Quando me despeço de Carlos Vidal, de 73 anos, sinto um pequeno aperto no peito. Na azáfama da cidade, das conversas superficiais de elevador e dos dramas do quotidiano, esquecemo-nos tantas vezes de como é bom parar. Deixamos de recordar o sabor das boas conversas à mesa, daquelas onde se juntam desconhecidos e acabam a sair amigos. Perdemos a memória dos passeios pelo campo, do sabor da água do riacho a tocar-nos nas mãos ou da maravilha que é, simplesmente, contemplar a natureza.

Quem me costuma acompanhar nos editoriais e artigos de opinião sabe que tenho tendência para ser sarcástica, incisiva, talvez até cáustica como um dia alguém me disse. Este texto vai ser completamente diferente, e a culpa é de Carlos Vidal, o ex-comandante da TAP que entregou o seu coração a um moinho abandonando no Faial, na ilha da Madeira, e criou um local de sonho para receber turistas. Não, peço desculpa, para receber amigos: só precisa de cinco minutos com Carlos para sentir que ganhou um amigo para a vida. Eu senti. E quase duas semanas depois de ter regressado, mal posso esperar para voltar.

Não foi fácil chegar ao Moinho do Comandante. Depois de uma aventura pelo Curral das Freiras — marquei mal no mapa e acabei a olhar para o miradouro de baixo para cima —, e de 22 quilómetros de distância que se transformaram em uma hora de viagem — com direito a andar no meio da estrada com o telemóvel no ar, a tentar apanhar rede para o Google Maps nos levar ao sítio certo —, cheguei esbaforida ao moinho. Tinha fome, sono, sede, frio, calor, raiva, stresse, era um autêntico cocktail de emoções prestes a explodir. Quando parámos finalmente o carro, suspirei fundo. Já estava. Só faltava o jantar e podia ir descansar.

Quando Carlos Vidal ainda era um estranho, que associava à foto de email de um homem gordinho e de bigode, ficou a promessa de que jantaríamos naquela noite. “Vou levá-la ao melhor restaurante da Madeira”, disse-me umas semanas antes. Naquele momento, o melhor restaurante da Madeira parecia-me um autêntico pesadelo. Só queria fechar a porta, enfiar-me na cama e dormir.

Peço desculpa, Carlos. Se eu soubesse o prazer que seria sentar-me consigo nessa noite no restaurante Faísca, onde de repente me senti tão próxima de todos como se tivesse acabado de me mudar para a aldeia da Fajã Grande, nunca teria pensado tal coisa. Mas naquele momento ainda não nos conhecíamos, era apenas um estranho de bigode e eu tinha muito, muito sono.

Tudo mudou no momento em que abri a porta do carro. Estava tão irritada, atrasada e nervosa no caminho que nem me apercebi da paisagem. De repente, vejo finalmente o sítio onde estou. E eu vou tentar descrevê-lo o melhor que conseguir, mas espero que entendam: não vou ser capaz. Não a 100%. Porque há coisas que se sentem, não se explicam. Há imagens que valem mesmo mais do que mil palavras, e não é em fotos. Leitores, eu descobri um sítio mágico. E não sei sequer por onde começar.

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O Moinho do Comandante é um sonho do qual não vai querer acordar

Estamos no fundo de um vale, rodeados por uma paisagem verdejante. Mesmo em frente às casas — são duas — corre uma nascente, cujo som é tão relaxante que dou por imediatamente a descomprimir. Os meus olhos estão presos à casa principal, engolida pela natureza de forma tão perfeita. “Isto é um sonho”, comento com o meu namorado, esquecendo-me por completo de que há poucos minutos queria apertar-lhe o pescoço — recordem-se de que eu era um cocktail de emoções prestes a explodir.

Era mais do que um sonho, na verdade. Parecia que tinha entrado numa das fábulas que o meu pai me lia todas as noites antes de dormir. E por uns momentos, por uns breves momentos, quase fechei os olhos para me ver deitada no beliche de baixo, rodeada por peluches e com os olhos colados à capa do livro “As Mil e uma Noites”.

Carlos Vidal aparece passados poucos minutos. Reconheço-o pelo bigode que, saberei nessa noite, deixou crescer depois de apanhar um susto em Angola, onde foi piloto da força aérea. Está bastante mais magro do que na fotografia — também mais tarde saberei que começou a ter mais cuidado com a alimentação —, e tem um sorriso e um tom de voz tão suaves que transmitem calma e serenidade. Que sítio é este e que pessoa é esta? Parece que estou noutro mundo.

— Sejam bem-vindos! — saúda-nos, pousando o aspirador num canto. — Peço desculpa, já vou arrumar isto. Uns hóspedes pediram-me por tudo para ficar cá esta noite, e à última hora tive de preparar a Casa das Flores. A Paulinha, que trabalha comigo, magoou-se e está de baixa. Tenho sido eu a fazer tudo.

— Ora essa, não se preocupe com isso, senhor Carlos. — Respondo, tentando ajudar.

Carlos ri baixinho.

— Senhor Carlos. Essa é boa.

Só viria a perceber mais tarde o ridículo de lhe chamar senhor Carlos. Carlos é Carlos. E será sempre Carlos — ou comandante, como preferirem.

O Moinho do Comandante tem duas casas: o Moinho do Comandante e a Casa das Flores. O primeiro tem capacidade para seis pessoas, com uma sala, cozinha, uma suite (duas pessoas) e uma suite familiar (cama de casal mais duas camas, quatro pessoas).

Já a Casa das Flores só dá para duas pessoas e tem uma sala, cozinha e suite. Ainda assim, na primeira casa os hóspedes nunca partilham a mesma casa — um único casal pode alugar um quarto no Moinho do Comandante sem problemas, uma vez que Carlos Vidal bloqueia o espaço e não aceita mais reservas para essas datas.

Fico contente por saber que não vou dividir o Moinho do Comandante com mais ninguém porque, de facto, aquela é uma casa que queremos ter apenas como nossa — e só nossa. Seria estranho cruzar-me com alguém lá dentro, sobretudo quando passei os primeiros 20 minutos só a contemplar os pequenos pormenores.

Não há nada de pretensioso aqui: o espaço é, no verdadeiro sentido da palavra, rústico. Mas não nos faz querer fugir como tantas vezes acontece quando esta palavra é empregue. Senti-me em casa desde que pus os pés lá dentro, como se aquele espaço tivesse feito parte da minha história a vida toda. Há molduras de família, uma salamandra envolta em pedra, um telefone antigo, até os interruptores são autênticas peças de museu. Alguma vez tinha visto um interruptor que roda? Eu não.

A magia do exterior prolonga-se mesmo lá dentro. Até porque na sala de estar há janelas do chão até ao teto, que nos fazem sentir como se estivéssemos outra vez lá fora, no meio daquela natureza incrível. Mas porque o rústico tem limites, felizmente Carlos soube ter cuidado com os pormenores e nada falha — o colchão é super confortável, a cozinha está equipada com todos os acessórios, desde os mais modernos até aos mais vintage, e a água do banho não demorou muito a aquecer.

Se quiser comer uma refeição tipicamente madeirense, o Moinho do Comandante tem um programa para jantar com a família Gomes, que mora na zona. Todos os produtos são caseiros, sem químicos, e incluem sopa, pão caseiro, prato principal, sobremesa e vinho. Cada pessoa paga 20€.

O maior elogio que posso fazer ao Moinho do Comandante é este: já dormi em muitos hotéis, turismos rurais e empreendimentos turísticos que custaram milhões e milhões de euros. Já dormi em quartos com peças de arte, mobílias valiosas e até acabamentos em ouro. Nunca, em tempo algum, me senti tão bem e tão rapidamente em casa como no Moinho do Comandante. Podia jurar que tinha nascido ali — e, caramba, eu nunca tinha sequer visitado a Madeira.

Tudo começou com uma sopa de trigo

Carlos Vidal também não é natural da ilha. “A minha família é da região de Aveiro”, conta-me no dia seguinte, quando  nos sentamos para conversar no jardim. “Eu nasci em África, no Congo Belga. Nas viagens de férias dos meus pais, vínhamos de barco e quando passávamos aqui na Madeira, o barco atracava ao lado — não tinha o porto que tem hoje — e vinham de barcaças buscar-nos”.

Na infância e juventude, Carlos Vidal visitou a ilha da Madeira em três ocasiões diferentes. Os passeios pelos montes, assim como as descidas de cestos, ficaram-lhe para sempre gravadas na memória. Mas o regresso à ilha só aconteceria anos mais tarde — primeiro viriam os anos como piloto da força aérea em Angola, mais tarde um ano no “continente” a dar formação. Com 26 anos entrou para a TAP, de onde só viria a sair em 2007, já com 60 anos. Quando começou a voar para o Funchal, o amor pela ilha ressurgiu.

“Comecei então à procura de um canto, onde eu pudesse andar a pé, ouvir música, ler. E dei com este espaço”. O encontro aconteceu por acaso: “Uns amigos convidaram-me para vir comer uma sopa de trigo aqui à Fajã Grande, a casa da doutora Rita Ferreira. Depois da sopa — magnífica —, como eu disse que gostava de ver aqui qualquer coisa, eles levaram-me a ver umas casas que possivelmente poderiam ser vendidas.”

O moinho esteve abandonado 18 anos

As casas que Carlos Vidal encontrou afinal não estavam para venda, mas quando estava a regressar deu de caras com o moinho. “Fiquei encantando. Passado 15 dias a doutora Rita ligou-me e disse-me que tinha falado com um dos herdeiros, e que possivelmente poderiam vender”.

Na altura só havia vegetação densa, um moinho abandonado há 18 anos, “mas era realmente um espaço encantador”. A compra deu-se muito rápido, mas as obras demoraram cinco anos a começar — é que não havia registo algum dos terrenos, por isso a parte burocrática foi penosa e demorada. Nesse período, a filha tirou um curso de turismo e surgiu a ideia de que talvez aquilo pudesse ser algo mais do que uma simples casa para Carlos e a mulher, Leonor, descansarem.

Abriram portas pela primeira vez em 2002, exatamente 12 meses depois de começarem as obras de recuperação do moinho e construção das restantes áreas. A decoração foi toda pensada por Carlos e Leonor, e reúne muitos objetos pessoais e de família. Não poderia ser de outra forma porque, acrescenta Carlos, “o Moinho é a nossa segunda casa”. Também há objetos que o ex-comandante da TAP trouxe das suas viagens, como o banco de uma charrete que trouxe de São Paulo ou os interruptores que vieram de Roma.

Como o casal é apaixonado por coisas antigas, também não faltam objetos de outros tempos, como a chaleira, o telefone, as balanças ou um quadro em cobre que representa a vida africana que Carlos herdou dos pais. “Há pequenas coisas que vamos trazendo. E tenho muitas peças aqui da Madeira”.

Carlos Vidal trabalhou dos 26 aos 60 anos na TAP

Já lá vão quase 20 anos desde que Carlos Vidal abriu o Moinho do Comandante. Portugueses continuam a ser muito poucos, mas estrangeiros não faltam a chegar a esta casa — e mais importante, a voltar. “Hoje em dia os turistas ficam em média três noites, mas depois temos aqueles que voltam e ficam uma ou duas semanas. É muito agradável”.

Nas primeiras vezes, conta-nos, os viajantes tendem a passar pouco tempo na casa — vão sobretudo para fazer os percursos das levadas. Quando regressam para umas segundas férias no moinho, porém, praticamente não saem daqui. “Gostam de ler, ficam junto à ribeira, se está sol apanham uns banhos de sol. Já ficam mais tempo aqui, para usufruir desta paisagem”. Entendo. Estamos num sítio especial, e quando descobrimos sítios especiais não queremos mais sair deles.

Infelizmente, eu tive de partir. Mas trouxe muitas memórias do Moinho do Comandante de que não me vou esquecer nunca. A mais especial foi, claro, o turismo rural. O passeio pela ribeira, as mãos a tocarem nas flores, os peixes no lago, alguns tão velhos como a casa e que Carlos tenta proteger a todo o custo dos pássaros que os querem comer. Os sons, cheiros e imagens da natureza na sua forma mais genuína e intocada. E a casa, sempre a casa, que nos aconchega sem nunca nos retirar a imagem daquele verde imenso.

Carlos Vidal tem um quarto da propriedade

Isto é algo que nunca vou esquecer. Mas também nunca vou esquecer aquele jantar no Faísca, onde comi a melhor espetada de carne do mundo e o único bolo do caco realmente caseiro que encontrei em toda a ilha. A simpatia do empregado venezuelano, a conversa com os hóspedes que chegaram à última hora — e também foram jantar ao Faísca — e, claro, a própria família Faísca. “Eles abriram agora um alojamento turístico, não quer ir ver?”, sugeriu Carlos. O senhor Faísca nem sequer tinha percebido que eu era jornalista e já me estava a abrir as portas de casa. Agora a sério, isto não é incrível? Para mim foi. Assim como foi ficar a conversar com eles à porta, como se tivéssemos sido amigos a vida inteira.

Antes de me vir embora, Carlos pediu-me duas coisas: primeiro, que referisse no texto a Paulinha, que infelizmente não conheci porque está de baixa mas que “é a alma desta casa”. “Meta só uma nota”, disse-me com os olhos a brilhar. “Os hóspedes adoram-na, ela é um amor”. Está feita a nota, Carlos. E pela forma como falou na Paulinha, não tenho dúvidas de que merece todas as referências do mundo.

O segundo pedido foi que voltasse. “Só assim vou ter mesmo a certeza de que gostou”. Não se preocupe, Carlos. Voltaremos a ver-nos muito em breve — e já sabe onde vou querer jantar.

Na Casa das Flores, um casal paga 75€ por noite. No caso do Moinho do Comandante, os preços começam nos 95€. Em 2020, a estadia vai subir 10€. O pequeno-almoço está sempre incluído.

*A MAGG esteve alojada a convite do Moinho do Comandante