Não lhe vejo as lágrimas, ouço-lhe as palavras. Cabeça encostada à janela do comboio, telemóvel no colo, os fios dos phones escondidos pelo cabelo, a voz a sobreviver ao ruído da carruagem.
— Eu só queria entender, percebes? Como é que alguém que me dizia que queria atravessar comigo o rio da vida, oito dias depois já não me queria? Como? Como?
Pego no meu smartphone e consulto as mensagens. Eu não quero, não devo escutar aquela conversa. Eu prefiro não conhecer aquele desgosto. Não me pertence. Finjo não estar ali. Mas estou.
— Claro que eu sei que o amor acaba. Não tenho 17 anos. Claro que eu sei que não podemos obrigar ninguém a gostar de nós. Eu só quero compreender. Tenho três mil perguntas sem resposta. Como é que alguém muda de sentimentos em poucos dias? Como é que o amor acabou se nós nos dávamos tão bem? Como?
Procuro um rosto no reflexo do vidro. Uma mulher de 25, 30 anos? Impossível adivinhar. Afasto a curiosidade e ligo os dados móveis. Talvez o Facebook me leve para longe dali.
— Não… não me apetece ir a nenhuma festa… E honestamente não tenho paciência para essa treta dos pensamentos positivos e de me forçar a ficar alegre nem para ir a sessões de mindfulness… Dizes que já me devia ter passado porque ele acabou comigo há dois meses? Não sei… Não há uma data de validade para a dor… Fui rejeitada, será que não posso estar num baixio? Por favor, deixa-me chorar…
Guardo o telemóvel. Ali está a reivindicação do seu direito à tristeza. A resistir a esta tirania da felicidade permanente, em que se caminha fingindo que o sofrimento não é mais forte que um Benuron. Ou, na pior das hipóteses, que é capaz de se apagar com o Socian, o Elontril, o Prozac, ou a venlafaxina, a sertralina e outras inas que tais. Acreditando que somos capazes de viver sem sofrer. Mentira. Não somos.
Lembro-me de Rainer Maria Rilke e de uma das suas cartas a um jovem poeta. Nela fala do poder da tristeza para nos transformar. Googlo Rilke e jovem poeta e cá está. É a 8ª.
“É por isso, caro Senhor Kappus, que não deve ter medo quando diante de si se levanta uma tristeza tão grande como nunca viu, quando o desassossego, como a luz e a sombra das nuvens, sobrevoa as suas mãos e todas as suas acções. Tem de pensar que dentro de si está a acontecer qualquer coisa, que a vida não o esqueceu e que o segura na sua mão; a vida não o deixará cair. Porque quer excluir da sua vida a inquietude, o sofrimento, a melancolia, se não sabe que tarefa estes estados cumprem dentro de si?
(…) Lembre-se que a doença é a maneira que o organismo tem para se libertar do que lhe é estranho; nesse caso, apenas podemos ajudá-lo a estar doente, a ter a doença até ao fim e a expulsá-la, pois é esta a sua evolução. Dentro de si, caro Senhor Kappus, acontecem tantas coisas; tem de ser paciente como um doente e confiado como um convalescente; porque agora talvez seja ambos. E mais ainda: você é também o médico e tem de se vigiar. Mas em todas as doenças há dias em que o médico nada pode fazer senão esperar. E é acima de tudo isso, enquanto seu médico, o que agora terá de fazer. Não se observe demasiado. Não tire conclusões apressadas acerca do que lhe está a acontecer; deixe que simplesmente aconteça.”
Ergo os olhos com vontade de lhe mostrar o texto. Mas fico quieta. Do cabelo dela continuam a sair os fios brancos dos phones, não sei se do outro lado alguém continua a falar. Ela está em silêncio, com os olhos no escuro da noite. E chora.