Quando olhei para o relógio eram já 9h50. Pensei: já fui. Tinha um “appointment” marcado com o Professor Pedro Ramos Pinto (Professor Associado de História Económica Internacional no Trinity Hall) às 10h, e ainda estava na cozinha do apartamento do meu amigo António, com meia torrada na boca. Saí pela porta a correr e evidentemente que não estava sozinho. A chuva acompanhou-me fielmente nos 10 minutos seguintes, marcados por um andar rápido, desde o Magdalene College até ao Trinity Hall — o quinto College mais antigo de Cambridge. Para quem não sabe — eu não sabia — College seria de uma forma simplista, o equivalente a uma faculdade em Portugal.

Pelo caminho, milhares de bicicletas entrecruzavam-se com alunos, professores e cidadãos locais, a um ritmo que me parecia anormal, pelo menos para mim, que venho de uma Lisboa ainda a aprender o que são ciclovias.

Já bastante ensopado e com a certeza de que não iria cumprir com a pontualidade britânica, assumi internamente o meu falhanço. Ainda assim, e mesmo tendo acabado por me perder uma ou duas vezes ao longo do percurso, cheguei finalmente à porta de entrada principal do Trinity Hall.

Olhei novamente para o relógio e vi: 10 em ponto. Afinal ainda ia a tempo de limpar a imagem do português sempre atrasado. É que ainda que natural de Lisboa, Pedro Ramos Pinto vive e trabalha em Inglaterra desde 1995, tendo-lhe já adotado os hábitos.

Sentamo-nos no seu gabinete para uma conversa sobre universidades. Mas começamos com o básico.

Como é que Pedro passou de aluno do Liceu Camões a professor de história de Cambridge?
Eu nasci e cresci em Lisboa, andei na escola secundária Luís de Camões, e ter vindo estudar para Inglaterra foi um acidente. Eu estava já interessado na possibilidade de estudar fora e tinha na altura família em Inglaterra, mais precisamente em Londres. Eram uns primos que tinham um filho da minha idade, e por isso tinha o hábito de os visitar bastante nas férias. Com o tempo, criei uma relação com Inglaterra. Mas a ideia de estudar por cá surgiu de forma muito inesperada.

Eu estudava inglês no Instituto Britânico e eles tinham um serviço de apoio a quem se queria candidatar às Universidades Britânicas. Foi então através deles, que ao mesmo tempo que fazia a candidatura às Universidades Portuguesas para o curso de História, resolvi fazer também para Inglaterra. Na altura tinha que escolher cinco Universidades para realizar a candidatura, e tive alguma dificuldade nesse processo. Só escolhi quatro, nomeadamente Manchester, Warwick, e outras duas que já não me recordo, e faltava-me a quinta. Foi aí que me disseram: “E já agora, porque é que não coloca Cambridge? Não perde nada...”. E assim foi.

Pátio interior do Trinity Hall, local onde decorreu a entrevista

Nessa época havia muitos alunos portugueses a candidatarem-se às Universidades Britânicas?
Na altura havia poucos. A maioria das Universidades Britânicas não sabiam o que fazer com as nossas notas e currículos, nem como poderiam estabelecer as equivalências de uma forma justa e coerente, e a verdade é que maior parte delas rejeitaram a minha candidatura. Só duas delas é que me convidaram para uma entrevista: Cambridge e a Royal Holloway. Voei para Inglaterra um bocado à aventura e fiz as entrevistas mais a pensar que seriam experiências engraçadas, do que propriamente com a crença de que iria conseguir ficar. Fiz as entrevistas antes de realizar os exames de acesso à universidade, e para grande surpresa minha, ambas as Universidades fizeram-me uma oferta.

Preparou-se para os exames já com esse objetivo?
Sim, mas com um grande nervosismo. Qualquer entrada na Universidade já acarreta imensa pressão, e o que me deram foi uma média para atingir. Contudo, este objetivo a que me desafiaram era muito idêntico ao objetivo a que eu já me tinha proposto, uma vez que planeava ir para a Universidade Nova de Lisboa, que na altura tinha uma média muito elevada de entrada em História. Depois de bastante trabalho e de alguma sorte à mistura, consegui a média pretendida e preparei tudo para vir para Cambridge. Isto foi em 1995, altura em que os cursos em Portugal eram ainda de 5 anos. O meu plano seria o de que iria fazer o bacharelato em Cambridge e que depois voltaria para Portugal para concluir a licenciatura.

Entretanto, os planos mudaram.
Eu vim para Cambridge, terminei o bacharelato, depois estive a trabalhar durante um ano, e foi então que resolvi fazer um Mestrado por cá, com a ideia de ficar com o equivalente à licenciatura em Portugal. Garanto-lhe que se perguntar a 90% dos professores portugueses que estão fora, vão lhe dizer que foram ficando por acidente, que foi o que me aconteceu. Fiquei, terminei a licenciatura, e depois trabalhei durante dois anos, e foi nessa altura que percebi que gostaria de fazer um doutoramento.

Portanto acabou por fazer o bacharelato, mestrado e doutoramento em Cambridge, mas começou a lecionar em Manchester?
Sim é verdade, a minha primeira posição de Pós-doc e a minha primeira posição de professor foram já em Manchester e só há cinco anos é que regressei a Cambridge. E assim fui ficando por Inglaterra devido às várias oportunidades que foram surgindo, sendo que quando chegou a altura de fazer o doutoramento, já tinha uma vida mais estruturada do ponto de vista profissional e também pessoal. Já tinha conhecido a minha mulher e já sabia que gostaria de ficar no meio académico em Inglaterra.

E alguma vez chegou a lecionar em Portugal?
Não. Ainda pensei em concorrer mas a verdade é que quando a minha relação ficou mais estabelecida cá, descartei essa opção. Talvez muita gente não saiba, mas após concluir o doutoramento nem sempre é muito fácil encontrar uma posição enquanto docente efetivo, e na altura a questão que se colocava nem era tanto se iria regressar a Portugal, mas sim para que profissão iria mudar em solo inglês, caso não conseguisse um “pé” na carreira académica.

'Não sem problemas, não sem falhas, não sem recuos, mas que as Universidades Portuguesas mudaram para melhor não tenho dúvidas.'

E que profissão escolheria?
Pensei na área de investigação mas fora da Universidade, talvez em Think Thanks ou em instituições que fazem pesquisa ou mesmo organizações internacionais. A investigação seria provavelmente a via que teria seguido caso não tivesse conseguido enveredar pela carreira académica.

E para quem não sabe, pode-nos explicar em que consiste a carreira académica?
Varia muito de professor para professor, mas na prática o sistema é bastante idêntico a Portugal. O meu contrato tem uma distribuição que sem ser completamente estanque, deveria resultar em 40% de atividade letiva, 40% de atividade de investigação e os restantes 20% dedicados a trabalho administrativo. Nesta última “fatia” podemos incluir a gestão de um curso, um cargo de direção de departamento e as várias outras funções de gestão e de administração de um departamento académico. Isto é uma distribuição muito comum na área das Ciências Sociais e Humanas, sendo que quando passamos para áreas mais científicas, a “fatia” letiva é muito mais reduzida, e é então dada primazia ao trabalho de investigação.

Eu sempre fiz questão de manter uma relação próxima com Portugal. Durante o doutoramento por exemplo, passei metade do tempo em Lisboa a fazer investigação"

O seu foco está em, através da História, analisar temas ligados a movimentos sociais e avaliar as várias formas de distribuição de recursos e de redução da desigualdade. Como funciona o seu processo de investigação?
Eu primeiro comecei por ser um historiador de Portugal e embora a trabalhar fora, a minha motivação sempre foi a de estudar a história e a realidade portuguesas, e continuo a fazê-lo. O resto vai por acrescento. O meu mestrado foi sobre a transição demográfica em Portugal, ou seja, as mudanças que sucederam durante o século XX em Portugal nas estruturas familiares. Sobre como naquela época eram comuns as famílias alargadas, com avós, filhos, tios e netos a viver todos debaixo do mesmo teto, e sobre a transição desta realidade para o aparecimento e a crescente hegemonização das famílias nucleares, fazendo eu a ponte para contextos como a imigração e a urbanização.

Depois quando fui para doutoramento resolvi que gostaria de enveredar por outra área, e comecei então a trabalhar sobre a questão da habitação durante o tempo da revolução em Portugal, entre 1974 e 1975. No fundo, dediquei-me a analisar Lisboa e o papel da questão da habitação e dos movimentos sociais e urbanos, das comissões de moradores e das ocupações de casas. É um período muito interessante.

Chegou até a publicar um livro sobre esse trabalho.
Sim, publiquei o livro “LisbonRising: Urban Social Movements in the Portuguese Revolution, 1974-1975" e vários artigos. Infelizmente o livro não foi traduzido para Português porque é muito dispendioso, mas eu sempre fiz questão de manter uma relação próxima com Portugal. Durante o doutoramento por exemplo, passei metade do tempo em Lisboa a fazer investigação. Hoje em dia é mais difícil para mim, porque tenho família, uma filha pequena, e ter disponibilidade para deslocar-me durante mais tempo é sempre complicado.

Porém, a partir do doutoramento, a minha ideia foi sempre a de fazer a história do meu País, sem nunca me restringir a olhar apenas para o meu umbigo, e pensar assim o que revelam todos estes acontecimentos da história portuguesa num panorama mais global, ou seja, dentro do que é o contexto da história europeia do século XX. Esta perspetiva serve também para analisar problemas que não são exclusivos de Portugal, como problemas de desigualdade de direitos, de representação política. Posso assim permitir-me a uma abordagem mais sociológica, através da qual olho para Portugal enquanto caso de estudo e de conhecimento para abordar esses problemas. Resumidamente, a minha ideia não é só falar com um público português, seja ele académico ou geral, mas sim utilizar Portugal enquanto parte de uma conversa mais internacional.

A História sempre foi uma paixão?
Sim, vem de família. Desde miúdo que passava as férias e os fins de semana a ver castelos e casas antigas, uma vez que os meus pais tinham uma grande paixão por História, cultura e pelo conhecimento em geral. Para mim a história é um laboratório que permite conhecer um mundo diferente, o passado, mas que também se afirma enquanto espaço para pensar os problemas que me interessam, sejam eles de justiça pessoal, de democracia, de evolução. Este processo dá-me um gozo e uma satisfação imensas.

[postblock id="q9pp4ucbp" ]

E para um público menos interessado na área de História, seja ela de Portugal ou do Mundo, tem alguma abordagem ou perspetiva que os possa fazer mudar de opinião?
Para mim há várias maneiras de olhar para a História, vou partilhar a minha mas não digo que seja a melhor. A primeira perspetiva é de a História nos fazer pensar como chegámos onde estamos, levar-nos a olhar para o nosso trajeto e para o porquê da nossa sociedade e do nosso país serem como são. É um pouco como ser um biólogo ou um químico, embora os métodos sejam muito diferentes.

A História leva-nos a perceber como é que chegámos a um ponto em que as nossas estruturas sociais são o que são, em que as nossas estruturas políticas são o que são, em que a nossa inserção no mundo é o que é, e para mim este processo é essencial. É como para alguém que estuda uma planta, que tem de ter sempre presente que ela vem de uma semente. É tentar perceber porque é que somos o que somos de um modo mais profundo, de forma semelhante ao que já fazemos diariamente. De onde é que ele vem? Quem é ela? O que faz? E o saber de onde vimos ajuda-nos a perceber quem somos. Posteriormente há um desafio intelectual, dado que o passado é diferente do presente, e aí é então necessário sermos detetives, recolher provas, e ir formando o puzzle. Por fim, temos de fazer uma coisa que para mim é fascinante: colocar-me no lugar das pessoas num outro momento do tempo. E aqui está um processo de empatia com pessoas que pensam ou terão pensado de maneira muito diferente, e que não podemos assumir que tinham os mesmos quadros mentais e de valores que nós. Há muitas semelhanças entre a Antropologia e a História, que é no fundo o exercício de tentar reconstruir um mapa social ou mental de uma cultura que é diferente da nossa, e podendo não parecer, nós enquanto portugueses podemos achar que o passado de Portugal nos é familiar ou conhecido, mas quando começamos a tentar entrar nele, percebemos que mesmo há 50 anos atrás, em sítios que conhecemos e nos são familiares, os universos existenciais eram completamente diferentes dos atuais.

Com a experiência do estrangeiro, qual é a sua opinião sobre as universidades portuguesas?
As universidades portuguesas mudaram muito desde que eu vim para o meio académico inglês. Mudaram para melhor, com altos e baixos, não deixando de haver problemas por resolver. Contudo, a crescente qualidade do ensino e da investigação em Portugal deve-se a um programa que tem vindo a ser seguido ao longo de vários governos desde os anos 90, e que conta com um forte apoio da União Europeia não só a nível de injeção de recursos mas também de práticas, tendo permitido um salto qualitativo enorme. Não sem problemas, não sem falhas, não sem recuos, mas que as Universidades Portuguesas mudaram para melhor não tenho dúvidas.

E qual considera ser o ponto forte do ensino superior em Portugal?
Há um treino muito bom, através das aulas e dos cursos mais longos. Quando cheguei a Cambridge, tinha uma base muito mais profunda em termos teóricos da epistemologia e filosofia da História do que os meus colegas. O que eu não tinha e que eles tinham era a prática da escrita, e é isto é algo que ainda se reflete um pouco nas universidades portuguesas hoje em dia, a parte prática, o espectro do fazer e do criar das Ciências Sociais e Humanas.

'Como qualquer bom português, quando eu me reformar vou plantar uma vinha (risos).'

E pode fazer a comparação com as universidades britânicas?
Sim, dou até um exemplo muito prático. Aqui em Cambridge, no curso de História, todos os alunos têm a obrigação e a possibilidade de escrever um ensaio semanal de 10 páginas, de um tema relacionado com a cadeira de História que estão a estudar nesse momento. Para tal, todas as semanas têm uma orientação — uma hora com um professor, individualmente, ou dois/três alunos no máximo por orientação —  em que discutem o tema e o trabalho deles, como é que o escreveram, como é que o podem pensar de outro prisma, de que forma podem desenvolver o seu processo de reflexão crítica, de apresentação, e todo este exercício é algo que só possível com um investimento muito grande.

E em Portugal, seria possível adotar estes métodos?
De momento, com os recursos disponíveis seria muito complicado. Se reparar, em Portugal, o rácio entre alunos e professores é completamente diferente do de Cambridge, e se toda a gente tivesse uma tutoria semanal com um professor, seria verdadeiramente impossível. Não é preciso ir muito longe. Quando dei aulas em Manchester não era possível este tipo de abordagem, já que o departamento de História tinha o dobro do número de alunos e quase metade do número de professores que nós temos aqui em Cambridge. Há grandes diferenças, embora mesmo assim em Manchester fossem adotados métodos pedagógicos que davam cada vez mais oportunidades aos alunos para fazerem esse trabalhos mais práticos, incentivando-os a não se resignarem a um percurso académico apenas recetivo, mas sim despertando o seu lado mais pró-ativo e de contributivo para a construção do conhecimento. Noto que estes métodos são cada vez mais implementados em Portugal, e que os meus colegas estão a fazer um excelente trabalho nesse sentido. Existe sem sombra de dúvida muita vontade e conhecimento nas instituições portuguesas, e reconheço que os meus colegas portugueses são gente brilhante e por quem tenho uma enorme admiração. É igualmente importante não esquecer que trabalham com condições bastante mais difíceis do que as que eu tenho aqui.

Da minha parte, eu quero ter com os meus alunos uma relação profissional, mas eu acho que aqui há uma diferença acentuada em relação a Portugal, que é uma sensação de distância das hierarquias por não nos terem de chamar Senhor, Professor, Doutor. Agora isto não quer dizer que não seja uma relação formal e de respeito mútuo, não tem é de ser cheia de salamaleques, formalidades e hierarquias."

E como funcionam na prática as aulas em Cambridge?
Por exemplo no meu caso, e o mais comum nas Humanidades e nas Ciências Sociais, é colocar ênfase na relação muito direta entre um professor e os alunos. Há as aulas habituais em auditório, mas que são muito mais gerais e cujo objetivo é simplesmente dar uma orientação aos alunos sobre os temas. O trabalho pedagógico é suposto ser feito nos “tutorials”, que é o tempo passado em grupos pequenos, de 1 para 1, ou de 1 para 3, em que o trabalho é feito em co-construção. Este formato requer muito trabalho.

Nós por exemplo pedimos aos nosso alunos, sabendo que eles têm de escrever um trabalho ou um ensaio de 10 páginas por semana, que eles leiam o equivalente a 10 artigos por semana, e isso é um trabalho independente, que nós apenas orientamos. Damos uma seleção de leituras mas são eles que têm de ler, e em que o objetivo é treinar os alunos para uma leitura crítica, exercitar a sua capacidade de síntese, de raciocínio e de apresentação de ideias naquele tipo de formato. O realizar desta prática repetidamente, e tendo eles feedback todas as semanas de professores que são peritos na área, é extraordinário, e se fizer o cálculo, eles escrevem 8 destes trabalhos por trimestre, há 3 trimestres por ano, por isso imagine a quantidade de trabalho prático, pelo qual os alunos têm oportunidade de passar ao longo de 3 anos (um total de 72 trabalhos escritos).

Acaba por ser um articular mais equilibrado entre teoria e prática?
Sim, e repare que tornamos o "fazer" muito mais fácil. “Olhe, agora vou ler estes livros porque vou ter de pensar em relação a esta pergunta que me foi proposta pela professora através do ensaio”, é um modo de leitura muito diferente do que aquele de “agora tenho de ir para a biblioteca ler estes livros porque tenho o exame daqui a 6 meses”.

No fundo, é uma leitura e uma pesquisa ativa e também mais flexível. Por exemplo, um dos temas que eu dou dentro da cadeira de história do século XX é a transição para a Democracia em três países da Europa do Sul: Portugal, Espanha e Grécia. Normalmente, seguindo os temais que mais domino, sugiro aos alunos que façam o ensaio sobre Portugal ou Espanha, mas não é raro que me apareça alguém e me diga, “ah, os meus avós são gregos e eu gostava muito que o meu ensaio fosse sobre a Grécia”, e como é evidente existe essa flexibilidade.

E qual a sua relação com os alunos, é muito informal?
Aqui será importante estabelecer a distinção entre uma universidade onde o rácio entre professores e alunos é grande, na qual é muito mais difícil professores e alunos ficarem a conhecer-se, sendo que aqui em Cambridge, nós ficamos a conhecer muito bem os nossos alunos porque esse rácio é muito menor. Os alunos estão divididos por Colleges (faculdades), e nós ficamos a conhecer especialmente aqueles que estão no nosso College, dado que somos responsáveis pela orientação dos seus estudos.

Agora, quanto ao tipo de relacionamento, da minha parte, quero ter com os meus alunos uma relação profissional, mas acho que aqui há uma diferença acentuada em relação a Portugal, que é uma sensação de distância das hierarquias por não nos terem de chamar Senhor, Professor, Doutor. Isto não quer dizer que não seja uma relação formal e de respeito mútuo, não tem é de ser cheia de salamaleques, formalidades e hierarquias.

Esses salamaleques, formalidades e hierarquias ainda prevalecem em Portugal?
Apesar de considerar que é algo que está em grande transformação em Portugal, sei que ainda existe uma enorme luta em contrariar algumas tradições. As universidades em Inglaterra são em geral bastante mais democráticas e menos hierárquicas e eu, enquanto docente relativamente júnior no meu departamento — talvez já não seja tão júnior como era [risos] —, tenho tanta responsabilidade e tanta voz como professores catedráticos seniores. No meio português, ainda persiste uma certa hierarquia que julgo ter muito que ver não só com as tradições, mas também com os recursos limitados.

Em Portugal há uma maior guerra entre departamentos, entre grupos e entre universidades para obter recursos, e isso cria conflitos e uma certa entropia.

Até eu, se hoje em dia tivesse 18 anos e tivesse que escolher para que Universidade iria estudar, dificilmente iria para Inglaterra. Seria incomportável pagar 9000 libras por ano."

E em Cambridge, nota-se alguma competitividade?
Há certamente alguma competitividade. Aliás, mais recentemente os governos têm tentado introduzir e incutir perspetivas mercantilistas e normas de algum modo artificiais, tendo inclusive tentado introduzir indiretamente abordagens mais competitivas que fazem lembrar um pouco o mundo empresarial.

Apesar de tudo, existe em Inglaterra um sentido de cooperação grande, e em Cambridge muito facilitado por este espírito de colaboração dos “Colleges”.

Como é que isso acontece?
O sistema dos “Colleges” é um sistema que não é diferente de todas as Universidades Medievais, só que a variante é que aqui sobreviveu. A Universidade de Cambridge foi fundada no século XIII, e tal como a Universidade de Coimbra, Bolonha, Paris, era a Universidade onde eram lecionadas as aulas das cadeiras principais como retórica, filosofia, história, etc. Havia depois uma série de “conventos”, já que a maior parte do ensino era ligado ao clero, e fundações feitas por reis e nobres, que davam alojamento e apoio a pequenos grupos de alunos e professores que trabalhavam na Universidade, ou seja, que eram Colegiados por eles.

Portanto, os "Colleges" eram no fundo instituições separadas da Universidade mas que se co-relacionavam. Esta relação foi crescendo e desenvolvendo-se, e ainda hoje prevalece. Este “College” onde estamos, existe desde 1348.

Então os “Colleges” acabam por ainda hoje ser Instituições separadas da Universidade?
Sim. Existe uma Universidade que tem a mesma estrutura que a Universidade de Lisboa ou do Porto. Depois existem 31 “Colleges” independentes, que são organizações autónomas da Universidade, cooperativas, que recebem alunos e que têm professores ligados a eles. Os alunos vivem nos “Colleges” enquanto estão a estudar na Universidade, e os “Colleges” para além de lhes darem alojamento, possibilitam-lhes também através dos seus professores um apoio académico permanente.

Deste modo a Universidade dispõe os laboratórios, dá as aulas de auditório, os exames, as avaliações, e o que os “Colleges” fazem é aconselhar os alunos e possibilitar estas explicações extra com os seus professores. Eu sou empregado da Universidade, e o meu vínculo profissional central é para com a Universidade, mas para além desse tenho um contrato adicional para com o “College” para fazer este trabalho mais direto com os alunos.

Existe então um cruzamento entre a vida pessoal e profissional nos Colleges?
Antigamente havia mais, quando por exemplo nos anos 50 os professores viviam dentro do College. Curiosamente aqui, este meu gabinete e o gabinete adjacente ao meu, foram em tempos o quarto, a casa de banho e sala de trabalho de vários professores. Hoje em dia, praticamente todos os professores vivem na cidade, sendo que há também residências e apartamentos para professores e Pós-docs mais novos acabados de chegar, aos quais prestamos apoio ao dar um pequeno apartamento em Cambridge durante os seus primeiros 2/3 anos de trabalho.

Hoje, eu não só tenho muito menos jovens que me contactam, como também eu próprio lhes pergunto porque vão contrair uma dívida de 30 mil libras, quando se calhar podem ir para a Holanda, Alemanha, Bélgica ou França, onde há cursos de tão alta qualidade como em Inglaterra e sem propinas."

Sente que, proporcionalmente, o Estado britânico dá mais relevo à educação do que o português?
Eu acho que há obviamente a questão da proporção dos recursos, mas houve desde há muito tempo um investimento na educação que ajudou muito, bem como o evidente facto de a língua inglesa se ter tornado a língua franca do mundo académico e científico de hoje em dia.

Mas considero que vamos entrar numa fase difícil para as universidades do Reino Unido. As universidades europeias, incluindo as portuguesas, estão a melhorar bastante  e a subir progressivamente de nível, estando a aproximar-se das que têm vindo a ser desde sempre consideradas como as mais prestigiadas Universidades Internacionais. Há muitas Universidades de alta qualidade pela Europa fora, e o mesmo se passa com as Universidades da China e do Sudoeste Asiático, já para não falar das Universidades dos EUA e do Canadá.

Capela do King's College, um dos monumentos mais emblemáticos de Cambridge

E em relação aos investimentos a nível de Investigação?
Nos últimos 10/12 anos tem havido uma diminuição do investimento para investigação nas universidades. Além disso, assistimos a uma abertura ao ensino privado, que usa o modelo americano que se tem verificado ser um fracasso, e que só tem ajudado à proliferação de universidades de má qualidade que deixam os alunos cheios de dívidas e sem grandes mais valias para entrarem no mercado de trabalho.

Num momento em que quase todas as universidades europeias estão a partir para outro modelo, o modelo de propinas zero ou propinas muito baixas como é por exemplo o caso da Alemanha, as propinas das Universidades Inglesas têm vindo a aumentar para valores incomportáveis. Até eu, se hoje em dia tivesse 18 anos e tivesse que escolher para que Universidade iria estudar, dificilmente iria para Inglaterra. Seria incomportável pagar 9000 libras por ano.

Infelizmente não tenho nenhuma fórmula secreta para ser um bom professor, se é que o sou, a chave é só ir tentando melhorar. Pessoalmente não sou uma pessoa competitiva com os outros, sou competitivo comigo próprio e quero sempre tentar fazer melhor no dia seguinte do que fiz no anterior, ter gozo no trabalho. No dia em que eu deixar de ter gozo no trabalho tenho de me reformar, e dedicar-me ao meu verdadeiro sonho."

Nem mesmo recorrendo ao sistema de bolsas?
Não, dado que a dívida no final do curso irá ser enorme e as bolsas apenas adiam o processo. Eu recebia contactos de muitos jovens portugueses que sabiam que eu estava cá através de amigos e pessoas conhecidas, que me perguntavam como concorrer às universidades britânicas, e que conselhos eu teria para partilhar.

Hoje, eu não só tenho muito menos jovens que me contactam, como também eu próprio lhes pergunto porque vão contrair uma dívida de 30 mil libras, quando se calhar podem ir para a Holanda, Alemanha, Bélgica ou França, onde há cursos de tão alta qualidade como em Inglaterra e sem propinas.

A médio-longo prazo este vai ser um problema muito grande para as Universidades Britânicas, já para não falar da situação do Brexit, que nos leva neste momento a ter muitíssima dificuldade em contratar professores vindos da Europa.

Já se notam essas limitações?
Não, há é uma incerteza muito grande. Nós hoje em dia contratamos professores dos EUA, da Ásia e de países fora do mundo comunitário, que podem obter um visto para trabalharem cá se forem convidados pela universidade, mas é muito complicado para os que trazem família.

Qual é o estatuto do parceiro ou da parceiro ou mesmo dos filhos, quando eles vêm para cá? E neste momento, quando nós estamos a tentar contratar um professor que vem da Europa, é recorrente ele dizer-nos que não vai concorrer, porque mesmo que saiba que lhe irão dar um visto caso o Brexit avance, não lhe conseguem garantir que a sua mulher (ou marido) terá possibilidade de trabalhar, e que não terá de ficar em casa. As pessoas não vão tomar uma decisão radical de mudança de vida sem terem as mínimas garantias.

E como será em relação aos alunos europeus?
Essa é outra grande incerteza. Cerca de 50% dos nossos mestrados e doutoramentos são frequentados por alunos provenientes de países fora do Reino Unido. Será que vai continuar a ser fácil para eles estudar no Reino Unido? Será que vão continuar a poder aceder a bolsas? Quem sabe. E mais, não sabemos se vamos ou não perder o acesso às bolsas de investigação da UE, nas quais o Reino Unido tinha um grande sucesso, e recebia muito mais em fundos de Investigação do European Research Council do que investia em contribuições.

Vivemos um momento que vai ser muito complicado. As coisas não vão implodir de um dia para o outro mas é possível que os obstáculos sejam cada vez maiores, já que a competição será também cada vez mais forte.

Por fim, qual considera ser o perfil de um bom professor Universitário?
Antes de mais, considero que é essencial continuar a aprender, quer estejamos numa carreira de investigação quer numa carreira letiva. Devemos estar sempre abertos a revisitar o que achamos e pensamos, a mudar de perspetivas, e principalmente a aprender com os alunos. Em segundo lugar é crucial  manter o respeito pelos alunos, e não o digo por achar que se trata de uma questão contratual ou de negócio, mas porque o vejo enquanto um trabalho conjunto, e tal como eu espero que os alunos respeitem o meu trabalho, eu tenho que respeitar o trabalho deles.

Por último, a “paciência”. Mas isso acho que é em todas as instituições, quer seja numa firma, numa fábrica, ou numa universidade, uma vez que são todas organizações complexas, com muitas pessoas, e nas quais todas se queixam de algum modo da política  de trabalho. A política no fundo são as relações humanas, e estas existem em todo o lado. As pessoas têm ideias, modos de trabalhar e objetivos diferentes, e tudo isto tem de que ser negociado. A paciência e a resiliência são então fundamentais, e muitas vezes o que nós achamos que é uma perca de tempo, como estar a falar com pessoas, a construir consensos, e a criar plataformas para que se possa trabalhar em conjunto, não é de todo tempo perdido — faz parte do nosso trabalho.

Infelizmente não tenho nenhuma fórmula secreta para ser um bom professor, se é que o sou, a chave é só ir tentando melhorar. Pessoalmente não sou uma pessoa competitiva com os outros, sou competitivo comigo próprio e quero sempre tentar fazer melhor no dia seguinte do que fiz no anterior, ter gozo no trabalho. No dia em que eu deixar de ter gozo no trabalho tenho de me reformar, e dedicar-me ao meu verdadeiro sonho. Como qualquer bom português, quando eu me reformar vou plantar uma vinha [risos].

*A MAGG viajou a convite da agência Abreu, que organiza viagens de grupo a Cambridge direcionadas para estudantes a partir de 900€