É uma obrigação social esta de agora termos de ser felizes a toda a hora e de só valorizarmos aquilo que a sociedade entende que devemos valorizar. Em nenhuma outra altura do ano isso se sente mais do que no Natal. Passou-se do Natal consumista ao Natal da felicidade hipócrita, da paz podre, dos sentimentos mascarados.
Hoje, 26 de dezembro, já podemos parar de fingir, já podemos voltar a ser quem verdadeiramente somos quando mais ninguém nos está a ver ou a julgar.
Hoje, 26 de dezembro, já podemos sentir tristeza e tirar o sorriso estúpido e fingido que temos de exibir no Natal.
Hoje, 26 de dezembro, já podemos voltar a ser pessoas mesquinhas, invejosas e com coração de pedra que mostramos ser ao longo do ano nos relacionamentos com os outros.
Hoje, 26 de dezembro, já podemos esquecer a solidariedade, que é uma coisa que fica mesmo fixe nas partilhas do Facebook, mas que é uma enorme chatice, e que nos obriga a fazer coisas que não nos apetece fazer (ainda por cima está frio).
Hoje, a 26 de dezembro, já podemos gozar com gordas, já podemos dizer mal dos ciganos e mandar umas piadas sobre aquele colega larilas com quem temos de conviver todos os dias, mas de quem não gostamos nadinha, até porque ele é larilas e nós não gostamos de larilas.
Hoje, a 26 de dezembro, já podemos ficar tranquilos no nosso sofá a fazer scroll interminável no smartphone sem termos de dar conversa à tia-avó com quem só falamos nos natais, e quase sempre sobre banalidades absolutamente irrelevantes, e sem termos de levar com alguém a dizer-nos “larga o telemóvel, isto hoje é para convivermos”.
Hoje, a 26 de dezembro, já podemos decidir comer apenas uma maçã a meio da tarde sem que nos olhem de lado porque a mesa “está cheia de rabanadas, bolo-rei e sonhos”, e isso de só comer coisas saudáveis “é um exagero” e enfardar açúcar aos quilos “uma vez por ano não faz mal a ninguém”.
Hoje a 26 de dezembro, já podemos ser quem somos, quem verdadeiramente somos, pessoas melhores ou piores, mais decentes ou menos decentes, com todos os nossos defeitos e virtudes sem termos de nos formatar num modelo que a sociedade definiu para nós. Já podemos despir essa pele que não é nossa e voltar ao conforto da nossa individualidade cheia de defeitos e qualidades.
Nunca, em democracia, fomos tão pouco livres como hoje. E a culpa é nossa, de cada um de nós, de todos os que através de julgamentos nos corredores das empresas, de críticas nas redes sociais, de preconceitos que existem na cabeça de cada um vão condicionando, limitando, castrando a ação dos outros. Ao longo dos últimos anos, temos criado uma teia de julgamentos, preconceitos e críticas que não nos deixa ser livres, não nos deixa sermos quem somos, que nos obriga a sermos quem os outros querem que nós sejamos.
Não quero viver num eterno 25 de dezembro, não quero uma sociedade de clones cheia de Stepford Wives e gente mecanicamente perfeita, sem defeitos, que pense toda da mesma maneira. Enquanto sociedade, somos muito mais ricos, fortes e criativos se conseguirmos conviver com as diferenças de opinião, de postura, de gostos, de humor, de crenças. Quero muito que continuem a existir pessoas de esquerda e de direita, católicas e ateias, com bom coração e mazinhas, do Benfica e do Sporting, que valorizem a família e que gostem mais de estar sozinhas, solidárias e egoístas, que adorem humor negro e que odeiem humor negro, que cumpram a lei e que desafiem a lei, porque no fundo é assim que cada um é, e dificilmente dará bom resultado tentar vestir a uma pessoa um fato que não lhe serve.
Por isso, e agora que acabou o Natal, sejamos nós mesmos, únicos, originais, não formatados. E que a única luta comum a todos seja a de que não nos tirem a liberdade de sermos quem somos.