas impostas. Não é por acaso que sempre foi tido como o filho que mais características herdou da mãe, a princesa Diana. Além do carácter humanitário que o fez embarcar em várias missões, nunca teve medo de falar com a imprensa, nem de ir contra as regras estipuladas.
Agora, depois de meses de silêncio, o casal veio a público anunciar o afastamento da família real. Ambos pretendem trabalhar para serem financeiramente independentes, ainda que deixem a garantia de que vão "continuar a apoiar totalmente sua majestade, a rainha".
E ainda que aquilo que um casal de príncipes faça tenha uma repercussão mundial, a verdade é que a decisão que Harry e Meghan tomaram é bastante comum. Afinal, quem nunca se deparou com situações familiares de algum conflito devido à incompatibilidade de crenças, valores ou tradições?
Algumas, por trazerem consigo diferenças ou disputas tão profundas, levam a um corte quase total com as raízes.
Cândida não esperava que esse fosse o seu caso, mas a verdade é que ainda nem tinha entrado na adolescência e já via o seu caminho dificultado por uns pais que lhe deixavam pouca margem para ser quem queria ser.
A partir do momento em que contou que queria seguir arquitetura, o pai nunca mais lhe falou. "Menos do que medicina era pouco", explica à MAGG.
Agora, aos 53 anos, admite que, "estupidamente", acabou por acatar e seguir Matemática, na esperança de estreitar laços com o pai. Mas isso não aconteceu. Não só continuou sem lhe falar como a expulsou de casa, quando soube que não pretendia casar com o namorado da altura.
E quando aqui podemos pensar que estamos perante um gap geracional ou de pessoas com pouca formação, não. Esta é uma família de pessoas formadas e a viver no centro de Lisboa. E o motor desta rutura foi mesmo a irmã mais nova de Cândida, que por ter outros ideais mais conservadores, convenceu os pais de que o seu caminho não era o adequado.
Cândida acabou então por seguir Matemática, é engenheira informática e apazigua a vontade de ter sido arquiteta com pequenos cursos de costura e fotografia, sempre apoiada pela filha Sofia que, aos 26 anos, nunca teve contacto com os avós. "Sempre vivi bem com isso. Se tiver que tirar uma lição, só mesmo a grande vontade de começar a minha própria família".
A dificuldade de marcar uma posição
O choque familiar acontece principalmente devido às expectativas que os pais põem nos filhos e com a vontade de verem perpetuado o seu modelo familiar. Quem o diz é Manuel Peixoto, terapeuta familiar, que adianta ainda à MAGG que "todos nascemos num modelo feito de códigos e tradições."
Alexandra Fonte, por exemplo, ainda que não tenha feito um corte tão radical com a família como no caso de Cândida, viu-se obrigada a afastar-se para viver segundo os seus ideias.
Com 24 anos, há sete que adotou um estilo mais minimalista e, de preferência, de vida em comunidade. Vinda de uma família "normal", como lhe chama, "e até um pouco capitalista", cedo percebeu que se queria seguir os seus ideais, tinha que cortar amarras.
"Vivo sozinha desde os 17 e, para me sustentar, percebi que tinha que rever as minhas necessidades. Hoje vivo com o básico, mas esse básico não é suficiente para a maioria", reconhece.
Esteve um ano a viver em Madrid numa casa ocupada e há dois meses voltou para Portugal onde, enquanto trabalha na reconstrução de uma casa no Algarve, vive na sua carrinha.
A família do lado da mãe está mais alinhada com o seu estilo de vida, mas o pai continua a achar que "é só uma fase". Alexandra garante que não e, ainda que mantenham contacto, vivem em mundos separados. "Ele aceita-me porque eu sou filha dele, mas não me compreende", refere.
A quebra de laços acontece precisamente quando a família não é coesa o suficiente para admitir a diferença, lembra o terapeuta familiar. "É a rigidez que leva à separação". E voltando ao caso da família real, falamos de uma rigidez exacerbada, com uma estrutura fixa e tradições que não podem ser quebradas. "Nesses casos a diferenciação é ainda menos permitida, uma vez que não há abertura para algo que quebre com o que é suposto".
Tal como Harry, são muitas as pessoas a darem o grito de libertação assim que começam a sua própria família. "É aí que nos temos que adaptar a novas pessoas e a novas tradições", refere Manuel Peixoto. Ainda assim, é normal, e até saudável, que essa necessidade de diferenciação comece mais cedo.
Tudo nos parece normal até vermos a diferença. E isso pode acontecer logo na entrada na escola primária, aquele que é o primeiro espaço de interação com pessoas fora da esfera familiar. "Mas também é bastante comum durante a adolescência", salienta o terapeuta, fase onde a necessidade de diferenciação é exponenciada.
Ainda assim, o especialista refere que há formas de viver a diferença no seio familiar. "Mas para isso tem que haver muito diálogo, muito respeito", recorda. É que, ainda que a vontade seja de voar, é mais fácil fazê-lo "com as costas quentes", como diz, ou seja, sabendo que há um apoio por trás de quem nos conhece.
Mas não há milagres, e Manuel Peixoto não descarta a hipótese de que, em alguns casos, a rutura tenha mesmo que ser total. "Se eu sou homossexual e a minha família não aceita e passa a vida a maltratar-me, tenho razões para me afastar e viver a minha vida", refere. Ainda assim, este afastamento deve ser tido como o último recurso. "O sentimento de exclusão, de não pertença, é muito difícil de ultrapassar. Tudo fica mais fácil quando vivemos com suporte, com raízes".