“Tenho a mente a derreter, nada para fazer e, à falta de melhor, abuso do computador. Antes fazia um pouco de tudo: jogava um bocado, depois ia ver uns vídeos, ouvia umas músicas. Lia notícias sobre o que me apetecesse e ficava a olhar para o ecrã um bocado, à espera que acontecesse alguma coisa. Jogo tudo desde que tenha qualidade. O jogo teve mais presença na minha vida há uns quatro, seis anos. Foi o tempo que eu joguei mais. Era chegar a casa e jogar, porque a vida social também nunca foi nenhum doce para mim e nunca fui muito de estudar (...). Nos últimos dois anos, incluindo consolas, em média devo ter jogado no mínimo 12 horas e no máximo, talvez 16 horas por dia. Quando estava a jogar às horas das refeições os meus pais não gostavam. De resto, eles só começaram a ficar tristes quando as minhas notas desceram um bocado. Estando no computador não tinha necessidade de qualquer outro tipo de distração. Os meus traços de depressão simplesmente ficaram mais carregados ao longo do tempo.”
Este é o relato de Carlos, com 22 anos à data deste testemunho feito para um vídeo pedagógico do blogue Mala da Prevenção, uma plataforma criada por Luís Patrício, médico psiquiatra. Com 16 anos, Carlos começou a passar horas consecutivas ao computador e a jogar online, tornando-se dependente. Teve mesmo de ser internado cerca de um mês na Unidade de Saúde de Carnaxide, tendo sido acompanhado com apoio terapêutico em ambulatório após a alta hospitalar.
“Nos estudos que tenho realizado com jovens entre os 12 e 30 anos, em cada amostra surge uma média de 20 a 25 por cento de jovens dependentes do que fazem na internet”, disse à MAGG Ivone Patrão, psicóloga clínica do ISPA – Instituto Universitário e autora do livro "#GeraçãoCordão - A geração que não desliga".
“Os rapazes demonstram um perfil de dependência de jogos e apostas online, enquanto as raparigas tendem para a dependência das redes sociais”. Desde os canais de YouTube, que têm tido cada vez mais crescimento e criam nos jovens uma sensação de exemplo a seguir, até aos jogos, são muitos os focos de distração que podem levar a um comportamento aditivo. É importante saber distinguir sinais de perigo e o que fazer para reverter uma possível situação de vício.
O vício levou-o a reprovar e a deixar a universidade
Um comportamento é aditivo quando este tem potencial para gerar dependência, em que a pessoa procura prazer, mas que pode facilmente resvalar para o lado compulsivo, muito difícil de interromper. “Temos de considerar diferentes comportamentos aditivos relacionados com a tecnologia. Podem ser passar imensas horas a jogar online, navegar compulsivamente passando de uns assuntos para outros ou estar bastante tempo nas redes sociais”, acrescenta Isabel Prata, psicóloga clínica e psicoterapeuta, que não gosta de usar a palavra vício para caracterizar esta dependência porque vê nela uma carga negativa.
O primeiro passo para identificar este problema é saber reconhecer os sinais de alarme. Os mais evidentes são: desinvestimento de outros aspetos da vida, tal como o baixo rendimento escolar; desinteresse face à escola e vida social offline; abandono de outras atividades fora de casa como o desporto; sonolência durante o dia; alteração das rotinas de sono, alimentação e estudo; mentira acerca do tempo que se passa na internet ou a jogar; compra compulsiva de jogos e até usar o cartão de crédito dos pais em segredo para o efeito. E, claro está, passar muito tempo ao computador ou ao telemóvel, bem como ultrapassar os períodos previamente estipulados para este tipo de atividades.
Ivone Patrão recorda o caso de um jovem de 21 anos: “Estudante de engenharia informática estava dependente do jogo online, sobretudo ‘League of Legends’, e desistiu do curso superior após dois anos de insucesso escolar por pouca dedicação ao estudo. Acabou por decidir ingressar no mercado de trabalho. Com boa adesão ao emprego, organizou melhor os seus ritmos diários e já obteve alta.
Um estudante de engenharia informática estava dependente do jogo online, sobretudo 'League of Legends' e desistiu do curso superior após dois anos de insucesso escolar por pouca dedicação ao estudo
Agressividade e dificuldade em controlar a ansiedade que é gerada por não estarem online são aspetos a que os pais também devem estar atentos. “De acrescentar que é importante redobrar a atenção face a estes comportamentos se existir algum acontecimento de vida que possa favorecer um uso excessivo de tecnologia, tal como o divórcio dos pais, uma perda significativa ou a dificuldade em realizar alguma tarefa da adolescência”, acrescenta Ivone Patrão.
Foi o que aconteceu com um doente de Ivone Patrão: “Um jovem de 18 anos, estudante de um curso profissional na área do design, debatia-se com a dependência de jogo online e com conflitos familiares por causa do divórcio dos pais. Quando decidiu ir viver com um familiar próximo, este tornou-se numa peça essencial na ajuda da regulação do comportamento online”.
É mais fácil viver online
Os comportamentos aditivos na adolescência não devem ser ignorados nem desvalorizados por se pensar que são fases momentâneas, que passam com a idade. Neste período da vida, a diversidade de interesses, experiências e relações ganham ainda mais importância. Repetir permanentemente o mesmo comportamento é um fator de risco para o desenvolvimento de competências sociais, para a transição para a vida adulta e para a própria socialização numa maior faixa etária, defendem os especialistas.
“É provável que um adolescente fechado se torne num adulto fechado, há uma continuidade no desenvolvimento”, diz Isabel Prata. “É mais fácil para os jovens viver online e o problema está quando ficam apenas por ali, quando a verdadeira vida fica de fora e preferem as personagens e as relações criadas num contexto de jogo às relações reais.”
Antes dos sinais de alarme e de um cenário aditivo, é também importante compreender que a barreira geracional entre pais e filhos desempenha aqui um papel importante — e pode contribuir para a criação de um comportamento aditivo. Os pais que começaram a viver com a tecnologia na adolescência ou mesmo na idade adulta têm filhos que nascem neste ambiente completamente dominado pela internet, computadores e smartphones. “É com esta diferença de experiências que temos de nos preocupar em primeiro lugar. É comum escutar em consulta que os pais nunca conversaram em família sobre o uso saudável da tecnologia e apenas quando sentem que há um abuso é que começam a tocar no tema, quando já se trata de um conflito”, afirma Ivone Patrão.
Para não se chegar a uma situação de dependência, existem passos que os pais devem tomar. Luís Patrício recomenda “interromper a visualização e utilização de um jogo, por exemplo, por breves momentos a cada 10 minutos para descansar a vista; limitar o tempo dedicado a esta atividade, não ultrapassando os 40 a 90 minutos por dia; definir dias da semana sem acesso a jogos; não aceitar que os jogos ou a adição à tecnologia interfira com outras atividades fundamentais individuais ou familiares como alimentação, descanso, higiene, estudo ou trabalho; alternar o uso dos videojogos com outras atividades lúdicas e convívio com família, amigos e colegas; e, por último, é também importante que a criança ou jovem não fique muito tempo sozinho com consolas ou computadores”.
Outra técnica que pode ser benéfica é a partilha do mesmo espaço: apesar de o jovem ou adolescente estar a jogar ou ao computador, será bom que pais e filhos partilhem a sala comum, por exemplo, mesmo que todos estejam ocupados com diferentes atividades.
Dar o exemplo também é importante. Afinal, os bons hábitos devem começar em casa e desde cedo: como se vê no estudo publicado este mês pela ERC, "Boom digital? Crianças (3 a 8 anos) e Ecrãs" 38% desta faixa etária usa a internet. Devem os pais dar o exemplo, limitando o tempo que eles próprios passam agarrados ao computador ou ao telemóvel, é um ótimo ponto de partida, garantem os terapeutas. Promover interesses diversificados nos jovens e falar com eles sobre as atividades virtuais também é algo em que devem apostar – os pais não necessitam ter o mesmo nível de competência que os filhos nesta área, mas é importante terem algumas noções para que possam estar atentos a eventuais comportamentos excessivos.
Isabel Prata acrescenta outras medidas: “Ser capaz de dizer não com firmeza é uma atitude muito necessária para os pais de adolescentes, embora nem sempre fácil. Não oferecer ou aceitar comprar todos os jogos que os jovens querem é, muitas vezes, uma tentação pois é um presente sempre bem recebido e existe uma insistência e argumentos lógicos dos filhos. Dialogar e conversar sobre as consequências do comportamento é ainda mais importante do que abordar o comportamento em si. Por exemplo, os pais podem explicar aos jovens que entendem o gosto pelo jogo, mas estão preocupados com a descida das notas, com a falta de interesse por outras atividades e que suspeitam que estas alterações sejam uma consequência das horas passadas a jogar. Manifestar preocupação de uma forma argumentada, apontando as consequências evidentes do comportamento, e oferecer apoio para a mudança são passos importantes e necessários”.
Control – Escape – E acabar com a dependência
Se os comportamentos identificados como sinais de alarme forem uma constante, é provável que se verifique uma situação de dependência e pode ser necessário recorrer a ajuda profissional.
Hoje já existem consultas especializadas nestes comportamentos ligados aos jogos virtuais e à tecnologia, para adolescentes e jovens – o Ministério da Saúde está preparado para lidar com estas novas tendências nos serviços de comportamentos aditivos e dependências que funcionam em vários centros de saúde espalhados pelo país.
Deverá existir uma primeira fase de avaliação para que se perceba o contexto pessoal e social da dependência e se, de facto, existe. “Comprovada a situação, a intervenção deve ser mista, em psicoterapia individual e familiar. Pode ser necessária uma avaliação psiquiátrica e ponderado o uso de psicofármacos”, afirma Ivone Patrão.
Aos 13 anos jogava Football Manager uma vez por semana, dos 14 aos 17 duas a quatro horas, no máximo, aos fins de semana. Até aos 20 anos joguei menos mas, dos 20 aos 25 aumentei as horas a jogar. Era capaz de estar até 12 horas por dia a jogar e também passava bastante tempo a navegar no YouTube
João, de 25 anos, precisou de ser internado, como contou à MAGG: “Aos 13 anos jogava 'Football Manager' uma vez por semana, dos 14 aos 17 duas a quatro horas, no máximo, aos fins de semana. Até aos 20 anos joguei menos mas, dos 20 aos 25 aumentei as horas a jogar. Era capaz de estar até 12 horas por dia a jogar e também passava bastante tempo a navegar no YouTube. Esta situação fez com que estudasse menos e criou conflitos na família, já que os meus pais se alteravam se não me vissem a estudar. Para mim não era dependência, era uma escapatória. Acabei por aceitar ser internado uns dias. A equipa tem psiquiatra, psicólogo, terapeuta ocupacional e psicomotrista. Estou em tratamento e agora não sinto falta, não tenho jogado e penso em outras coisas.”
Mesmo depois de um diagnóstico, há medidas que os pais podem tomar para tentar reverter a situação. “Estimular os filhos a convidar amigos para jogarem presencialmente juntos (existindo assim um convívio social durante o jogo), tentar avaliar previamente os conteúdos visualizados na internet e acompanhar o que está a passar nos ecrãs, colocando-os numa posição visível: um ecrã escondido não deixa que outros vejam o que se está a passar, enquanto o contrário permite uma seleção de conteúdos”, afirma Luís Patrício.