Toda a gente conhece o Dr. Frankenstein. Pouca gente sabe que ele nasceu da prodigiosa imaginação de uma jovem de 19 anos, Mary Godwin, quando se encontrava refugiada com amigos e namorado à beira do Lago Léman, depois de uma erupção vulcânica na Indonésia que apagou o Verão de 1816. Naquele cenário de fim do mundo, os namorados e dois amigos escritores — Lord Byron e John Polidori —, que se encontravam isolados, combinaram contar aos outros histórias de terror. Lord Byron continuou os seus escritos, um pouco mais carregados. Polidori escreveria "O Vampiro", mais tarde inspirador do personagem Drácula, e Mary falava de um estudante que criara um monstro sem nome. Mais tarde, já como Mary Shelley — assim se chamava o seu namorado, também escritor — e impulsionada por ele, "Frankenstein" dava-se à estampa em várias edições aperfeiçoadas que rapidamente se difundiram pela Europa.

Além de escrito por uma mulher, "Frankenstein ou o Moderno Prometeu" foi considerado o primeiro livro de ficção científica. Relata a história de um jovem estudante talentoso — Víctor Frankenstein — que abandona a alquimia e se dirige a Ingolstad, na Alemanha, para estudar ciências naturais. Descobre o segredo da vida e, ao longo de dois anos, cria um monstro humanóide no seu laboratório. O romance descreve a decadência da família Frankenstein devido às intrigas e crimes do monstro que se vingava de não lhe arranjarem uma namorada. Victor ainda tenta construir uma, mas destrói-a dominado pela dúvida. Depois, sentindo-se culpado de ter criado tal monstro, morre em perseguição dele que, sozinho e sem esperança, acaba por chorar o criador e morrer com ele.

Num tempo de individualismo exacerbado em que se fala de género único (ou ausência de género, ou múltiplos géneros) e se usam as ciências naturais sem respeitar a natureza, é interessante lembrar que a criatura de Frankenstein desesperava por viver sozinho e não ter uma namorada

Temos hoje tecnologias que permitem realizar a ficção de Mary Shelley. Nem é preciso rumar ao centro da Europa, mas sim à sua periferia. Existem talentos em Genética, Cirurgia, em particular Cirurgia Estética, Endocrinologia, Urologia e algumas outras especialidades médicas que têm adquirido experiência na completa transformação do ser humano. Ainda bem para alguns.

Nas raras situações de anomalia genética e Intersexo (vulgarmente conhecidas como hermafroditismo), a intervenção cirúrgica pode ser uma benção. Para os beneficiados da cirurgia estética, a tecnologia pode fazer milagres. Que seja o Estado a pagar algumas delas, é irrelevante. A discussão sobre o tema decorre em Portugal com grande leviandade. O negócio marca tudo, e não faltarão peritos interessados em apoiar qualquer intervenção “porque sim”, ou porque é moda, contando que lhes caiba um quinhão dos lucros. Follow the money.

As grandes questões da Medicina contemporânea não são técnicas, mas éticas. E exigem uma cuidadosa análise da experiência acumulada (que ultrapassa 20 anos nos casos de mudança de sexo). Exigem também escolher entre dois caminhos: ou nos aventuramos no desconhecido para emendar erros que por casualidade, ignorância ou falta de cuidado, ou nos centramos na prevenção desses erros. Na primeira alternativa, lembremos que se estuda a possibilidade de transplantar úteros para homens e a clonagem está no horizonte. Na segunda alternativa, podemos contar com os diagnósticos genéticos precoces, o apoio e seguimento materno-infantil, a educação e a promoção da vida saudável.

Num tempo de individualismo exacerbado em que se fala de género único (ou ausência de género, ou múltiplos géneros) e se usam as ciências naturais sem respeitar a natureza, é interessante lembrar que a criatura de Frankenstein desesperava por viver sozinho e não ter uma namorada, depois de perceber que nenhum dos humanos o aceitaria.

Mary, que inventou a narrativa, sabia-o mas não teve coragem de assinar a primeira edição do livro. Ficou inicialmente escondida sob prefácio do seu marido, Percy Shelley, também ele escritor. Depois, o cinema confundiu o  criador com a própria criatura que assim pairou no nosso imaginário até aos dias de hoje. No tempo da Grécia Antiga, Prometeu — também aludido no livro — equilibrava-se com Pandora. Na pós-modernidade Ocidental, Frankenstein não se equilibra e morre junto com o criador. Talvez Pandora se tenha vingado através de Mary, sua descendente.