Nos últimos meses tem-se espalhado o conhecimento de que medicamentos como o Ozempic, utilizados através de uma injeção subcutânea para o tratamento de doentes com diabetes tipo 2, são capazes de ajudar pessoas com excesso de peso a emagrecer de forma significativa. Nas redes sociais, são vários os casos de pessoas que mostram o progresso de perda de peso após a administração do fármaco. Contudo, existem especialistas internacionais preocupados com este tema, e receiam que se generalize a utilização do medicamento, originalmente criado para tratar a diabetes, revela o "USA Today".

A MAGG falou com dois médicos, Paula Pereira e Mário Rui Mascarenhas, no sentido de tentar perceber o porquê da propagação deste medicamento, em que casos deve realmente ser administrado, e a forma como se deve combater a escassez do fármaco, que constitui uma dependência para a saúde de doentes diabéticos.

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Paula Pereira, médica internista diabetologista, e coordenadora da Unidade de Diabetes do Hospital Lusíadas, no Porto, esclareceu o porquê de haver tanta procura por este medicamento, admitindo que ela própria receita o fármaco para doentes já com obesidade. "Na verdade, este medicamento tem várias atuações no organismo. Uma delas é ir ao centro cerebral da fome e reduzir a mesma. Outra das atuações é reduzir o esvaziamento gástrico, portanto,(...) sentimos enfartamento, e isso reduz a ingestão de comida. Se a pessoa está enfartada não vai comer mais nada a seguir, e passa assim, horas seguidas sem fome", explica.

Paula Pereira, médica internista diabetologista, e coordenadora da Unidade de Diabetes do Hospital Lusíadas, no Porto
créditos: Hospital Lusíadas, Porto

"Depois, tem outro nível de atuação, não deixa o fígado produzir açúcar. O nosso fígado reserva açúcar quando nos alimentamos, e nos intervalos, nós precisamos de açúcar para viver, e o fígado é o responsável por deitar açúcar no sangue nestas pausas alimentares. Este medicamento não deixa que o fígado faça isso, porque num diabético, normalmente, o açúcar já está aumentado, mas mesmo assim o fígado está desequilibrado, e manda açúcar para o sangue. Este medicamente inibe essa formação de mais açúcar no sangue".

A médica explica ainda que o medicamento está aprovado para o tratamento de obesidade, em doses diferentes de quando administrado em doentes diabéticos, apesar de ter a mesma composição. "Como médicos, todos reconhecemos o benefício de receitar este tipo de fármacos aos obesos, portanto, nós próprios o prescrevemos. O problema aqui não é nosso. O Estado não comparticipa este tipo de fármacos aos obesos, que estão indicados para o tratamento da obesidade, em doses mais elevadas, inclusivamente, do que aquelas que usamos para os diabéticos".

"O estado não quer reconhecer a obesidade como uma doença"

Mário Rui Mascarenhas, endocrinologista e professor na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, falou sobre esta questão da comparticipação, e dos problemas associados à obesidade. "A obesidade poderá ter como complicações, por exemplo a diabetes, a propensão a cancros, e não vamos prevenir esse tipo de problemas? O que é certo é que o nosso governo tem optado pela não comparticipação, já há duas décadas, de medicamentos para a obesidade", refere.

Mário Rui Mascarenhas, endocrinologista e professor na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa
créditos: Raio X

"Na minha opinião, não acho muito lógico que a medicina faça os possíveis para diminuir as complicações da obesidade, fazer com que as pessoas percam peso, mas mantendo a saúde, não sendo possível utilizar este tipo de medicação, com este tipo de comparticipação. Estaria indicado em pessoas com obesidades graves, que podiam evitar cirurgias, etc, mas sobretudo, podíamos evitar o aparecimento muito precoce de diabetes, da tensão alta, de doenças cardiovasculares, o aparecimento precoce de doenças cancerígenas. A grande epidemia do século 21 também é a obesidade. O problema da obesidade não é um problema de estética, é um problema de saúde pública", afirma o médico e professor.

Paula Pereira, médica especialista em diabetes, tem uma opinião coincidente quanto ao assunto. "Como para os obesos não é comparticipado, uma injeção mensal chega a custar 150€. Ora, havendo injeções semelhantes, e que são comparticipadas para os diabéticos, a tentação é muita de ir buscar uma com comparticipação, e em vez de 150€ as pessoas pagam 10€. Isto está errado, o estado não quer reconhecer a obesidade como uma doença, e depois as pessoas vão pagar por cirurgias caríssimas, quando nós temos na nossa mão uma arma potente para tratar a obesidade", afirma a médica.

"No fundo, os obesos beneficiavam deste tipo de tratamento, e devia ser comparticipado, porque a obesidade é também uma doença, não é só uma coisa comportamental e não deve ser punida. Parece que o estado está a punir os obesos, não lhes dá comparticipação. Depois estas pessoas vão desenvolver doenças, complicações, têm dores na anca, nos ossos, porque têm excesso de peso, vão desenvolver hipertensão, desenvolvem diabetes também, muitos acabam por ter um AVC, e se tivessem o tratamento que nós também fazemos para os diabéticos, e emagrecessem, evitavam complicações", explica Paula Pereira.

A médica especialista na diabetes, refere que estes fármacos são seguros, pelo facto de estarem aprovados para o tratamento da obesidade, e que "a questão é só de comparticipação". "As canetas (injetáveis) que têm menos quantidade estão aprovadas para a diabetes, e as que têm o dobro, ou mais do dobro, como é considerado que é para a obesidade, não são comparticipadas, mas é o mesmo fármaco, numa dosagem diferente, para ser mais eficaz, para ter o efeito adequado de grande perda de peso nos casos de obesidade".

"Estes medicamentos estão equiparados à cirurgia bariátrica"

Paula Pereira refere que a intenção deste medicamento não é puramente estética, e que, de facto, traz mais valias para a saúde de pessoas que sofrem com obesidade. "Este tipo de fármacos não são apenas estéticos, não é como uma lipoaspiração que é uma coisa exclusivamente estética, que é só tirar gordura, não. Ele limpa os vasos, tem esta ação no fígado, e tem outras, antiarterosclerose, antienvelhecimento. É de facto um fármaco maravilhoso e que nós podíamos usar para toda a gente que necessitasse, e não exclusivamente para os diabéticos. A obesidade também é uma doença, e muito grave", salienta.

Quanto a efeitos práticos, a médica revela que o medicamento "dá uma sensação de enfartamento, parece que para a digestão". "O que nós comemos não vai logo para o intestino, fica ali no estômago mais tempo, e a pessoa pode sentir-se enfartada, enjoada, arrotar, mas isso é o que nós queremos, aliás, quando eu prescrevo muitas vezes digo, 'nos primeiros tempos pode ter estes efeitos, mas continue', porque o fármaco é muito eficaz. Só temos de avisar o doente que vai sentir esse enfartamento, mas é propositado, é assim que o fármaco atua".

Não existem outros medicamentos, sem necessidade de receita médica, que tenham este tipo de eficácia, afirma a especialista. "Estes medicamentos estão equiparados à cirurgia bariátrica". "Não são eficazes em 100% dos doentes, atenção. 80% dos doentes, sim, têm eficácia. 20%, não sabemos ainda porquê, mas não têm resposta a este tipo de tratamento. Mas lá está, 80% é muito, a maior parte das pessoas que fazem perdem muito peso".

Medicamento deve ser receitado em casos de obesidade, não de excesso de peso, referem especialistas

Paula Pereira admite que existem casos de administração indevida deste fármaco. "Claro que, às vezes, é usado indevidamente, só para excesso de peso. Nesta abordagem, é preferível que hajam alterações no comportamento alimentar, que as pessoas façam mais exercício, começamos por aí, mas quando já há obesidade, temos de usar fármacos, porque o assunto não fica resolvido só com alterações do comportamento e atividade física".

Existe, portanto, uma necessidade de consciencialização nos casos de excesso de peso, para que as pessoas não recorram pelo caminho 'mais fácil', uma vez que o reganho do peso pode voltar facilmente após a paragem do medicamento. "Se não houver uma educação alimentar eficaz, se não houver de facto um acompanhamento pelos profissionais de saúde, mal as pessoas parem a medicação, deixam de ter aquele efeito (de enfartamento) e voltam a fazer as asneiras do costume, e claro que voltam a ganhar peso", afirma Paula Pereira. "Quando a pessoa tem menos peso, acaba por ficar mais motivada, mais resistente, e acaba por comer menos, porque gosta de se ver assim, e tenta manter aquele peso, mas é difícil sem o acompanhamento adequado", diz.

Mário Rui Mascarenhas transmite também informações que vão de encontro às explicações de Paula Pereira, sublinhando que "as pessoas com excesso de peso não têm grande risco para certo tipo de doenças". Afirma ainda que para iniciar um processo de perda de peso, "é fundamental que a pessoa esteja em boas condições psicológicas, que não tenha doenças psiquiátricas, nomeadamente associadas a uma depressão crónica, porque vai ter muito maior produção de açúcar, e também de gorduras no organismo, devido ao stress que é causado ao corpo".

Para além disso, "as pessoas têm de entender que têm de mudar os hábitos", refere o médico. "Devem mudar o seu estilo de vida, sob o ponto de vista de uma boa nutrição, e de atividade física adequada, e isso é para manter ao longo da vida, porque não vão fazer a medicação durante toda a vida. Quando pararem, se voltarem aos hábitos antigos, é lógico que o peso vai disparar. Ou seja, em termos práticos, a medicação não serviu para nada", afirma.

Mário Mascarenhas alerta ainda para os perigos a médio e longo prazo que este tipo de fármacos pode ter. "Apesar de serem relativamente seguros, também se sabe que estes medicamentos, além de terem todos os efeitos imediatos como náuseas, vómitos, diarreia, etc, também podem atuar sobre a parte cardíaca, aumentando o ritmo do coração, podem atuar no sistema nervoso central, com tonturas, dores de cabeça. Também está associado a casos de pessoas com aparecimento de cálculos na vesícula biliar, além de casos mais raros, com inflamação do pâncreas também".

Ambos os médicos são defensores de que a obesidade, tal como a diabetes, é uma doença, e como tal, a medicação também deveria ser comparticipada pelo estado, e produzida em maior quantidade, de modo a evitar crises de escassez para os doentes diabéticos que dependem do fármaco. "A solução era o estado comparticipar esta medicação também para os obesos, e produzir-se mais. O fármaco é excelente, temos é de comparticipar e dar acesso a toda a gente, não é limitar. Só que isto envolve milhões de euros, e a obesidade cada vez é mais prevalente", conclui Paula Pereira.