O dia está soalheiro e a brisa que se sente é tão mais do que bem vinda que a primeira preocupação de Daniel Oliveira ao ver-nos é o facto de a mota que tem parada à porta do estúdio não funcionar e assim não poder aproveitar a satisfação que é andar contra o vento pelas estradas. "Não pega, e é uma pena", lamentou.

À mesa de um dos cafés do Jardim da Amoreiras, em Lisboa, fala sobre aquela que tem sido a sua grande paixão dos últimos tempos: o podcast  "Perguntar Não Ofender", o programa de conversas e debate político por onde já passaram Ricardo Araújo Pereira, António Costa e Adolfo Mesquita Nunes e que é sustentado através do Patreon, uma plataforma de angariação de fundos que permite que os seguidores contribuam mensalmente com um euro ou mais. Daniel Oliveira diz que juntou a fome à vontade de comer — que era a vontade de falar com pessoas num meio que não envolvesse tecer opiniões mas sim debater, conversar, e questionar.

Ainda assim, garante que não tem como objetivo ser o mau da fita ou entalar os convidados, até porque acha que as pessoas já estão cansadas deste jogo sujo na política. "O que eu quero é dignificar a política pela inteligência", continua, e não tem dúvidas de que no momento em que deixar de achar isso interessante é o momento de parar.

Mas o  comentador não ficou por aqui. Abordou outros temas da atualidade, como Bruno de Carvalho e o caos que gerou no Sporting enquanto presidente.

Como surgiu a ideia para este podcast?
Foi uma confluência de ideias. Tudo começou quando o João Martins, produtor do "Perguntar Não Ofende", me perguntou se eu não estaria interessado em fazer um podcast. E isso confluiu com uma vontade minha de ter uma coisa que não fosse meramente de opinião. Fui jornalista durante muitos anos e, apesar de gostar muito do meu trabalho enquanto colunista, isso não me chegava.

Precisava de falar com outros e não sempre com os mesmos, até para formar as minhas próprias opiniões. Foi aí que surgiu esta ideia ainda que, ao início, ainda não estivesse muito claro se as conversas seriam em formato de entrevista ou meros debates. Acho que isso se notava mais nos primeiros episódios, mais especificamente no primeiro e no segundo com António Costa e Ricardo Araújo Pereira. No primeiro foi muito entrevista e no segundo já foi mais um debate de ideias. Depois cheguei ao que eu queria, que era um misto das duas coisas, que tivesse um elemento de contraditório mas que não fosse hostil.

É ir picando mas sem criar conflito?
Sim, o que nem sempre é fácil de fazer, confesso.

Daí o nome "Perguntar Não Ofende"?
Sim, o nome do projeto tenta sintetizar esta ideia de que é possível haver contraditório numa conversa sem hostilidade. Ou seja, conversas mais profundas com pessoas sobre assuntos em que elas pensaram muito e que fazem parte da sua área de trabalho ou interesse. Geralmente há dois tipos de registos nas entrevistas: a entrevista de vida e sobre a atualidade. A entrevista de vida não me interessa fazer e a de atualidade já tem muita gente a trabalhá-la nos mais variados formatos. Uma entrevista temática, onde se fala sobre um só assunto durante 50 minutos permite-me atingir um grau de profundidade que não é habitual e acho que é essa a maior diferença entre este podcast e o que já existe.

"Tenho mudado imensas vezes de opinião"

Assume com naturalidade o tom curioso das perguntas?
Sem problema nenhum. Ao longo de toda a minha vida tenho mudado imensas vezes de opinião e isso tem a ver com o entusiasmo que tenho com as coisas que vou descobrindo e que depois me ajudam a formar as minhas próprias opiniões. Desse ponto de vista, eu tenho imensa curiosidade não só em ouvir, mas também em discutir com aquelas pessoas o que, naturalmente,  se alia a uma vontade de dar aos convidados que chamo para o podcast a oportunidade de exporem opiniões que já conhecemos deles de uma forma mais fundamentada e sustentada.

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Tenta desmontar uma narrativa que os convidados já tenham preparada?
Eu não quero desmontar narrativa nenhuma, até porque seria de uma enorme arrogância minha pensar que teria a capacidade de destruir ideias ou pensamentos que os meus convidados passam uma vida inteira a pensar e a trabalhar. O meu objetivo é obrigar as pessoas a expor a sua narrativa para lá de frases fáceis e, desse ponto de vista acho que até as estou a ajudar ao contribuir para que as suas narrativas se tornem mais sólidas do que algumas vezes são.

Tento, sim, impedir narrativas fáceis que funcionam muito bem numa entrevista que tem cinco ou dez minutos mas que não são sustentáveis durante 50 minutos de conversa. Tento que as pessoas saiam um bocadinho do seu boneco e da cassete que têm programada.

Eu desvalorizo sempre o meio mas acho que as pessoas querem ouvir coisas, seja na televisão, na rádio ou em podcasts. Mas confesso que não tenho nenhum fascínio pela modernidade, sou até razoavelmente conservador nessas matérias."

Não quer conhecer as pessoas, portanto?
Não, de todo. O que me interessa são os argumentos delas, a sua maneira de pensar e estar na vida. Tudo coisas completamente fora de moda.

Na internet onde tudo fica para sempre é difícil ter alguns dos convidados num meio que não controlam?
Até agora tive apenas um pedido de adiamento e nenhuma recusa. Acho que as pessoas, por não conhecerem muito bem o meio, até acabam por aceitar. Acham que é qualquer coisa lá para a internet e não ligam muito [risos]. Outras sabem e interessa-lhes, muitas vezes até por uma questão de imagem, por se apresentarem num meio mais moderno. Mas não tenho sentido grande receio nem resistência, mas confesso que estava com medo de levar algumas tampas.

Todos aceitaram rapidamente, desde Jaime Nogueira Pinho, à direita, a Catarina Martins, à esquerda, senti uma enorme disponibilidade para conversarem comigo.

Para Daniel Oliveira, o aborto é uma questão mais polémica e complexa que a despenalização da eutanásia

Depois do "Maluco Beleza", de Rui Unas ou "Erro Crasso", que junta Luís Franco-Bastos e Pedro Teixeira da Mota, está mais do que provado que os portugueses também querem ouvir podcasts nacionais?
Eu desvalorizo sempre o meio mas acho que as pessoas querem ouvir coisas, seja na televisão, na rádio ou em podcasts. Mas confesso que não tenho nenhum fascínio pela modernidade, sou até razoavelmente conservador nessas matérias, mas a verdade é que o podcast tem várias vantagens como o facto de permitir que seja moldado à vontade do criador. Até porque não tem de se adaptar aos meios que já existem nem é obrigado a cumprir métricas de audiências ou de equilíbrio temático, por exemplo. Isso permite-me ser um bocadinho arrogante e só querer conversar com quem me apetece.

Com a chegada dos blogues houve uma série de certezas que foram abaladas como a ideia de que as pessoas não gostavam de ler coisas longas, ou que não havia uma geração nova capaz de escrever."

A verdade é que a grande maioria dos seus convidados é de esquerda...
É verdade, mas isso não quer dizer que não tenha interesse em falar com pessoas de direita. É simplesmente porque tenho mais perguntas a fazer a pessoas da minha área política e o feedback que tenho recebido é que são essas as conversas que geram mais contraditório. Quando há muita coisa que nos separa é mais difícil fazer o confronto, porque a distância é demasiada e eu tendo a pôr-me no lugar de observador distante. A minha conversa com o Adolfo Mesquita Nunes foi uma conversa suave e, quando são pessoas ideologicamente mais próximas de mim, a conversa tende a ser mais interventiva.

Mas sente que o público está disponível para este tipo de conteúdo?
Eu acho que sim, que estão disponíveis para ouvir coisas que fujam ao modelo tradicional. As televisões e as rádios não fazem coisas que as pessoas gostam, mas sim coisas que as pessoas podem vir a gostar. Curiosamente, são este tipo de meios que mostram como estão enganados mas a história não é nova. Com a chegada dos blogues houve uma série de certezas que foram abaladas como a ideia de que as pessoas não gostavam de ler coisas longas, ou que não havia uma geração nova capaz de escrever. Tudo isto é mentira. As pessoas gostam de ler artigos e trabalhos extensos, trabalhosos, de investigação, da mesma forma que há uma nova geração capaz de escrever tão bem ou melhor que a geração anterior.

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A eutanásia e o voto contra a despenalização

Convidou António Costa, Adolfo Mesquita Nunes e Catarina Martins, todos eles de espectros políticos diferentes. A convidar alguém do PCP um dos temas a abordar seria o voto contra a despenalização da eutanásia?
Não. Eu tento discutir com as pessoas do ponto de vista do que me interessa e do que lhes interessa a elas. Eu não faço entrevistas boazinhas, e isso nota-se nestes episódios, mas também não quero entalar ninguém porque eu escolho os temas em que os convidados estão à vontade para discutir. À partida, não escolheria ninguém do PCP para falar sobre eutanásia porque acho que isso seria absurdo, tanto para o partido como para o tema.

A falar com alguém do partido, seria sobre temas que fossem de interesse para o PCP enquanto força política. Por exemplo, quando entrevistei o Adolfo Mesquita Nunes sobre a direita liberal, a conversa foi muito rica porque sei que é um tema que lhe interessa e sobre o qual está à vontade para discutir. Posso estar enganado, mas acho que as pessoas estão cansadas deste jogo que nós jogamos em que tentamos ir buscar à política o que mais pobre há nela.

A única coisa que eu quero neste momento é correr com este homem [Bruno de Carvalho] do Sporting."

Há uma tentativa de dignificar a política com inteligência?
Sim, é uma das coisas que tento fazer. Se falar com pessoas sobre coisas em que pensaram mais, à partida vão desenvolver mais e dar-me respostas de maior qualidade e mais sustentadas. Creio que é muito bom para a saúde da nossa democracia, porque mostra que o debate político pode ser um debate com conteúdo e manter-se interessante e estimulante do ponto de vista intelectual.

O país está pronto para dizer "sim" à eutanásia?
Sim, sem dúvida. Aliás, eu não acho que a eutanásia seja um tema assim tão polémico. A questão do aborto é muito mais complexo porque levanta questões filosóficas, morais e até religiosas, todas elas muito mais complexas do que as questões levantadas pela eutanásia. É que na eutanásia não se limita a liberdade porque continuamos a ser nós que decidimos sobre a nossa própria vida e na questão do aborto já não é bem assim. Na verdade, o País só não está preparado para dizer o "sim" porque não pensou muito sobre o assunto.

"Com o Sporting, vivo quase numa crise existencial"

E como é ser sportinguista numa altura tão conturbada do clube?
É ser uma pessoa que sofre, que está profundamente triste e que não dorme há um mês. Sou um sportinguista ferrenho e sempre sofri muito com o meu clube, mas era um sofrimento saudável. Ficava feliz quando a equipa ganhava e triste quando perdia. Mas neste momento vivo quase numa crise existencial.

Eu já me zangue muitas vezes na política, mas na política é fácil. Zangamo-mos, aguentamos até ao limite e no limite saímos e até estamos livres para mudar de partido ou criar um novo. Eu vou ser sportinguista até morrer e assistir a este espetáculo deprimente revela um sentimento de impotência enorme. A única coisa que eu quero neste momento é correr com este homem [Bruno de Carvalho] do Sporting.

Houve um momento em que Bruno de Carvalho acordou para uma realidade em que o poder é transitório e que provavelmente o iria perder. É um homem sem estrutura emocional e psicológica para suportar a ideia de que o poder é transitório."

Onde é que Bruno de Carvalho perdeu o controlo?
Há quatro meses, entre aquela publicação idiota e a marcação de uma assembleia geral que já não foi idiota, mas sim uma coisa pensada para aproveitar o primeiro ano do Sporting para tentar reforçar o seu poder. Claro que há sempre pessoas que viram isto acontecer muito tempo antes e, na minha opinião, viram mal porque o que está a acontecer não esteve sempre a acontecer. Houve um momento em que Bruno de Carvalho acordou para uma realidade em que o poder é transitório e que provavelmente o iria perder. É um homem sem estrutura emocional e psicológica para suportar a ideia de que o poder é transitório.

Nós temos a mania de dizer que os ditadores são pessoas fortes, mas eu acredito que os ditadores são pessoas fracas de espírito, que não aguentam perder aquilo que pessoas que não são ditadoras aguentam perder. Eu tinha uma amiga que me dizia uma frase que ainda hoje repito muitas vezes, que os fracos são os nossos carrascos. Bruno de Carvalho é um homem fraco e de uma fragilidade perturbante. E cabe aos sportinguistas remover a pessoa que está a criar um problema no clube e assegurar que o clube continua na mão dos sócios. É uma tarefa que vai demorar uns anos.

Como é que se salva o Sporting de Bruno de Carvalho?
As pessoas a quem entregamos poder absoluto para salvar as instituições rapidamente as começam a destruir. Como é que se reverte uma situação destas? É difícil. Se fosse fácil acho que já estava feito, mas acho que não vai demorar assim tanto tempo. Bruno de Carvalho já não controla rigorosamente nada no clube e toda a estratégia que lhe resta é dizer que a culpa é dos jogadores ou de outra pessoa qualquer que não ele.

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E alguém que tem como legado o facto de em junho não termos treinador e termos acabado de perder quase metade da equipa a custo zero, digamos que não tem propriamente grande rival a nível de legado. E acho que a maior parte dos sócios já percebeu isto. Esta novela vai demorar muito a terminar mas já sabemos como é que vai acabar. Não vai ser um final feliz para Bruno de Carvalho e, infelizmente, para o Sporting.

Há planos para o futuro do seu podcast?
É simplesmente continuar a fazer. Quando já não houver ninguém com quem eu tenha interesse em conversar, paro. Como há dez milhões de portugueses é capaz de demorar algum tempo [risos]. Quando se começar a tornar burocrático, ou mudo o modelo ou deixo de o fazer. Mas ainda estamos muito longe de isso acontecer, até porque estamos agora a dar os primeiros passos.

Enquanto achar que isto tem utilidade para o debate político, vou continuar a fazê-lo. E é só isso que me interessa porque eu não faço entretenimento.