Em março de 2019, Ryan Magers, 19 anos, processou a Alabama Women’s Center, a clínica em que a namorada interrompeu a gravidez. Em causa estaria o facto de terem tirado a vida àquele feto, que também era seu, sem o seu consentimento — e contra a sua vontade. O tribunal do Alabama deu razão ao rapaz, que moveu uma ação em seu nome e em nome do feto morto.

Em Portugal isto não aconteceria e basta passar os olhos pela lei que se refere à interrupção da gravidez. Mas demorou algumas décadas até chegarmos ao ponto em que é à mulher que cabe a última palavra. É com a introdução da Lei nº6/84, de 1984 (até aí, era proibido), que surge, pela primeira vez, esta possibilidade, embora só em casos específicos e em nada relacionados com o direito à autodeterminação parental da mulher. Em 1997 a lei é alargada, mas ainda dentro das mesmas caixas: o aborto passa a ser um possibilidade nos casos da malformação fetal e em situações de violação.

É só em 2007 que o jogo muda de regras, como resultado do referendo nacional realizado nesta altura.  A partir daqui, até às dez semanas de gravidez e em estabelecimentos de saúde oficiais ou oficialmente reconhecidos, a interrupção voluntária da gravidez passa a ser permitida se essa for a opção da mulher. O aborto passa a ser lícito e cabe à mulher — e só à mulher — decidir se quer, ou não, avançar com a gravidez.

A opção é da mulher. Mas e o pai?

O caso de Ryan Magers faz-nos refletir nesta questão. No caso de uma interrupção de gravidez — que não tenha, pelo menos, sido fruto da quebra da liberdade e autodeterminação sexual da mulher —, não terá o pai o direito de interferir nesta decisão? Será que uma mãe pode ficar impedida de abortar, caso o desejo do outro progenitor seja o de seguir com a gravidez? Haverá algum aspeto previsto na lei que dê esse direito ao pai? E que sancione a mãe que não o respeite?

A leitura da Lei 16/2017 dá-nos uma resposta clara: o homem não pode interferir na decisão da mãe. “De acordo com a Lei 16/2007 de 17 de Abril, apenas a mulher tem legitimidade para decidir se deseja interromper a gravidez, dentro dos prazos referidos na lei”, diz à MAGG a advogada Inês Carvalho Sá. “O progenitor masculino não pode interferir ou opor-se legalmente à decisão da mulher grávida.”

O artigo 142.º do Código Penal reforça o mesmo. Na alínea 1 estipula-se que "não é punível a interrupção da gravidez efetuada por médico, ou sob a sua direção, em estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido e com o consentimento da mulher grávida” em várias circunstâncias, incluindo aquela que se refere somente à vontade da mãe — isto é, o aborto é permitido se for realizado “por opção da mulher, nas primeiras 10 semanas de gravidez.”

Ou seja, não se prevê “nenhum direito que permita ao progenitor masculino contrariar a decisão tomada pela mulher”. Portanto, seguindo esta linha entende-se que não há também “nenhuma sanção para a mulher que tome a decisão, sem a concordância do progenitor masculino, desde que essa mulher cumpra as leis previstas na lei 16/2007 e no Código Penal", refere a advogada.

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Mas o filho é dos dois. A lei é discriminatória?

A mulher é a gestante. É quem dá à luz, é quem amamenta o bebé. É quem vê o corpo mudar. Mas o filho é sempre fruto da relação entre duas pessoas, o que significa que há dois progenitores.

Se assim é, porque é que apenas a mulher tem o poder de decisão face a uma interrupção voluntária da gravidez? Tratar-se-á de um caso de discriminação? O tema já foi debatido, tanto que em 2010, 33 deputados da Assembleia da Republica, apresentaram uma declaração onde sublinhavam aquelas que consideravam ser as inconstitucionalidades na Lei16/2007 — aquela que retirou a ilicitude da I.G.V — sendo que um dos aspetos referidos se prendia precisamente com a não participação do progenitor masculino no processo de decisão sobre a interrupção voluntária da gravidez.

Noutro acórdão do Tribunal Constitucional — o 346/2015 —, ainda que não diretamente relacionado, reflete-se sobre esta questão. Trata-se de um caso em que o Ministério Público pôs uma ação contra um homem, requerendo que  o tribunal reconhecesse a sua paternidade face a um menor. O réu, o alegado pai da criança, não queria assumir esta responsabilidade. Recorrendo ao Tribunal Constitucional — depois de passar pelo Tribunal Judicial da Comarca de Cascais e ao da Relação de Lisboa — apelou à fiscalização de vários artigos, aqueles que preveem o reconhecimento da paternidade, mesmo que contra a vontade do progenitor.

No grosso da sua argumentação, este homem utilizou o direito que a mulher tem em interromper a gravidez. A lógica era: “Deve ser assegurado ao pai biológico o direito a rejeitar a vida privada e familiar, tal como se permitiu que a mulher pudesse proceder à interrupção voluntária da gravidez até às dez semanas, em nome do seu direito à autodenominação”, resumiu o Ministério Público.

Ou seja, se a mulher tem o direito à autodeterminação parental face ao feto, porque é que o homem não pode ter esse mesmo direito, após o seu nascimento? Nas contra-argumentações, o Ministério Público — que ganhou  — explicou porque é que os dois casos eram incomparáveis, dando argumentos que podem explicar porque é que num caso de aborto a decisão está apenas do lado da mãe. 

É nisso que nos vamos concentrar. São referidos vários aspetos. Por um lado, o MP chama a atenção para a ideia de que este direito atribuído à mulher grávida parte de uma “superiorização do direito à autodeterminação”. Não é isso, explica. Este direito reflete, antes, a consciencialização de que, por um lado, a mãe e o bebé são, naquela fase, um só. E, por outro, a garantia de que há uma decisão refletida, sem a interferência do medo dos castigos legais, aqueles que já existiram e que, em muitos casos, resultaram em abortos feitos à margem, sem garantias de segurança para a mulher.

Por outras palavras, é um “meio de proteção da vida intra-uterina numa fase inicial da gravidez em que a mulher e o nascituro ainda se apresentam como uma unidade”, permitindo uma “decisão refletida, mas deixada, em último termo, à sua responsabilidade, em vez de optar pela crua ameaça com uma punição criminal, de resultado comprovadamente fracassado.”

Depois há ainda os fatores relacionados com a “natureza das coisas”, isto é, aquela que é “condicionada pela realidade biológica da gestação humana”, em que é a mãe que carrega o feto e o acompanha até ao seu nascimento. No fundo, é o seu corpo.

Por último, refere ainda questões de coerência legal. Dar também ao homem o direito de decisão num caso de aborto seria dar uma passo atrás, porque seria igual a “reconvocar a proteção do direito penal, submetendo, com isso, a grávida à ameaça da pena apesar de esta ter sido considerada, pelo legislador de 2007, instrumento não necessário de tutela da vida intrauterina até às 10 semanas de gravidez.”