A Federação Portuguesa de Dadores Benévolos de Sangue (Fepodabes) anunciou que as reservas disponíveis em vários grupos sanguíneos eram inferiores a sete dias e foi massiva a corrida dos cidadãos portugueses aos postos do Instituto Português do Sangue e da Transplantação (IPST). Em Lisboa, Porto e Coimbra, triplicaram em janeiro de 2021 os dadores inscritos e as unidades colhidas. Uma onda de adesão à dádiva de sangue descrita pelo IPST como "extraordinária".
Bruno Gomes d'Almeida foi um dos que quis contribuir, ignorando o seu "pânico de agulhas", como descreveu no Instagram. Através desta rede social, narra a história de como, três horas depois de ter estado na fila, lhe foi vedada a possibilidade de doar sangue por ser um homem homossexual.
O processo começou com o preenchimento de um formulário, em que se questiona se o potencial dador teve contacto com mais de um parceiro sexual nos últimos seis meses. "Eu respondi que não", conta "Entretanto, o formulário foi analisado por um profissional de saúde, ele fez-me algumas perguntas sobre as minhas parceiras sexuais. Disse que não eram parceiras, eram parceiros."
"Automaticamente", disseram ao jovem arquiteto que não poderia doar sangue. "Fiquei atónito. Disse que queria fazer queixa. Fui mandado para um outro pavilhão para falar com a médica de serviço. E fui. A resposta foi que se quero doar sangue, tenho que ficar em abstinência durante um ano por ser gay. Nem sequer importa se tenho relação fixa ou não. Um heterossexual pode ter sexo com quem quiser, quantas vezes quiser. Eu não."
"À data, não foram encontrados comportamentos discriminatórios em função da orientação sexual", diz IPST
À MAGG, o IPST começa por frisar que "não questiona a orientação sexual dos seus potenciais dadores", sublinhando que "a dádiva de sangue é voluntária, anónima e não remunerada, podendo todo e qualquer cidadão candidatar-se a dar sangue, sem quaisquer diferenças de género ou orientação sexual."
Ainda assim, numa fase seguinte, "a dádiva será sempre condicionada por um conjunto de situações que se torna premente avaliar durante o exame médico que antecede a dádiva, nomeadamente as doenças que o candidato refere, as viagens, as infeções, os comportamentos e estilos de vida, com risco acrescido de transmissão de doenças infeciosas graves."
A proteção da saúde, do dador e do doente são os pressupostos em que assentam "os critérios de elegibilidade do dador de sangue", pelo que esta "avaliação da elegibilidade do dador é fundamental na garantia da qualidade e segurança do sangue a ser transfundido."
Frisando que a segurança do sangue "é, e tem sido ao longo dos anos, alvo de um escrutínio apertado por parte das entidades competentes" — e aí remete para os critérios básicos de elegibilidade do dador de sangue e componentes sanguíneos (publicados no Anexo VII, do Decreto-Lei n.º 267/2007 e para a Norma da Direção Geral da Saúde 009/2016 (já lá vamos) — adianta que, sobre as reclamações em causa, "o IPST procede internamente ao esclarecimento das decisões tomadas pelos profissionais".
No entanto, "até à data, não foram encontrados comportamentos discriminatórios em função da orientação sexual."
O que diz a norma afinal?
Passemos então ao confuso quadro legal que define os critérios. Foi em 2016 que a norma nº 009/2016 de 19/09/2016 veio permitir que, pela primeira vez, homens homossexuais e bissexuais pudessem doar sangue. Aqui veio estabelecer-se que, para qualquer pessoa, a dádiva podia ser condicionada a "um período de suspensão temporária" de seis a 12 meses, caso houvesse "comportamento sexual ou atividade que os tenha colocado em risco acrescido de ter adquirido doenças infecciosas graves, suscetíveis de serem transmitidas pelo sangue".
Porém, a aplicação desta norma no que se refere a homens não heteronormativos ficou dependente da realização do estudo que, entre outras coisas, está a "avaliar o impacto da alteração do critério de suspensão do dador, no que diz respeito a homens que têm sexo com outros homens", explica o IPST, que integra este grupo de trabalho, do qual fazem também parte o Instituto Ricardo Jorge, a Direcção-Geral da Saúde e outras entidades como a ILGA Portugal — Intervenção Lésbica, Gay, Bissexual, Trans e Intersexo.
A conclusão deste estudo (“Comportamentos de risco com impacte na Segurança do Sangue e na Gestão de Dadores: Critérios de Inclusão e Exclusão de Dadores por Comportamento Sexual”) estava previsto para o 2019, mas falhou-se o prazo. Por cima disso, veio a pandemia que deixou tudo em suspenso. "O relatório técnico final com as conclusões deste grupo de trabalho será conhecido em breve", avança o IPST, que adianta que "apoiará as recomendações apresentadas."
Com o trabalho meio feito, o contexto é assim de grande indefinição. Porém, em termos práticos, o modus operandi é quase sempre o mesmo, explica à MAGG Marta Ramos, diretora-executiva da ILGA Portugal, associação a que chegam várias queixas. É assim: homens que tenham relações sexuais com outros homens, só podem doar sangue após um período de 12 meses de abstinência, porque em muitos casos se continua a considerar que o contacto sexual com elementos do mesmo sexo acarreta só por si um risco infeccioso acrescido para agentes transmissíveis pelo sangue.
Mas o limbo leva a mais resultados, ainda que quase todos de exclusão, aponta a diretora da associação. Há homens a quem é negada a possibilidade de doar sangue por serem homossexuais ou bissexuais, outros a quem é dito que precisam de cumprir os tais 12 meses de abstinência. Há depois há os casos em que basta o indivíduo dizer o nome para que o sistema, automaticamente, lhe negue a hipótese da dádiva devido à orientação sexual. E ainda há os poucos que conseguem doar.
O caso de Bruno, frisa Marta Ramos, está longe de ser o único. A propósito desta nova corrida à dádiva de sangue, caíram mais denúncias de discriminação relacionadas com o tema. Um fenómeno anual e recorrente, sublinha. Por isto tudo, "há uma necessidade de clarificação dos critérios", destaca Marta Ramos.
O IPST também fala "em questões técnicas relacionadas com a segurança transfusional" associados à omissão dos períodos de suspensão concretos previstos na norma portuguesa, "contrariamente ao que acontece noutros países europeus que têm definidos períodos de suspensão concretos para homens que têm sexo com outros homens (que variam entre os 3 e os 12 meses)".
"Não pode ser com base na orientação sexual da pessoa. Isso é um critério obsoleto e discriminatório"
A "orientação sexual" nunca poderá configurar uma ameaça à dádiva de sangue, diz Marta Ramos. Tratem-se de pessoas homossexuais ou heterossexuais, são os comportamentos que configuram riscos.
"Não pode ser com base na orientação sexual da pessoa. Isso é um critério obsoleto e discriminatório", diz. As perguntas devem dirigir-se a toda a população e incidir sobre os comportamentos que cada um adota na sua vida: "utilizar preservativo, ter múltiplos parceiros, ter sexo anal desprotegido", esclarece. Não questionar toda a gente sobre estes hábitos é ignorar práticas sexuais que são transversais à orientação. "Há muitos casais heterossexuais que têm sexo anal", exemplifica.
A diretora-executiva da ILGA vê nestes critérios de exclusão a permanência do estigma social, sintomático ainda do surto de VIH que correu o mundo no final dos anos 80 e década de 90. “São resquícios do medo do VIH e do estigma e estereótipo associado à comunicadas gay, a quem se associavam comportamentos sexuais promíscuos", diz. "Durante uns anos houve um aumento da transmissibilidade [do VIH], mas isto deixou de ser verdade há muitos anos."
Este preconceito é também alimentado pela esfera da saúde, que, além da atualização das normas, carece de formação e sensibilização de profissionais para a não-discriminação, considera a diretora-executiva da ILGA. "Há muito trabalho a fazer", diz. "Há muitos médicos em prática que aprenderam que a homossexualidade era uma doença", acrescenta, lembrando que só em 1990 é que a Organização Mundial de Saúde retirou esta orientação sexual da sua lista internacional de doenças. "Isto foi ontem."
A vergonha em discutir a sexualidade é um obstáculo a uma triagem livre de preconceito. "É mais fácil não fazer este tipo de pergunta", diz Marta Ramos. Mas é necessário que seja feita e, por isso, a ILGA sugeriu inclusivamente que fosse criado um questionário com cruzes.
Outro argumento que sustenta os princípios estigmatizados das normas, considera, tem que ver com o facto de todas as dádivas de sangue serem testadas. "Ninguém sabe, no momento em que vai doar sangue, se tem ou não alguma doença", sublinha. "As dádivas de sangue são todas testadas."
Publicamente, a ILGA já veio lamentar a situação, revelando que com os apelos recentes às dádivas, "aumentaram as denúncias de discriminação, más práticas e exclusão de dadores." E descreveu a situação vivida por Bruno Gomes d'Almeida. "O preconceito revela-se destas formas: basta a pessoa indicar a sua orientação sexual (não heteronormativa) para que o processo termine; também é dito aos homens gays e bissexuais que precisam de um ano de abstinência para poderem ser elegíveis; não raras vezes, estas pessoas descobrem que foram excluídas de forma permanente da lista de dadores."
A associação reitera a importância da clarificação das "da norma em vigor, dos critérios de dadores, da abolição de más práticas e da necessidade de formação de profissionais de saúde com as diversas tutelas e organismos públicos competentes."
E apela à denúncia: "Apelamos a que todas as tentativas de doação sem sucesso sejam denunciadas ao IPST e à Provedoria de Justiça e reafirmamos o nosso compromisso para a abolição de mais esta barreira discriminatória e injustificada e apelamos aos partidos representados na AR [Assembleia da República] que questionem e pressionem o Governo nesse sentido."